Ester Sabino acredita que sequenciamento do Coronavírus foi resposta à difamação da Universidade

Pesquisadora de equipe que sequenciou genoma do Coronavírus afirma que estudo foi “resposta aos grupos que tentam difamar a imagem dos estudantes”

Por Letícia Camargo

Foto: Bianca Muniz / Jornal do Campus

No dia 28 de fevereiro, o grupo de pesquisadores do Instituto Adolfo Lutz (IAL), da Universidade de Oxford e do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP) divulgaram o sequenciamento do novo Coronavírus, o Covid-19. Este grupo, de maioria feminina, é coordenado pela médica Ester Sabino, ex-diretora do IMT-USP e com mais de 30 anos de carreira à frente de muitas pesquisas. Diante da notoriedade que adquiriu nas últimas semanas, o Jornal do Campus conversou com a pesquisadora para saber sobre sua trajetória na ciência e perspectivas sobre tudo o que já desenvolveu na área. Confira na íntegra como foi a entrevista:

Quando jovem, já sabia que queria ser médica?
Sim. Meus pais eram médicos e isso influenciou bastante a minha escolha pela medicina desde que era jovem. Além disso, sempre tive muita facilidade para os estudos. Na verdade, eu entrei para o curso de medicina enquanto ainda estava no segundo ano do ensino médio, sendo aprovada no vestibular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Então, acredito que isso tenha me ajudado a ingressar no curso de Medicina na Universidade de São Paulo (USP) quando conclui o terceiro ano.

Como foi a experiência de poder cursar medicina?
Era uma época muito mais difícil do que hoje. Estávamos vivendo o momento da Ditadura Militar no Brasil, então quando ingressei na faculdade havia muitos movimentos políticos. Eu participei da Anistia, por exemplo, com o intuito de trazer os professores antigos de volta à Universidade de São Paulo (USP). Era uma época de muita agitação, lembro-me também que a União Nacional dos Estudantes (UNE) foi recriada. Além disso, em minha turma havia apenas 40% de mulheres. Era um tempo muito diferente.

Quando se formou, você se especializou em pediatria. De onde surgiu o desejo de cuidar de crianças?
Desde quando me formei eu tinha a vontade de ir para a pesquisa, mas não havia empregos nessa área naquela época. Eu gostava da pediatria, mas era uma coisa secundária para mim, algo que pagava o meu salário. Normalmente, eu dava plantões aos finais de semana para que pudesse fazer meu curso de pós-graduação. Assim, conseguia trabalhar na área da pesquisa durante a semana.

Você tem vontade de retornar ao trabalho em consultórios?
Eu não pretendo voltar a trabalhar com clínicas novamente. Os plantões que dei tinham como objetivo pagar o meu salário, para que assim pudesse seguir na área da pesquisa. Por este motivo, eu nem sequer cheguei a ter um consultório. Inclusive, hoje atuo em um departamento de doenças infecciosas que tem como objeto de estudo os adultos, ao invés de crianças. Assim, não vejo pacientes, apenas faço pesquisas.

A sua carreira teve início com a investigação do HIV, quando ainda se sabia muito pouco sobre o vírus. Como foi participar de uma pesquisa como esta?
Participar do programa de investigação sobre o vírus HIV foi muito interessante, pois foi algo vencedor no Brasil. Nós conseguimos fazer muita coisa e a resposta foi muito boa. Assim, tivemos o controle da epidemia e tudo foi uma inovação. Eu participei de dois grupos diferentes nesta pesquisa. Estive tanto junto do grupo que fez carga viral, como também do grupo que fez os testes de resistência, que é o sequenciamento, algo essencial para saber se o paciente está resistente ao medicamento. Também estive com os primeiros grupos que sequenciaram o HIV no Brasil e mostraram como era o vírus naquela época.

Você tem uma longa trajetória na área da pesquisa científica. Como foi ser atuante em tantos projetos em um período de tempo tão curto?
Meus trabalhos em pesquisa são feitos em equipe, por isso consigo me envolver em diversos projetos ao mesmo tempo. Também sou uma pessoa focada e tenho a crença de que a pesquisa só se faz se conseguirmos recursos. Então, se houver os recursos necessários e uma área de pesquisa, mesmo que não seja a minha especialidade, eu me disponibilizo a montar uma equipe especializada e participo da pesquisa.

Quais os projetos mais marcantes com que trabalhou em seus últimos 10 anos de trabalho?
Há dois projetos que eu considero mais marcantes para mim. Um que já começamos a colher os frutos, que é sobre a doença de Chagas. Se trata de uma doença bem negligenciada e, quando iniciei a pesquisa, fiquei muito impressionada com isso. O outro projeto está começando a ter trabalhos desenvolvidos agora. Apesar de não ser a investigadora principal da pesquisa, participo como coordenadora de todos os recursos necessários. Ele trata sobre a anemia falciforme, que também é uma doença negligenciada e que tem atualmente em torno de três mil pacientes. Eu gosto muito dessa pesquisa, que faz parte do projeto de segurança transfusional.

Como se deu o seu envolvimento com o Covid-19? Foi um pedido?
Eu já participava de um projeto chamado Cadde (Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus), que estuda a evolução dos arbovírus, que são vírus transmitidos por mosquitos, tratando de doenças virais como a Dengue, Chicungunha e Zika Vírus. Sendo assim, a nossa pesquisa estava desenvolvendo ferramentas para esses vírus. Então, o Coronavírus chegou no meio, e só decidimos sequenciar o seu genoma. Antes disso, ele não fazia parte da minha linha de pesquisa.

O que significa para você esta descoberta ter partido de um grupo de cientistas de uma universidade pública?
A ciência brasileira é basicamente estabelecida dentro das universidades públicas. Por isso, a universidade pública tinha que ajudar a fazer a aplicação destas ferramentas em uma situação específica como agora.

Há muitas mulheres, sobretudo jovens, que estão se inspirando no trabalho feito por cientistas desse grupo predominantemente feminino. O que você diria a elas?
Acredito que o trabalho científico é algo difícil e que é algo que você precisa gostar muito. Porém, é uma profissão muito gratificante e espero que cada vez mais mulheres e meninas optem por esse estilo de vida.

A recente descoberta de seu grupo tem feito com que a ciência finalmente seja reconhecida pela sociedade. O que você espera com esta notoriedade?
Acredito que o meu papel no sequenciamento do genoma foi, na verdade, chamar a atenção para a falta de recursos. Eu espero que tenham mais recursos para a ciência e que também não haja essa conversa de que não se faz nada na Universidade. Acho que isso foi uma resposta aos grupos que tentam difamar a imagem dos estudantes. Por isso, sou do coro que defende que fazemos bastante coisa aqui e estou muito feliz de que pudemos dar essa resposta. A Universidade não sou só eu, são muitas pessoas trabalhando. Coincidiu de que essa descoberta acontecesse agora, mas acho que há pessoas que podem oferecer trabalhos muito relevantes e que precisam ser mostrados.

O que mais te encanta sobre a ciência no Brasil? E o que teme?
O brasileiro é um povo muito inovador e que tem muitas ideias. Porém, a ciência no Brasil precisa de mais recursos contínuos. Não devem haver falhas, isso é muito ruim. Precisamos lutar para que os recursos se mantenham estáveis e que se expandam, pois precisamos de mais, além da criação de um vínculo com o setor privado e produtivo. Também precisamos trabalhar mais em conjunto, pois acredito que as pessoas ainda trabalham muito de forma isolada e competindo umas com as outras. Acho que temos que mudar e fazer uma ciência mais colaborativa.