Luto, uma experiência universal com percepções únicas

Mudanças no protocolo para enterros e velórios afetam as maneiras de como as pessoas lidam com a perda

Arte: José Carlos Ferreira/Jornal do Campus.

Por Caroline Aragaki e Letícia Camargo

Uma ligação do hospital, uma mensagem de um familiar ou amigo, um bater de olhos em uma manchete. Receber a notícia do falecimento de alguém importante não é fácil, e o distanciamento social fez com que os rituais de despedida já conhecidos adquirissem novos contornos. Um velório de caixão lacrado e com limite máximo de pessoas e tempo torna nítido que a desestabilização vai muito além da economia e da rotina individual.

A estimativa é de que a cada morte, seis a dez pessoas entram em luto. Este é “um processo de elaboração de perdas, natural do ser humano”, explica Maria Julia Kovacs, professora livre docente sênior do Instituto de Psicologia (IP) da USP e membro fundador do Laboratório de Estudos sobre a Morte. No contexto da pandemia, que soma 87.618* mortes devido à Covid-19, ela afirma que se forma um luto coletivo, mas que de certa forma é próprio de cada um.

Algo que promove a melhor vivência do luto é o próprio ritual do velório, pontua Rosana Rodrigues, coordenadora do curso de Psicologia da Universidade Anhembi Morumbi. Dessa maneira, as alterações de protocolo quanto ao sepultamento “têm provocado e vão provocar um grande impacto, dificultando o processo de elaboração do luto”, diz Kovacz.

Alguns autores da Psicologia abordam a ideia de que o luto tem fases — negação, raiva, barganha, depressão e aceitação —, com Elisabeth Kubler Ross inaugurando esse pensamento. No entanto, “nem sempre a pessoa enlutada vivencia todas as fases ou em uma mesma ordem”, explica Rodrigues.

“Todas as mortes que nós estamos vendo e a perda da situação de normalidade do nosso cotidiano também pode ser considerado um luto que todos nós estamos vivendo”

– Maria Julia Kovacs, professora do Instituto de Psicologia da USP

Dentro dos hospitais, a forma de lidar e de noticiar o luto também sofreu mudanças. Viviane Cordeiro Veiga, coordenadora de UTI da Beneficência Portuguesa de São Paulo, conta que antes não havia qualquer tipo de restrição em relação às visitas e ao acompanhamento de pacientes.

Mas esse modelo precisou ser alterado em decorrência da pandemia. “Nós começamos a dar as informações e boletins diários por telefone”, diz. No entanto, ela reconhece que isso traz muito mais insegurança para a família do ponto de vista psicológico. Assim, a Beneficência Portuguesa e hospitais no mundo todo passaram a adotar as videochamadas para que familiares pudessem se comunicar com pacientes. Para Veiga, “isso trouxe benefícios muito importantes”. 

Além disso, há a notícia sobre o falecimento. Geralmente ela é dada através do médico, de forma isolada. E, assim como em todos os casos, nunca é algo fácil de ser dito. No ponto de vista de Veiga é sempre uma sensação ruim, pois não há um preparo para isso. E acrescenta: “nós sempre queremos fazer o melhor e devolver o paciente para a sociedade da melhor maneira possível”.

Segundo especialistas, as fases do luto são individuais e não lineares. Arte: José Carlos Ferreira/Jornal do Campus.

O Jornal do Campus conversou com quatro pessoas que lidaram com a perda de entes queridos durante o período de quarentena, a fim de entender como foi o processo de luto para cada um, sabendo que não é linear e nem igual para ninguém.

“Entender tudo o que ela foi e não é mais”

Matheus Souza perdeu a mãe pela Covid-19. Maria José da Silva Souza era conhecida por sua gentileza, tinha 58 anos e nasceu em uma cidadezinha do interior do Paraná, mas morava em São Paulo desde meados dos anos 80, quando se casou. Ela trabalhava como doméstica. Por ser do grupo de risco, passou a ficar em casa desde um pouco antes da quarentena ser decretada no estado de São Paulo.

