Maternidade sob isolamentos pessoal e institucional

Período de quarentena escancara vácuo da USP no acolhimento e suporte às famílias e mães universitárias

Por Sofia Aguiar

Canto de estudo e atividades de Marina e seu filho – Foto: Sofia Aguiar/Jornal do Campus

O isolamento das mães universitárias da USP se iniciou bem antes do dia 22 de março, quando a quarentena foi decretada no Estado de São Paulo. Marina Paparotti é estudante do sexto ano de Letras e descobriu sua gravidez no primeiro semestre da faculdade. Sem saber quais eram seus direitos, ela foi à Seção de Alunos e a informaram que ela deveria conversar com seus professores para enviarem as matérias por e-mail. “Como eu era muito envergonhada, não tinha coragem de falar com os professores”, conta. No entanto, Marina comenta que sua amiga, também grávida na mesma época, seguiu o conselho da Seção de Alunos e foi falar com os docentes. “Teve um professor que falou: ‘Não sei nem o que mulher nesse estado está fazendo na área acadêmica’. Meu medo era justamente disso acontecer.”

Aline Bastos, estudante do penúltimo semestre de Obstetrícia na USP Leste, teve sua licença-maternidade negada nas disciplinas práticas, que se referem ao estágio em hospital. Como o campus da Zona Leste não possui uma creche para os estudantes, Aline matriculou sua filha em uma creche particular. “Eram só dois dias, mas foi muito difícil, minha filha era recém-nascida. Enfim, fui e encarei. Na época, tiveram consequências, porque ela mamava no peito mas, com esse dois dias que eu ficava fora, ela teve que ir para a mamadeira”, relata.

A situação de solidão, tanto pessoal quanto pela instituição, foi potencializada com o isolamento social e determinação do ensino à distância (EaD). A quarentena e as medidas de segurança de distanciamento necessárias dão brecha para a exploração da figura materna, uma vez que os pais usam como justificativa novos relacionamentos e desrespeito da quarentena para se abster das responsabilidades. O pagamento da pensão, normalmente estabelecido como pagamento escolar, também fica comprometido, já que muitas escolas concordaram em diminuir a mensalidade dos alunos. No entanto, o dinheiro que sobra não é revertido para ajudar a mãe. As ameaças são constantes, e as mães sentem a normalização do abuso de sua figura.

Estudos e trabalho

A sobrecarga do trabalho e das exigências da faculdade, somadas à falta de apoio paterno, desromantizam a rotina das mães universitárias. Marina desabafa que é complicado porque seu filho está em casa, mas ela não consegue, de fato, ficar com ele. “O que mais pesa é meu trabalho, mas outras mães devem passar por algo parecido em relação à faculdade, com professores mais exigentes. Seu filho está em casa, mas você não consegue dar atenção, brincar com ele. E o pior, você não consegue educar”, e ironiza sua situação enquanto professora de uma escola: “Eu passo o dia inteiro me preocupando com a educação dos outros e não consigo educar formalmente meu próprio filho.”

Já Aline conta que, por conta de seu curso ser integral, sua filha sente a necessidade de estar com ela o tempo todo durante a quarentena. “Ela tem um desespero muito grande”, conta. “Quando juntou essa necessidade dela em estar comigo com as matérias que eu tinha que fazer, ficou muito difícil.” 

Livros e desenhos feitos pelo filho de Marina no início da quarentena – Foto: Sofia Aguiar/Jornal do Campus

A forma como os professores organizam e se comunicam com os estudantes determina como o aluno lida com o EaD durante a quarentena. Para as mães uspianas, isso também influencia como será a relação com os filhos. Marina conta que, apesar da desorganização dos professores no início do período de confinamento, ela se sente “sortuda” por ter apenas duas disciplinas e professores compreensíveis. No entanto, a estudante de Letras conta que o trabalho a sobrecarregou: “Todos fazendo hora extra e não pagavam. Eu estava trabalhando o dia inteiro, das 7h da manhã à meia noite, e ainda, às vezes, em final de semana.”

