Avanço de Covid-19 sobre interior paulista pode gerar rebote na capital, dizem pesquisadores

Cidade de São Paulo promove reabertura econômica ancorada na disponibilidade de leitos; HC de Ribeirão Preto tem 100% das UTIs ocupadas

Por Pedro Teixeira

O governador de São Paulo João Doria durante coletiva de imprensa sobre balanço do Plano SP. Foto: Governo do Estado de São Paulo

O estado de São Paulo superou a marca das 20 mil mortes por Covid-19, no dia 21 de julho. Um dia antes, o interior ultrapassou a região metropolitana em número de óbitos, ao contabilizar 5.612 vidas perdidas — no domingo (26), já eram 7.228. Nesse cenário, o governo estadual promoveu uma reabertura gradual e localizada da economia até o momento. Chamada de Plano São Paulo, a política de retomada tem como principal parâmetro a disponibilidade de leitos.

Com o avanço da pandemia sobre o interior, o portal Covid-19 Brasil, formado por um grupo de cientistas de dados que vem avaliando a evolução da pandemia no Brasil desde março, passou a monitorar em detalhes as infecções por coronavírus em Ribeirão Preto e nos demais Departamentos Regionais de Saúde da região. Os hospitais ribeirãopretanos têm taxa de ocupação dos leitos de UTI dedicados à Covid-19 acima de 90%. No Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, esse percentual já ultrapassou os 100% nas últimas duas semanas.

Foto: Divulgação/ Governo do Estado de São Paulo

Quando leitos dedicados a outras enfermidades graves, como câncer ou doenças cardiovasculares, são destinados ao tratamento de Covid-19, a cota de ocupação pode ser maior que 100%, conforme explica Domingos Alves, um dos fundadores do portal Covid-19 Brasil, professor da FMRP e coordenador do Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS). O especialista aponta ainda que o HC, por ser uma unidade de referência, recebe pacientes até de outros estados.

Franca e seus entornos, por exemplo, tiveram um agravamento tanto do número de casos, quanto das taxas de ocupação de UTIs, de acordo com o monitoramento do portal. A cerca de 100 quilômetros de Ribeirão Preto, a falta de leitos na cidade redireciona os pacientes à vizinha com mais estrutura. Ribeirão Preto, porém, já tem o sistema público de saúde dela operando sob pressão.

Domingos Alves informa que os modelos matemáticos do Covid-19 Brasil predizem um crescimento da quantidade de novos casos diários na região de Ribeirão Preto, conforme um indicador chamado aceleração. “Com os hospitais do interior mais cheios a cada dia, o destino natural dos pacientes graves é a cidade de São Paulo”, afirma. Desta maneira, a demanda por leitos na capital aumenta.

No início de julho, o prefeito de Campinas, município que está na faixa vermelha do Plano São Paulo, já pediu para enviar pacientes aos leitos da Grande São Paulo e, assim, conseguiu um alívio na taxa de lotação dos hospitais campineiros. “É um efeito boomerang. A partir da capital surgiu uma disseminação exacerbada da Covid-19 nas cidades do interior. Agora, esses municípios devem começar a mandar pacientes de volta para a capital.”

Nos últimos dias, a taxa de ocupação de UTIs na Grande São Paulo tem oscilado na casa dos 65%, segundo a Secretaria Estadual de Saúde. De acordo com o G1, o governo estadual flexibilizou as regras do Plano São Paulo nesta semana. Avançar da fase amarela à verde só era possível se a região tivesse até 60% dos leitos de UTI de Covid-19 ocupados. Com a mudança o percentual passou para valores entre 70% e 75%. Os novos critérios começam a valer a partir de sexta-feira (31).

O peculiar platô de São Paulo

Os infectologistas, via de regra, analisam dados semanalmente. Nas últimas 14 semanas epidemiológicas, a capital paulista registrou mais de 400 óbitos por período, segundo os dados da Lagom Data. Essa quantia equivale ao número de vítimas de dois a três acidentes aéreos envolvendo aeronaves de grande porte a cada sete dias. Por outro lado, a quantidade de novas mortes parou de crescer, o que alguns veículos de imprensa vem chamando de platô.

Domingos Alves esclarece que, para se falar em platô, é necessário avaliar os valores acumulados de casos e óbitos de Covid-19 e não os registros diários. Essa situação é caracterizada por uma estabilização dessas variáveis, decorrente da queda do número de novos diagnósticos positivos ou mortes.

A estabilidade da qual o professor fala é aquela observada nos países da Europa, como Itália e Espanha. Com o controle da epidemia, os números de casos e óbitos acumulados atingiram um patamar regular. “Nenhum estado brasileiro conquistou esse estágio de supressão da doença até o momento”, informa.

Ao privilegiar indicadores de atenção hospitalar em relação às estatísticas da pandemia, o Plano São Paulo pode progredir mesmo que o número de casos dobre de uma semana para a outra. Por isso, é uma política pública de mitigação da crise sanitária: “aceitar que não se pode deter o coronavírus e, portanto, diminuir sua propagação e evitar ao máximo casos de contágio que fariam colapsar o sistema público de saúde”, define o portal Covid-19 Brasil.

Essa era a estratégia do governo britânico até março, quando um modelo estatístico da Universidade de Oxford previu 500 mil mortes no Reino Unido nessas condições.