No entanto, algumas pessoas da família não foram dispensadas do trabalho. Um dia, os sintomas vieram. Eram leves. Uma tosse, meio persistente, mas ela não sentia nada além disso. Depois que os outros membros da família tiveram um cessar dos sintomas, o quadro da mãe de Matheus piorou. “No médico, a gente viu que ela estava com falta de ar, o oxigênio do sangue estava baixo, mas ela não estava sentindo. Dizia que só tinha cansaço mesmo”, ele conta. Desde que foi para o pronto socorro, passou para a internação.

O período que durou 18 dias parece até curto agora, mas passou muito devagar, de acordo com Matheus, com as notícias diariamente vindo apenas por uma ligação dos funcionários de saúde. As visitas não eram permitidas. Ele lembra que um dia muito difícil foi no que ocorreu a intubação de Maria e o teste positivo para Covid-19 do RT-PCR, que demora mais para ter resultado.

“Não teve uma ligação prévia falando que a situação dela piorou e que ela ia ser entubada, só ligaram para fazer o boletim sobre os pacientes como de costume. E eu nem sei se ela soube que estava com Covid, porque foi entubada antes de sair o resultado do teste”, explica Matheus. 

Maria ficou na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) por duas semanas.  No começo, o respirador fazia quase 100% do trabalho dos pulmões praticamente. Com o passar dos dias, ela foi melhorando e, assim, os médicos retiraram a sedação e, em seguida, o respirador. “Ela ficou bem em torno de três ou quatro horas e estava respirando normal, mas depois de um tempo começou a piorar e o oxigênio caiu muito rápido. Aí ela teve uma parada cardíaca”, conta Matheus. 

Ele recebeu a ligação às quatro horas da manhã, com os médicos pedindo para que alguém fosse ao hospital com urgência e portando documentos. No caminho, imaginava as possibilidades do que iria ouvir quando chegasse. Talvez uma autorização para fazer cirurgia, talvez ela tenha falecido… 

“Eu não chorei na hora que o médico deu a notícia, fiquei meio anestesiado quase o dia todo. Acho que só ao longo do dia fui tendo consciência do que estava acontecendo. E ia resolvendo as burocracias. Ligava para alguém para dar a notícia, parava e chorava. Ia para a funerária, parava e chorava. E foi assim o dia todo.”

– Matheus Souza

Com a pandemia, a parte presencial dos ritos funerários ficou muito restrita. Matheus conta que já tinha ido em outros velórios antes, mas que dessa vez foi muito diferente. “Chegamos no hospital umas cinco horas da manhã, e o enterro ficou para às duas da tarde. No total foi muito rápido. Soubemos da notícia, resolvemos as burocracias, fomos ao cemitério, enterrou e acabou.”

Um dia após o enterro, Matheus organizou uma reunião por videochamada para as pessoas compartilharem o que lembravam da mãe dele e fazer um espécie de homenagem, um “web velório”. Ele cita que por ter ido reconhecer o corpo e conhecido o cemitério, acha que teve um certo ritual de despedida, diferente de outras pessoas da família.

“Desejei boas energias, onde quer que esteja”

Arthur Diniz perdeu duas pessoas durante a pandemia de coronavírus. A primeira foi a avó materna, Zilda Araújo. Ambos eram muito próximos quando Arthur ainda morava em Natal, antes de se mudar para São Paulo. “Basicamente todo fim de semana eu ia visitá-la, e às vezes até mesmo durante a semana. Eu era muito próxima dela”, relembra. 

Zilda estava com problema nos pulmões há algum tempo, mas da última vez piorou e não tinha como fazer a cirurgia por ser idosa. Ele recebeu a notícia do falecimento por uma ligação de telefone de sua mãe. “Foi um pouco estranho não ter visto ela devido a distância, e meio que caiu a ficha alguns dias depois… mais pelo fato da minha mãe ter ficado muito triste por não ter conseguido se despedir da minha vó”, conta Arthur.