A mesma sorte, porém, não sorriu para Aline, que achou que o semestre fosse ser mais tranquilo que os demais por ter poucas matérias, se comparado ao estudo integral de seu curso. No entanto, ela afirma que, “se eu fosse para a faculdade presencial, em um estudo normal, ia ser superleve. Mas, com tudo isso, está sendo bem pesado”. Ela comenta que “cada professor foi fazendo de um jeito. Teve professor que conseguiu ser organizado, mas outros não. Alguns falaram que a avaliação ia ser presencial e, até agora, não se posicionaram em relação a nada. Ficamos de mãos atadas, sem saber como vai ser”. 

O peso da maternidade solo cai sobre a faculdade: “É uma bagunça. E ainda tem a minha filha, que quer estar 100% junto”, conta Aline. A estudante tenta conciliar sua rotina de estudo e comenta que sempre tenta fazer alguma coisa quando sua filha dorme, “porque às 6h da manhã, ela está de pé. Se eu vou dormir tarde, no outro dia tenho que acordar cedo”. Por fim, desabafa: “Se antes eu me esforçava muito, agora preciso me esforçar muito mais.”

Diante da possibilidade de extensão do EaD até o final do ano, como divulgado pelo novo calendário da USP, é de se pensar em uma reformulação dos métodos de ensino. Aline diz que “deveria ter uma flexibilização maior em relação aos casos particulares e ter um padrão. Por exemplo, todos os professores que vão dar aula, deveriam gravá-las”. Da maneira que está sendo praticada atualmente, a estudante tem a sensação de que, como “cada um faz de um jeito, não se sabe como vai ser. Eu me sinto muito insegura. Antes, eu tinha certeza que ia conseguir me formar no final do ano, agora eu não tenho mais”.

Maternidade cruspiana

“Estou em um corredor escuro, com três lâmpadas funcionando e tem umas crianças.” Foi assim que Juliana Tutunji, estudante de Letras e moradora do Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (Crusp), deu sua entrevista. A violência doméstica fez com que a carioca e sua filha se tornassem moradoras do Bloco A, mais conhecido como Bloco das Mães. Desde então, a estudante passou a permear os espaços uspianos com seu alto astral e sotaque do Rio de Janeiro.

O Bloco A é um corredor composto por 12 apartamentos individuais de 25 metros quadrados. O conjunto deveria ser o responsável por dar moradia a todas as famílias do Crusp, uma vez que todos os demais apartamentos são divididos entre outros estudantes e não há privacidade. No entanto, segundo um levantamento feito pela Juliana – uma vez que a Superintendência de Assistência Social (SAS) não detinha as informações –, o conjunto da moradia estudantil abriga, ao todo, 25 famílias. Ou seja, mais da metade das mães e crianças moram com pessoas desconhecidas no apartamento.

Apesar dos inúmeros problemas já conhecidos por toda a Universidade de São Paulo, o período de quarentena isolou, ainda mais, o Crusp como além das obrigações e ações da faculdade e assistência social. Juliana conta que, atualmente, um dos maiores problemas que as famílias vivenciam é a falta de manutenção do espaço. “Aqui no nosso bloco, em específico, no início da pandemia, tivemos problema de infestação de rato, vazamento de gás, desabamento do teto, os nossos fogões estavam com buracos por causa da ferrugem.” Segundo ela, “a nossa vida nesses 100 dias [de isolamento] foi ficar mandando e-mail para a SAS diariamente e, depois de um tempo, semanalmente”, desabafa. “A gente manda e-mail e não recebemos resposta. A gente manda proposta, mas não recebemos a solução.” Por fim, elas foram obrigadas a aceitar o despejo institucional. “A gente percebeu que dialogar com a SAS não adianta em nada e que precisamos arregaçar as mangas e fazer por nós mesmas”, comenta. 

