Nos bastidores da chegada do novo coronavírus

Em meio à pandemia do novo coronavírus, ciência brasileira se destaca e reacende a importância do investimento público na área.

por Karina Merli

O Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (Cadde), coordenado no Brasil pela também diretora do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP) Ester Sabino, tem como finalidade estudar epidemias causadas artrópodes, como a dengue, zika e chicungunha.

Não por acaso, o estudo levou ao encontro da biomédica e pós-doutoranda do IMT-USP Jaqueline Goes de Jesus, através do projeto Zibra, onde conheceu Ingra Morales Claro, também biomédica e doutoranda na Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).

Até o final do ano passado, qualquer um dos membros da equipe, de maioria feminina, jamais imaginaria uma repercussão tão grande neste início de 2020, após o sequenciamento do RNA do novo coronavírus (Covid-19 ou Sars-CoV-2).

Ele já era esperado

Em dezembro de 2019, o primeiro caso foi identificado na China. Naquele período, ainda era difícil pensar no quadro atual de pandemia, mas os pesquisadores já acreditavam na chegada do vírus ao Brasil. No dia 26 de fevereiro, o primeiro brasileiro contaminado foi identificado. A equipe de Goes de Jesus e Sabino já se preparava para a recepção da amostra. Segundo Morales Claro, desde 2016, o grupo conta com a tecnologia MinIon, que realiza a leitura de RNA ou DNA em tempo real.

Morales Claro trouxe a tecnologia do sequenciador genético após fazer parte de seu doutorado na Universidade de Birmingham. Até hoje ela trabalha com ingleses para desenvolver protocolos mais rápidos na sequenciação de arboviroses e vírus. (Foto: Arquivo pessoal – Ingra Morales Claro)

Além deles, pesquisadores das Universidades de Oxford e Edimburgo receberam os dados durante o sequenciamento do Covid-19, realizado no Instituto Adolfo Lutz. Nos dois primeiros casos do Brasil, isso levou apenas 48 horas, igualando a marca do Instituto Pasteur, na França. A média é de 15 dias.

Para a biomédica, a repercussão foi “uma resposta da sociedade a tudo que vem acontecendo, porque foi logo após o grande corte de bolsas de pesquisa.” Marcos Boulos, professor sênior da FMUSP Marcos Boulos afirma que isso revela a capacidade de trabalhar com tecnologia de ponta e a importância do investimento no segmento científico do país.

Em apenas três semanas, os casos de Covid-19 tiveram um aumento de aproximadamente 100%. Os dados são do Ministério da Saúde (Gráfico: Maria Laura López)

Comitê recém-criado

Em artigo publicado na revista científica Nature, constatou-se que, apesar do índice de mortalidade do novo vírus não ser tão elevado, quando comparado à Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) e à Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers) — que são da mesma espécie — a transmissão é eficiente e, na maioria dos casos, os infectados desenvolvem pneumonia e a síndrome respiratória aguda, culminando em anomalias nos pulmões.

Com a propagação do vírus, o governo do estado de São Paulo resolveu criar um Comitê de Contingência do Coronavírus de São Paulo. Boulos também é membro e esclarece que o objetivo é monitorar a propagação do patógeno e analisar quais medidas foram adotadas em outros países, para que se possa tomar decisões de contingência. Até a semana passada, quando a entrevista foi realizada, o foco era preparar os hospitais para a demanda por leitos, principalmente as UTIs, já que os casos mais graves dependem disso.

E o futuro?

Em relação à epidemia no país, o governo já alertou que nas próximas semanas o número de casos crescerá substancialmente. Enquanto isso, os pesquisadores permanecerão realizando o sequenciamento em escala menor. A ideia, de acordo com a doutoranda, é fazer uma análise mais aprofundada.

Ela também revela que a tecnologia utilizada no sequenciamento genético do vírus deverá ser ainda mais rápida. “Estamos trabalhando com dois novos protocolos, que, em breve, poderão ser utilizados. Isso reduzirá o tempo do processo para poucas horas”. Complementa a doutoranda.

Por ser uma doença nova, mais estudos precisarão ser feitos para compreender toda complexidade do patógeno, algo que receberá como contribuição o feito dos pesquisadores brasileiros.