A mãe de Arthur não conseguiu comparecer ao enterro, que já era limitado a no máximo dez pessoas no velório, porque passava por um tratamento de quimioterapia. “Acho que o que a ajudou foi o tempo, ela refletir por ela mesma que tudo bem ela não ter ido ao enterro da mãe, porque a mãe dela estaria com ela em qualquer canto. E entender que ela não precisaria estar ali fisicamente para dizer tchau à mãe.

A segunda pessoa próxima de Arthur que faleceu durante a quarentena foi o tio por parte de mãe, André Luiz, devido à Covid-19. “Ele era esposo da minha dinda, e eu era muito próximo dele. Minha família sempre passeava e viajava junto de sua companhia”, diz Arthur.

A doença respiratória estava sendo tratada e os sintomas aliviados, mas devido a interferência de remédios, a diabetes que seu tio possuía foi agravada. “Foi piorando, piorando… até que ele faleceu.” Arthur soube da perda por meio de uma mensagem no WhatsApp. 

Ele conta que em ambos os falecimentos, devido a distância por estar aqui em São Paulo, a sensação de luto não foi tão presente assim. “Acho que fiquei mais de luto pelas pessoas próximas a eles, sabe?”

“Lembro da minha mãe ainda sorrindo pra mim”

Assim como Matheus, Maria Auxiliadora também perdeu sua mãe devido à Covid. Mas, antes de saber da notícia de que estava doente, já não a via desde 2018. Maria vive em São Paulo desde muito cedo, e seus pais e irmãs continuaram morando em sua terra natal, no Pernambuco.

“Agora em junho, no dia 25, foi aniversário do meu pai, e dois anos atrás eu tinha ido visitá-lo para comemorar o aniversário de 100 anos dele”, conta. No entanto, dessa vez o motivo da ida foi para socorrer a mãe, que teve de ir às pressas para o hospital.

Tudo começou no dia 4 de maio, quando recebeu uma ligação da sobrinha: “ligou para falar como minha mãe estava e, em seguida, disse que ela desmaiou e que a tinham levado para o hospital”, relembra Maria. O momento foi de desespero, e ela não pensou duas vezes para ir até onde a mãe estava. 

“Eu saí daqui no dia 5 de maio, peguei o avião às 23 horas, cheguei na casa [de minha mãe] quase às 3h, tomei um banho e fui até o hospital.” Para vê-la, teve de esperar até o amanhecer, quando a assistente social liberou a sua entrada no quarto. 

Embora visse a mãe, a distância foi necessária. Mas ainda assim a troca de carinho não deixou de existir, “eu fiquei há uns três metros de distância da minha mãe, e ela tem glaucoma em um olho, enxerga muito pouco. Mas eu falei e ela entendeu que era eu. Pedi para que ela levantasse a mão se estivesse me escutando, e ela levantou. Fiquei emocionada e ela também”, recorda Maria.

“Essa doença é muito cruel, e as pessoas não acreditam. A minha mãe é uma pessoa muito cuidada. E ela pegou mesmo com todos os cuidados: luvas, máscaras, álcool e água sanitária que minha irmã passava na casa inteira. As pessoas não acreditam que essa doença existe.”

-Maria Auxiliadora

Esse foi um dos últimos dias em que viu a mãe com vida. Na manhã do dia 18 de maio, Maria teve a notícia do falecimento. Para ela, esse foi um dos momentos mais difíceis que já viveu. “Quando ligaram para a minha irmã às 6h, eu, por ser a única mais tranquila, tive de correr atrás de tudo”, conta.

Ela acompanhou a irmã até o hospital para conversar com a assistente social, e depois também precisou resolver problemas com documentos para o enterro da mãe. “Eu tive que correr no cartório, porque o cemitério não quis aceitar o atestado de óbito sem ser do mesmo dia”.

