As “pandemias” dentro da pandemia

Isolamento social altera ritmos biológicos, hábitos alimentares, saúde mental e até relações familiares de alunos e professores, com problemas se agravando pela incerteza da reabertura

Por Diego Macedo

Foto: Diego Macedo/Jornal do Campus.

De alterações nos ritmos biológicos e em hábitos alimentares até o aumento de casos de estresse pós-traumático e separações conjugais, a pandemia deu origem a várias outras “pandemias”, problemas que surgiram na quarentena e agora se agravam pela incerteza quanto à uma possível reabertura.

Em um levantamento do Jornal do Campus feito com alunos da USP, 74% responderam ter sentido uma alteração no tempo durante a quarentena, citando o sono desregulado e a falta de deslocamentos como sinais do desajuste. Mas a falta de uma rotina definida não afeta apenas nossa percepção: o próprio corpo tem de se ajustar ainda mais, um processo que na verdade é feito diariamente.

Se é óbvio que o efeito do coronavírus é maior naqueles que o sofrem diretamente (seja pela própria contaminação, seja por estarem na linha de frente do combate à doença), está claro também que seu impacto naqueles que estão isolados em casa não é pequeno. A origem desse impacto parece estar no aparente estado de “suspensão” das coisas, que intensifica a percepção – a começar pela do tempo. 

Ritmos biológicos

Segundo Luiz Menna-Barreto, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (Each), sinais ambientais como o ciclo claro/escuro, a alimentação e a atividade física fazem com que o corpo se ajuste constantemente. Esses sinais, chamados de “sincronizadores”, atuam de forma passiva em muitos organismos, que têm de se adequar ao ciclo das marés e da lua, por exemplo. No caso do ser humano, temos papel ativo nesses sinais: quando mudamos nossa rotina no fim de semana ou por conta de uma viagem longa de avião, sofremos depois as consequências (indisposição na segunda-feira e o chamado jet-lag, respectivamente).

Isolamento social altera ritmos biológicos, hábitos alimentares, saúde mental e até relações familiares. São Paulo/SP – Brasil, 09/07/ 2020. Foto: Diego Macedo/Jornal do Campus.

“Nas rotinas pré-quarentena esse nosso papel ativo era menos evidente: éramos submetidos a horários de trabalho, os ritmos do corpo ajustavam-se a eles e tudo parecia mais ou menos ‘natural’”, explica Menna. Porém, o isolamento e o maior tempo no ambiente doméstico exigem ajustes maiores nos horários de trabalho, refeições, atividade física e interações sociais. Para o especialista, seria interessante que nesse período aproveitássemos a oportunidade para pensarmos em nós mesmos “como autores dos próprios ritmos, pelo menos em parte”.

Outros dois aspectos são observados na quarentena. Um deles é a atenuação generalizada das oscilações quando, por exemplo, a quantidade de hormônios diminui e sua ação no território celular acaba comprometida, o que significa que a ativação deles pelas células diminui também. O outro aspecto é temporal, no qual se identifica o fenômeno da “dessincronização”, que pode ser interna (quando um hormônio é liberado no momento “errado” e as células que atuam nele estão menos receptivas); ou externa (quando temos sono durante o dia e insônia à noite, num ciclo vigília/sono “fora de fase”).

Como resultado, sentimos fadiga, cansaço, inapetência e desconforto gastrointestinal, além de alterações no sistema imunológico (menos perceptíveis). De acordo com Menna, essas dessincronizações ocorrem de forma passageira, mas eventualmente podem se tornar crônicas em situações como essa da pandemia. O que fazer? “O primeiro passo é fazer pequenos experimentos naturais com os horários de sono, atividade física, alimentação e interação social. Promova mudanças e observe os efeitos. Ao fazer isso você está dialogando com os tempos do corpo, desvendando uma realidade antes encoberta”, recomenda Menna.

Imunidade e transtornos alimentares

No caso de alterações no sistema imunológico, tem se cogitado o uso da vitamina D. Um estudo publicado pela Universidade de Turim em março avaliou a hipótese da vitamina D prevenir e reduzir o contágio por Covid-19, chegando a “resultados interessantes”. O problema é que o estudo era apenas bibliográfico, sem pesquisa de campo, e foi tomado como concreto pela mídia, se espalhando como uma verdadeira fake news e levantando muitas pessoas a tomar suplementos de vitamina D sem prescrição.

“Não há um ‘botão mágico’ para aumentar a imunidade”, afirma Sophie Deram, nutricionista franco-brasileira e doutora em endocrinologia pela USP. Para Sophie, a imunidade é um estado de bem-estar do corpo, em que ter rotinas, estar bem nutrido, dormir bem e lidar com o estresse pode ter um papel tão importante quanto um ou outro nutriente. No caso específico da vitamina D, processada pela pele com a luz solar, é importante sim se atentar – ainda mais em isolamento dentro de casa – mas sem exagero e, se possível, com acompanhamento.

“A maior fonte de vitamina D que você vai ganhar é pela exposição à luz solar e não existe um suplemento alimentar que vai fazer isso melhor que ela. Uma exposição de 15 minutos por dia já pode ser suficiente se a pessoa não tem nenhuma carência”, explica Sophie. Ainda assim, a busca maior por vitamina D levou a Sociedade Brasileira de Endocrinologia a publicar um artigo alertando sobre os riscos de superdosagem e hipercalcemia, uma das complicações. “Sintomas podem ser fadiga, fraqueza muscular, náuseas e até anorexia e desidratação”, afirma o artigo.