No início da pandemia, uma das primeiras medidas tomadas pelas mães foi a de suspender a entrada dos funcionários terceirizados para fazer a limpeza, como forma de garantir a quarentena o máximo possível. Juliana fala, então, que as famílias se reuniram para limpar, capinar o canteiro e pintar o espaço. “É muito difícil a gente estar tendo que se preocupar com isso, e a universidade não. Porque, se a gente fosse deixar, o espaço estaria tomado de rato, de lixo.” Juliana aponta que muitos dos entendimentos entre vizinhos são pela falta de limpeza e ajuda frente ao derramamento de responsabilidades e obrigações aos cruspianos. Juliana entende que “a ausência da SAS fez com que os vizinhos se desentendessem”.

A estudante de Letras afirma que o lixo encontrado quando fizeram a limpeza variava de roupa caída do varal até pino de cocaína e camisinha usada, mesmo “sabendo que os vizinhos de baixo são todos crianças”, destaca, e relembra: “Aqui tem que ser um espaço de acolhimento, porque tem criança. Não pode parecer um puteiro, avacalhação.”

Crianças na horta do Crusp – Foto: Juliana Tutunji

Direitos básicos roubados

A pandemia fez com que a USP interrompesse as refeições do Bandejão Central e passasse a distribuir marmitas no bandejão da Faculdade de Química. Para evitar aglomeração, as estudantes solicitaram à SAS a possibilidade de haver entrega de comida aos moradores. A entrega foi feita, no entanto, apenas para as crianças. Depois, os alimentos passaram a ser distribuídos para as mães, crianças e pessoas com mobilidade reduzida. A SAS contratou uma companhia para fazer o transporte das marmitas e deixá-las no hall do Bloco A. Porém, ocupantes que não têm vínculo com a USP roubam a comida, já insuficiente para os moradores legais e pessoas em condições especiais. A estudante conta, inclusive, que roubaram dez marmitas de uma vez e as colocaram na mochila.

Segundo Juliana, ela entendeu que “a ideia da SAS era que a gente controlasse. Mas não tenho obrigação de desprender todo dia para a USP, não tem como ficar desprendendo alguém para ficar sempre controlando comida. A USP não está dando conta”, e comenta: “Ontem, por exemplo, fiquei sem jantar.”

Para explicitar a solidão institucional da universidade e assistência, as estudantes criaram uma página com fotos, gráficos e informações expondo a situação do Crusp. O site mostra a precariedade da estrutura do conjunto habitacional, e mostra que muitas das marmitas entregues têm comida estragada.

A ausência institucional evidencia a rejeição de direitos básicos sociais, como segurança, saúde e alimentação, e evidencia um sistema precarizado há tempos. Segundo Juliana, “a USP dispensou todos os seus funcionários com risco, com mais de 50 anos, mas eles são a maioria”. Dessa forma, o Crusp tornou-se um lugar vulnerável, em especial para as mães. 

Doações

As mães cruspianas estão recebendo o apoio da comunidade acadêmica, entre professores e pesquisadores, mobilização de alguns Centros Acadêmicos (CAs), instituição religiosa, alunos e movimentos sociais. O apoio varia desde doações de cestas básicas até oficinas e kits para as famílias.

O departamento FoFiTO (Fonoaudiologia, Fisioterapia e Terapia Ocupacional) é uma das ativistas na elaboração de campanhas de solidariedade e oficinas de educação para o Bloco das Mães. Bárbara Dionízio, presidente do Centro Acadêmico Arnaldo Vieira de Carvalho (CAAVC), entidade estudantil que representa os alunos da FoFiTO, comenta que a ação de ajuda às mães cruspianas começou na época do seu aniversário. “Fiz uma vaquinha on-line e pedi às pessoas que fossem me dar presentes, depositassem na campanha”, conta a presidente. 