Depois de passar por todas as etapas estressantes e demoradas, chegou o momento de dizer adeus à a mãe. “Eu não queria ir até lá enterrar minha mãe. Queria tirá-la de dentro do hospital e levá-la para casa, curtir mais um pouco o seu aniversário, que estava planejando fazer. Enfim, até caixão tive de escolher para a minha própria mãe”, conta.

Mas, para além disso, Maria a recorda com muita alegria: “eu lembro da minha mãe dentro do hospital ainda sorrindo pra mim, assim como ela falava comigo todos os dias”. Devido à afinidade forte entre elas, mesmo distantes conversavam o tempo todo ao telefone, “pelo menos cinco vezes ao dia” contou Maria.

Para ela, falar sobre a mãe é algo maravilhoso. “Ela sempre foi uma guerreira, sofredora, batalhadora. Conhecia todo mundo, em todas as ruas, redondezas, no centro, no mercado. Foi uma pessoa muito querida.”

O legado que ela deixa é de uma excelente mãe, cuidadora [profissão] e esposa. Por isso, para Maria “minha mãe sempre foi um exemplo para mim e continuará sendo no meu coração”.

Por fim, ela alerta que as pessoas levem o vírus a sério e cuidem de seus familiares. “Graças a Deus aqui na minha casa ninguém teve sintomas.” E lamenta pelas pessoas que não acreditam, pois não deseja que o que aconteceu com sua família se repita. “Eu quero que eles aprendam a se respeitar e respeitar o próximo”, conclui.

“Ver o corpo ajuda a formalizar o luto”

Thayná Macegossa também perdeu a tia para a Covid no mês de abril, quando a pandemia ainda era algo recente no país. Apesar de não morarem juntas, o sonho de Thayná sempre foi esse, pois eram muito próximas. “Eu cresci com ela, era como a minha segunda mãe. Ela me criou desde pequena”, conta.

Com isso, esteve na sua infância e adolescência crescendo ao lado da tia e visitando-a sempre que possível: “Eu passava a maior parte dos fins de semana na casa dela até os meus 18 anos. Depois ainda ia uma vez por semana, ou duas vezes por semana”.

Mas no período em que ficaram de quarentena, isso não foi possível. Como recorda Thayná, sua tia foi internada logo no “início de tudo”.  A última vez em que se viram foi no velório de seu tio, no dia 19 de abril. Depois, no dia 26, ela foi hospitalizada.

Já no dia 10 de maio, Thayná soube de seu falecimento. Para ela, o momento da notícia foi um verdadeiro choque. “Lembro que era de madrugada, eu estava acordada, não conseguia dormir porque não parava de pensar nela. Foi então que meu primo me ligou e me disse que ela tinha morrido.  Foi um choque, eu fiquei sem chão.”

Hoje, ela acredita estar trabalhando melhor com isso, pois no começo foi muito doloroso: “não parecia [que ela se foi], sabe? Até hoje não parece”. Mas isso não quer dizer que seja fácil tocar no assunto. Para Thayná, é melhor guardar “para evitar ter contato com esse sentimento. É um meio de fuga”.

Além disso, na sua concepção, o enterro da forma como é feito em tempos de pandemia torna o processo ainda mais difícil. “É muito triste enterrar um parente, uma pessoa que você ama muito, da forma como enterramos ela. De ser tudo às pressas. E, na visão psicológica da coisa, ver o corpo ajuda a formalizar o luto.”

Para as pessoas, Thayná deixa um pedido: “que se cuidem, apenas”. E aconselha a todos o processo da terapia como “uma forma que ajuda bastante a lidar com o luto. A terapia nos faz expor o que fica guardado.”

*O número de 87.618 óbitos pela Covid-19 no Brasil se refere ao final do dia 27 de julho de 2020, segundo dados publicados pelo Ministério da Saúde.