Representatividade entra em cena

Jé Oliveira é primeiro diretor negro a vencer principal prêmio de teatro de São Paulo

Por Laura Alegre

Jé Oliveira nos Bastidores da peça “Gota D’Água Preta” – Foto: Fernanda Pinotti / Jornal do Campus

Na 63ª edição do prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), o dramaturgo, músico, ator e estudante da USP Jé Oliveira foi o primeiro homem negro a levar o troféu de melhor direção. A peça Gota D’Água Preta é uma adaptação da obra homônima de Chico Buarque e Paulo Pontes, publicada em 1975.
A trama conta a história de Joana, mulher de meia-idade abandonada pelo marido Jasão, um sambista que se envolve com a filha do dono da vila onde ela mora, e sofre com os abusos psicológicos e físicos do ex-companheiro. Com isso, as personagens exploram dilemas relativos à ascensão social do negro, além de questões como feminismo, exploração, corrupção e relacionamentos.

A montagem do espetáculo já havia sido feita anteriormente, contando com Bibi Ferreira no papel Joana, mas nunca com um elenco predominantemente negro. Foram as questões políticas e sociais do roteiro que motivaram Jé a idealizar a adaptação: “a obra foi escrita no período da ditadura militar, que apresenta muitas semelhanças com o período em que vivemos agora, principalmente no que diz respeito às questões de gênero, classe e raça. Pensei em adaptar e atualizar esse cenário”.

Além de diretor, Jé está envolvido em todos os processos de produção da montagem, incluindo a escalação do elenco e também na atuação. Ele interpreta Jasão, contracenando com a cantora Juçara Marçal, que vive Joana. “Cada ator foi escolhido a dedo. Juçara é essencial para a peça, por exemplo, porque além de cantar muito bem, ela tem uma idade próxima e teve experiências parecidas com sua personagem, principalmente no que se trata da cultura e da religião pretas”, conta.

Sobre ser o primeiro homem negro a levar o Troféu APCA de “Melhor Direção” para casa, o dramaturgo confessa que é um “misto de sentimentos”. Afinal, em 63 edições do evento, apenas no ano passado a primeira mulher negra venceu na mesma categoria: Naruna Costa, pela obra Buraquinhos ou o Vento É Inimigo do Picumã. Jé espera que isso represente um avanço para que “a qualidade artística de artistas negros seja reconhecida, porque ela sempre existiu. Espero que a representatividade nessas premiações não seja passageira e que o fato de um diretor negro ganhar um prêmio não precise virar notícia no futuro”.

Gota D’Água Preta ainda conta com um “coro negro”, análogo ao das tragédias gregas, que ajuda na construção da narrativa. A obra original de Chico Buarque foi inspirado na obra “Medeia”, do filósofo Eurípedes, e a versão de Oliveira buscou resgatar algumas dessas referências incluindo cantos do candomblé, da umbanda e danças típicas com acompanhamento de tambores, ressaltando a cultura africana.

Para o artista, a função social da peça é “fortalecer pessoas para continuarem lutando por seus direitos e formar aliados. Embora o fim da peça pareça trágico, ele não significa uma derrota. O que Joana passa é um exemplo de uma pessoa que não abre mão de suas convicções, que segue batalhando pelo que acredita. É o que precisamos fazer, continuar a luta daqueles que vieram antes de nós”.