Especialista em transtornos alimentares e pesquisadora da predisposição genética a eles, Sophie relata ainda casos de pacientes que aproveitaram a pandemia para emagrecer ou aderir ao veganismo sem orientação, entrando em jejum intermitente ou low carb. “Isso é um tiro no pé, porque elas estão colocando o próprio corpo sob o estresse da restrição”, esclarece. Em vez disso, seria mais vantajoso olhar para o contexto inteiro do corpo e buscar o bem-estar. “Um sono bom, por exemplo, será tão importante quanto comer bem ou sua atividade física.”

Saúde mental e conflitos familiares

Falta de rotina, sono e alimentação irregulares foram problemas para Louise Lobão, estudante de Obstetrícia da Each, mas não tão grandes quanto o impacto psicológico. “Acho que o isolamento foi para mim como uma montanha russa: teve momentos em que eu estava bem e teve outros em que eu estava absolutamente desiludida da vida”, conta Louise. Segundo a aluna, esse impacto já existia antes e por causa da própria USP, mas com a pandemia aumentou. “É meio difícil estudar quando você não sabe o que vai acontecer, não sabe se vai estar viva amanhã.”

Louise engrossa o coro de reclamação dos estudantes citando os problemas do EAD, como aumento da carga de estudos em algumas disciplinas e o abandono de outras por alguns professores, como motivos para o desgaste psicológico. “Tem professor que até hoje não respondeu e-mail nosso perguntando sobre a continuação do curso. Já outra professora cobrou um trabalho que em condições normais já seria difícil, mas com a pandemia, fazendo as coisas à distância e em grupo, era praticamente impossível. É muito difícil”, desabafa Louise.

Para Fernanda Mishima-Gomes, psicóloga da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), o resultado é um quadro de desânimo, desesperança e angústia. “O que vimos primeiro foi uma fase de alarme, de ‘ok, vamos nos adequar à situação. Depois, veio uma fase de 3 meses de assimilação da nova realidade. Agora, eu vejo que os efeitos são muito semelhantes mesmo ao do estresse pós-traumático, onde muitos pacientes conseguiram se adaptar a uma rotina, mas que não é aquela que viviam anteriormente”, explica a psicóloga.

Na linha de frente do combate à “pandemia” de problemas de saúde mental, Fernanda coordena o atendimento psicológico dos alunos que estão no 4º e 5º anos de Psicologia da FFCLRP, sendo responsável ainda pelo Projeto Fênix, tocado em conjunto com psicólogos voluntários para acolhimento virtual de crianças, pais e cuidadores e brasileiros no exterior. Apesar de não ter recebido nenhum caso de luto por coronavírus, a psicóloga relata o aumento de outro tipo de luto: aquele por separação conjugal, muitas vezes envolvendo violência doméstica e abusos.

“Essas coisas se misturam, principalmente na questão da violência, e a gente sabe que com um convívio maior, os conflitos vão ser maiores. Uma separação nesse momento vai ser mais drástica também, onde a agressividade e a intolerância ficam mais evidente”, descreve Fernanda. Ela recomenda manter contato com uma pessoa de confiança ou com a família de origem, mesmo por celular ou chamada de vídeo, buscando uma rede de apoio que ajude de alguma forma. “O que não dá é ficar no isolamento total”, aconselha.

Reabertura e esperança

E agora, com uma possível reabertura da economia? Como as pessoas têm lidado com a incerteza quanto ao futuro? A psicóloga acredita que cada movimento de “vai e vem” vai depender de cada pessoa, com algumas reagindo melhor caso tenham de voltar para casa novamente e outras vendo seus problemas se agravarem no isolamento. “É possível vermos agora uma fase crônica mesmo, onde as pessoas vão tomar uma postura que gostariam de ter tomado antes, uma postura mais drástica em relação ao que está acontecendo”, afirma Fernanda.

Mas nem tudo é problema na pandemia: o isolamento social também trouxe aprendizados. “Temos visto famílias se reunindo um pouco mais para fazer algo divertido, criando um ‘quadro de rotina’ com os filhos, para lazer ou exercícios físicos”, relata Fernanda. 

A preocupação com o corpo também é ponto positivo, segundo Luiz Menna-Barreto, da Each, para quem a pandemia é uma oportunidade para construirmos tempos melhores para nossas vidas e para nossas coletividades: “Manteremos adolescentes sonolentos nas aulas às 7 da manhã?”, questiona.   

Apesar dos problemas, Sophie Deram, doutora em Endocrinologia, vê com bons olhos uma preocupação maior com a alimentação daqueles isolados em casa. “Eu percebi que as pessoas ficaram mais preocupadas com a saúde e menos com o peso. Tive até pacientes com transtornos – principalmente anorexia – que aceitaram comer mais. Já outros passaram a cozinhar mais também”, conta Sophie. “Acredito que tenho comido mais, mas melhor também. Cozinhar também tem sido uma distração para mim”, confirma a estudante Louise.

Em “A Peste”, Albert Camus não dá exatamente um final feliz à pandemia; porém, retrata com esperança a abertura das portas ao fim do livro. “Agora, tinha esperança e alegrava-se com isso. Não se pode manter indefinidamente a vontade em estado de tensão, e é uma felicidade poder, enfim, na efusão, desatar esse molho de forças trançada para a luta”, escreve Camus. Quem sabe se, sem abusarmos da esperança, possamos atravessar o isolamento em casa com sucesso, aprendendo com os problemas e nos tornando pessoas melhores.