“Não há no mundo ações factíveis de supressão do vírus, mas políticas de isolamento social e protocolos sanitários, que reduzem as possibilidades de contágio. O Plano São Paulo engloba uma estratégia para retomar as atividades sociais e econômicas do estado, baseado na evolução dos casos e óbitos, número de novas internações e ocupação de leitos de UTI por regiões”, declara a assessoria de imprensa do governo do estado de São Paulo.

Doutora em Bioinformática pela USP e pesquisadora do Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS), Lariza Laura de Oliveira aponta Campos do Jordão como um município que segue uma estratégia de supressão da epidemia. Trata-se da estratégia de “romper as cadeias de transmissão, com o intuito de efetivamente deter a epidemia e reduzir os casos ao menor número possível, como foi feito na China e na Europa”, segundo a definição do Covid-19 Brasil.

Até agora, a cidade contabiliza dois óbitos. A prefeitura designou funcionários para fiscalizar a entrada de pessoas na cidade, e rastrear contatos de cada infectado por coronavírus. “Quando uma pessoa chega ao município, tem a temperatura medida e é entrevistada sobre qualquer possível sintoma de Covid-19”, conta Oliveira.

“O número de casos demorou para subir em Campos do Jordão. Só aumentou quando fizeram um churrasco com 50 pessoas na casa de alguém do setor hoteleiro com pessoas de São Paulo, em maio”, lembra a pesquisadora. Antes disso, eram somente cinco casos confirmados. Hoje, são quase 200 diagnósticos positivos.

“Mesmo assim, é uma cidade que está se saindo bem no monitoramento” pontua Oliveira. O Laboratório de Inteligência em Saúde tem contato direto com o prefeito e o secretário de saúde de Campos do Jordão, para os quais emite relatórios epidemiológicos periodicamente.

Faltam números para fechar a conta

Os pesquisadores do LIS relatam dificuldades na obtenção de dados para alimentar seus monitoramentos e modelos matemáticos. Algumas cidades, como Ribeirão Preto, disponibilizam todos os quadros notificados — mesmo aqueles que ainda não têm resultados de exames. Outras, no entanto, falham até em manter a periodicidade de seus boletins epidemiológicos.

“O ideal era ter uma padronização de divulgação dessas informações”, argumenta Lariza Oliveira. Ela enumera alguns registros que seriam importantes para os especialistas em Saúde Pública, como a data de início de sintomas. Com essa informação é possível calcular o número de reprodução, que indica a quantas pessoas um paciente infectado transmite o vírus. Sem esses valores, os cientistas adequam os cálculos a pequenas amostras populacionais de certos municípios, ou adaptam modelos matemáticos de outros países.

Para registrar o número de casos confirmados em alguns municípios menores, o professor Domingos Alves conta que, às vezes, depende de informações divulgadas diretamente pelas prefeituras e até pela imprensa. “A Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), do governo do estado, sempre registra atrasos muito grandes em relação aos dados oficiais de algumas cidades. Então, não podemos confiar”, lamenta.

A Fundação Seade esclarece que apenas disponibiliza um painel para facilitar a consulta dos cidadãos. Os dados são da Secretaria Estadual de Saúde.

Intrigados com a imunidade de rebanho que entrou no debate público após artigo de O Estado de S.Paulo, os pesquisadores do LIS começam a usar seus registros e modelos matemáticos para avaliar a hipótese. Mais desconfiado, Domingos Alves lembra que “primeiro, trata-se de uma teoria adequada para avaliar epidemias para as quais já existem vacina. Depois, Manaus, onde esse estágio foi supostamente alcançado, é assolada por mais de 90 mortes por 100 mil habitantes. Serão muitas vítimas até o estado de São Paulo chegar a essa taxa de mortalidade” — cerca de 20 mil, para ser exato.

A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo enviou ao Jornal do Campus a nota reproduzida a seguir:

A reportagem erra ao considerar que o Plano São Paulo trabalha com uma “projeção de mais vítimas”. Muito pelo contrário – o Plano tem, sim, o objetivo enfrentar a pandemia e reduzir os casos de COVID-19 ao menor número possível. Por isso, segue critérios estritamente técnicos e leva em consideração os dados coletados através do monitoramento contínuo e diário de todos os municípios do estado de São Paulo.

As regiões só avançam caso haja melhora nos indicadores de saúde e contágio e, ainda assim, precisam seguir os protocolos definidos para cada fase.

No monitoramento, são analisados aspectos epidemiológicos, como variação de casos, óbitos, internações e taxas de contaminação em cada localidade, bem como os cenários regionalizados sobre a COVID-19 no estado. A retomada consciente da economia e, consequentemente, de qualquer atividade comercial, é respaldada por critérios técnicos, análises e pareceres de especialistas. É permitido, inclusive, que os municípios intensifiquem as medidas de isolamento social se necessário.

O Plano São Paulo norteia a retomada consciente do cotidiano da população, com a premissa da segurança, prevenção, e garantia da assistência, aliada ao incentivo à manutenção das atitudes essenciais como higienização das mãos, ambientes, além da obrigatoriedade do uso de máscara e sobretudo do fortalecimento da rede hospitalar.

Os critérios e a metodologia do plano estão disponíveis e podem ser consultados neste site.