“Imunidade de rebanho só é solução para quem sobrevive”, alerta especialista

Autoridades negam ter atingido e descartam almejar esse fenômeno para SP

Por Laura Alegre e Léo Lopes

Arte: Laura Alegre / Jornal do Campus

Com mais de dois milhões de casos de Covid-19 confirmados no Brasil, o debate sobre a eficiência da chamada “imunidade de rebanho” ou “imunidade coletiva” foi reacendido. O conceito parte do pressuposto de que quando uma parte significativa da população se torna resistente ao vírus, as pessoas ainda vulneráveis à infecção ficam mais seguras, pois a probabilidade do agente patológico atingi-las seria muito menor.

Para que essa teoria de proteção populacional natural se aplicasse ao novo coronavírus, fazendo com que sua propagação diminuísse, estudos iniciais indicavam a necessidade de 60% a 80% da população de um local ter sido infectada e adquirido resistência imunológica. Pesquisas mais recentes apontam que esse número pode ser menor, em até 43%, ou até mesmo em 20%.

No entanto, isso ainda não é motivo suficiente para se comemorar. O professor Luiz Gustavo Bentim Góes, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da USP (ICB-USP) e especialista em coronavírus, alerta que “para atingir esse valor, ainda há uma consequência muito grande nas pessoas que apresentarão sintomas severos ou as que evoluirão para óbito”.

Góes toma como exemplo a população da região metropolitana de São Paulo, que conta com cerca de 20 milhões de pessoas, para uma simulação. “Considerando a taxa de imunidade de rebanho em 60%, isso seriam 12 milhões de habitantes infectados. Imaginando que a taxa de mortalidade real do vírus seja em torno de 1%, isso equivaleria a 120 mil mortes. Então quando se discute esses quadros e se decide deixar o comércio todo aberto, sob o pretexto de que a imunidade de rebanho resolveria nosso problema, isso não é verdade. Isso resolveria o problema só daqueles que sobrevivessem”, aponta.

Mesmo que essas pessoas não sejam contaminadas ao mesmo tempo, como prevê o exemplo, ainda sim “espera-se que 20% dos infectados necessitem de atendimento hospitalar – o que significaria cerca de 2 milhões e 440 mil pessoas precisando de hospital, só na região metropolitana”, acrescenta o pesquisador. Isso corrobora com a preocupação em relação ao colapso do sistema de Saúde, incluindo a disponibilidade de respiradores e infraestrutura para intubação.

Outro fator preocupante é a incerteza da qualidade da imunidade após a contaminação e eliminação do vírus. Góes explica que isso é relacionado aos conceitos de especificidade, sensibilidade e durabilidade da imunização após a realização de testes para identificar anticorpos.  

“Não se sabe qual é a qualidade dessa imunização, nem quanto tempo ela dura”, aponta. “Em cidades do mundo onde já houve a realização de inquéritos sorológicos, houve problemas de sensibilidade, ou seja, nas chances de identificar os anticorpos de uma pessoa, e também de especificidade, que é a garantia de que aquele anticorpo encontrado é o de Sars-Cov-2, e não de outro coronavírus mais comum”.

Uma reportagem publicada no jornal americano The New York Times no final de maio mostra que nenhuma das principais metrópoles mundiais chegou à quantidade de pessoas infectadas necessárias para que ocorresse a imunidade coletiva até agora. O mesmo ocorre no Brasil, segundo o Estudo de Prevalência de Infeção por Covid-19 no Brasil (Epicovid19-BR) coordenado pelo Centro de Pesquisas Epidemiológicas da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e financiado pelo Ministério da Saúde.

Um estudo coordenado por Pedro Hallal, reitor da UFPel, revela que apenas 2,8% das 31.165 pessoas testadas em 120 municípios brasileiros apresentaram anticorpos contra a Covid-19, com margem de erro de 0,2% para mais ou para menos, e aponta para diferenças nos resultados encontrados dependendo da região. A heterogeneidade da população também é enfatizada pelo professor do ICB. “Cada região deve ser analisada sorologicamente de forma local, pois há claros contrastes nos resultados encontrados em bairros de elite e bairros periféricos, por exemplo”, afirma.

