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Por Renan Sousa

Foto: Renan Sousa/ Jornal do Campus

Mais um caso isolado. Esse foi o mote de boa parte da imprensa quando uma mulher de 51 anos teve o pescoço esmagado por um policial, no dia 30 de maio. Antes disso, o menino Miguel, de cinco anos, foi outro caso isolado de racismo com crianças pretas. Antes disso, outro caso isolado de Guilherme Guedes, 15 anos, morto por um policial de folga. Antes dele, George Floyd, nos EUA, 40 anos. Isolado. Mais um.

Um a um, esses casos são chamados de isolados, únicos, exceções, enquanto ocorrem às dezenas, centenas, milhares, a cada hora, minuto e segundo. Após mais uma execução, a Ouvidoria da Polícia Militar é constantemente questionada sobre essas ações que, novamente, chama de isoladas.

O que mais chama a atenção não é apenas a Ouvidoria ter o mesmo discurso a cada caso. O que sobressai é quem fala de nós, negros. Quando George Floyd foi executado pelo policial branco, em Minneapolis, na CNN Brasil, quem comentou o caso foi William Waack. O mesmo William Waack que fora demitido do Jornal da Globo e substituído por (esse sim, exceção) Heraldo Pereira.

Digo que ele é um caso raro porque, das poucas pesquisas que se fazem sobre o número de negros nas redações, a do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), de 2015, aponta que 22% dos jornalistas em postos formais são negros. Sendo que, pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), nós representamos 55,8% da população.

Somente pretos e pardos sentem as dores dos pretos e pardos, por isso a necessidade da cobertura de nós por nós. Aline Midlej, comentarista da Globo News, sabe o que é isso. Das várias vezes que entrevistou e questionou o ouvidor da polícia militar, veio a pergunta: “como assim, isto é mais um caso isolado?”. Esse é o tipo de pergunta que vem de alguém que realmente entende o que está em jogo, que viu George Floyd, cobriu Guilherme e Miguel e não engole o “caso isolado”. 

Volto a dizer que a falta de maiores estudos e dados sobre o número de jornalistas negros só reforça o descaso, e porque não dizer, desprezo, por formadores de opinião negros e negras. Mídias pretas, como Alma Preta, Influência Negra, Negrê – voltado para cobertura da população preta no nordeste –, tentam cobrir essa lacuna no jornalismo brasileiro.

Para além disso: a cobertura não se restringe a esses casos de racismo e violência. 

Pessoas pretas e pardas falam além, muito além disso. E falam em datas além de 20 de novembro e 13 de maio. Falam o ano todo, sobre todos os temas.

O programa Roda Viva com o professor Silvio de Almeida no dia 22 de maio foi um dos recordes de audiência. Entrevistadores negros, tratando sobre assuntos pertinentes, racismo estrutural e vivência preta. Ótimo.

Mas aí vão dois pontos: o professor Silvio, como ele mesmo bem ressalta em uma de suas palestras no YouTube, é especialista em Direito Tributário. Racismo é um dos temas dos quais ele trata. E pouco se falou sobre as demais especialidades do professor. 

Segundo ponto: aquela mesma bancada, composta por negras e negros, nunca mais se repetiu. Vez ou outra, um ou outro negro ou negra aparece para comentar. Ah, sim, em 20 de novembro e 13 de maio, sim. Nos demais dias, não. 

O racismo é também reproduzido nos jornais brasileiros. São Paulo – SP, Brasil, 22/07/2020. Foto: Renan Sousa/ Jornal do Campus

Falar da dor do racismo e apontar momentos de racismo é óbvio que é necessário. Mas nós, negros e negras não nos restringimos ao racismo. Não aparecemos com o racismo. Nós somos o que somos: professores, estudiosos, alunos, jornalistas, publicitários, médicos, enfermeiros e tudo que uma pessoa branca também é.

Trazer negros para redações e debates públicos é essencial para explorar o melhor da intelectualidade do país. E mais: contemplar um mundo ainda muito pouco explorado pelo próprio jornalismo. Gritamos, das cadeiras das escolas de jornalismo de todo o país, que é preciso ter diversidade, pluralidade de ideias, mas onde ela está? Em 70% das colunas de opinião sendo de homens e 90% de pessoas brancas? É essa pluralidade?

Repetimos incontáveis vezes nos estudos de jornalismo que “a pergunta é o grande ativo do jornalista”. Mas parece que, ao olhar um ambiente essencialmente branco, que reforça estereótipos e racismos (não tenhamos medo desta palavra, racismos), nos foge o questionamento.