Bárbara conta que, com o dinheiro arrecadado, conseguiu comprar frutas, legumes e alguns itens de limpeza. Além disso, o CAAVC doou parte de seu caixa. Como o distanciamento social foi prolongado, a presidente decidiu formalizar as doações em uma vaquinha como meio de recebimento das doações. Atualmente, a campanha já está em sua terceira edição, com foco em lavar as mãos como forma de prevenção. 

Campanhas realizadas às famílias do Crusp em parceria com o CAAVC – Fotos: Bárbara Dionízio e Juliana Tutunji | Colagem: Hugo Vaz/Jornal do Campus

Em nota, o CAAVC explicou sua atuação em ajuda ao Bloco das Mães.

O CAAVC entende que uma universidade pública faz parte de uma maquinaria construída (supõe-se) para o enfrentamento às desigualdades sociais, não para sua manutenção. No entanto essa não é a realidade vivenciada pelas moradoras do Bloco de Mães do CRUSP que sofrem o abandono institucional e as consequências do silêncio das instâncias omissas dessa Universidade. Por isso, iniciamos campanhas de solidariedade ativa que foram realizadas destinando ao bloco de mães, doações de frutas, legumes, leite e demais alimentos e produtos de limpeza bem como campanhas de educação em saúde para as crianças. 

Na atual conjuntura, somos estudantes por estudantes e convidamos os demais centros acadêmicos a participarem dessa campanha, doando e compartilhando o link da vaquinha , ou entrando em contato conosco por nossas redes sociais caso tenham outro modo de ajudar!

Para ajudar o CAAVC na luta pelo Bloco das Mães no Crusp, clique aqui

 

Doação de cestas e alimentos perecíveis em abril, em parceria com o CALC (Centro Acadêmico Lupe Cotrim) da ECA (Escola de Comunicações e Arte) / Recebimento das doações em março / Oficina de agroecologia em parceria com a Bancada Ativista do PSoL (Partido Socialismo e Liberdade) e MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) – Fotos: Barbara Dionizio e Juliana Tutunji | Colagem: Hugo Vaz/Jornal do Campus

Afinal, a USP é para quem? 

A atual situação das mães universitárias na USP pode ser definida pelas seguintes afirmações de Juliana: “É um filtro social e a pandemia está escrachando mais ainda. É um excesso da cobrança das obrigações.” A falta de visibilidade para a pautas das mães estudantes é gritante na universidade, em que estudantes carecem de oportunidades, vaga nas creches, estrutura para o filho na faculdade e, acima de tudo, direitos. A faculdade normaliza a situação das mães solo e o abandono enraizado na sociedade. 

Juliana lembra que a USP foi a última universidade pública a aderir o sistema de cotas, em um contraste de fazer a propaganda por ser a melhor faculdade da América Latina. “Com as cotas, mais pessoas vão precisar desse espaço. Mas para quem é feita a universidade, quem de fato tem direito de fato a permanecer na faculdade?” É a junção de um problema estrutural com a alienação social: “A USP não está olhando para si mesma, não vê que os problemas que ela tem, muitas vezes são problemas que ela agrava. Não faz sentido o slogan ‘A USP não pode parar’ sendo que a própria universidade está esmagando aqueles estudantes que mais dependem da estrutura pública funcionando”, desabafa. 

A moradora do Crusp também aponta a contradição em comparação a outras universidades na forma em conduzir as aulas. “Nas outras instituições, os professores estão fazendo lives temáticas, e os nossos estão preocupados em seguir conteúdo.” E questiona: “O que a gente pode servir para a sociedade?” 

Frente ao discurso de que a USP não é assistencialista, Juliana reitera qual deveria ser o propósito da universidade: “A USP tem que existir para dar motivação para as pessoas sonharem. Só existe porque tem demanda. Ela não tem que dar, mas tem que contribuir para com a sociedade.”

* Tentamos contato com a SAS e a Assessoria de Imprensa da USP diante das denúncias apresentadas, mas não recebemos resposta até o fechamento desta matéria.