Góes desacredita na imunidade de rebanho como solução. Para ele, o conceito não deve ser usado como justificativa para intenções neoliberais de reabertura econômica, que acontecem também por pressões econômicas sofridas pelo governo, mas que não levam em conta a heterogeneidade da população. A Organização Mundial da Saúde (OMS) continua recomendando o isolamento social para desaceleração do contágio e prevenção de sobrecarga nos sistemas de saúde.

“Não há expectativa de São Paulo atingir esses números”

Um artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo pelo biólogo Fernando Reinach foi um dos grandes gatilhos para o aumento da discussão sobre o Brasil possivelmente estar verificando “efeitos da imunidade de rebanho” em locais como, por exemplo, a capital paulista. 

No entanto, a euforia da potencial boa notícia foi freada pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e o governo de São Paulo, que negaram a possibilidade aventada e reiteraram que sequer almejam atingir este patamar.

No artigo, o ex-professor do Instituto de Química da USP (IQ-USP) e do Instituto de Ciências Biomédicas da USP (ICB-USP) trouxe à tona um modelo matemático sobre imunidade de rebanho desenvolvido em um estudo sueco publicado na revista Science. Reinach comenta que a diversidade da população brasileira faz com que existam pessoas com mais chances de se contaminar e outras menos suscetíveis. 

Esse fator talvez tenha reduzido a quantidade matematicamente necessária de infectados pelo novo coronavírus para que algumas regiões apresentassem características da imunidade de rebanho. Isso poderia justificar a parcial regressão da pandemia em Manaus e na cidade de São Paulo ─ mesmo que os locais não tenham atingidos índices gerais muito altos de isolamento social.

A estagnação em número de novos casos de Covid-19 e a leve queda na ocupação de leitos na capital paulista é justificada pelo coordenador do Centro de Contingência para o Coronavírus em São Paulo, Paulo Menezes, como um resultado dos protocolos sanitários, não de uma possível imunidade de rebanho. 

“As medidas que foram tomadas e o ‘Plano São Paulo’ estão permitindo chegarmos nesse momento do platô no estado com a perspectiva de progressão para um decréscimo da pandemia”, contou o professor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) durante uma coletiva de imprensa do governo estadual no dia 10 de julho. Menezes também atribui papel relevante na contenção da pandemia ao uso obrigatório de máscaras por parte da população.

O dominicano Marcos Espinal atua como diretor da área de Doenças Transmissíveis na OPAS há uma década. Foto: Léo Lopes / Jornal do Campus

Para o braço latino da Organização Mundial da Saúde (OMS), os indícios também não são suficientes. “Não há evidências que o Brasil ou alguma parte do Brasil tenha alcançado a imunidade de rebanho”, afirmou Marcos Espinal, diretor do Departamento de Doenças Transmissíveis da Opas, em coletiva de imprensa virtual acompanhada pelo JC.

Ele contou que os números da população brasileira que já possui anticorpos para a Covid-19 ainda está longe do patamar necessário para a imunidade coletiva. Independentemente de talvez esse patamar ser menor do que se imaginava inicialmente. Além disso, Espinal argumenta que dificilmente essa porcentagem será atingida naturalmente com a disseminação do vírus.

O diretor citou diferentes estudos europeus publicados na revista científica The Lancet. Ele apontou que, mesmo em países que já estão com a pandemia em declínio, a imunidade coletiva não é atingida em números. “Pesquisas da Espanha, Suíça mostram que a prevalência sorológica é de 5% a 10%, o que não chega nem perto [da imunidade de rebanho]. Até países sem confinamentos rigorosos, como o caso da Suécia, mostrou que a soroprevalência era de 7%”, disse.

O secretário-executivo do Centro de Contingência paulista, João Gabbardo, reiterou o ponto de vista da Opas. “Em lugar nenhum no mundo a pandemia chegou tão alto assim, 40% a 45% [de infectados], para poder começar a ter redução dos casos”, afirmou em outra coletiva do governo, no último dia 17. Para Gabbardo, não há expectativa de São Paulo atingir esses números para que se veja uma melhora na pandemia.

Devido às mortes que ainda poderiam acontecer até que a imunidade de rebanho fosse numericamente atingida, o governo de São Paulo e as recomendações da OMS aparentam, neste ponto, estarem alinhados. “Não recomendamos a abordagem de se tentar atingir a imunidade de rebanho porque o custo de vidas seria altíssimo e as perdas econômicas também seriam enormes”, concluiu Marcos Espinal.