Modelo de digitalização ressalta novas maneiras de cultura, mas não dá conta da inclusão

Austeridade fiscal e ausência de políticas públicas exigem uma preparação do setor da cultura no pós-pandemia, com aspectos positivos e negativos

Por Sofia Aguiar

Medidas de prevenção para a entrada na Livraria Martins Fontes, em Santos. Foto: Sofia Aguiar/Jornal do Campus

“Quem nos salvou nessa quarentena? Não foi o Bolsonaro nem as políticas sanitárias”, questiona Jorge Freire, ator e produtor cultural, ao analisar o estilo de vida do brasileiro durante o período de isolamento social pelo novo coronavírus. A resposta para a pergunta destaca uma nova interpretação de cultura como sustento e refúgio durante a pandemia: “foram as lives”, responde o ator.

As novas medidas de isolamento tiraram um dos grandes pilares das expressões culturais: o contato social. Na paralisação de aglomerações e plateias, o setor enfrenta demissões, fechamentos de empresas e abandono de artistas que não têm como se manter. Na parte da política, a cultura é também alvo de abandono e falta de lideranças, como a destituição de Regina Duarte como ministra da Cultura sem respostas à movimentação dos artistas por medidas públicas para aliviar os efeitos crise.

Enquanto o suporte público não chega, o setor se organiza como pode para amenizar a situação. Sob a impossibilidade de contato, a nova agenda cultural se baseia na potencialização de um modo digital e utilização de tecnologia de informação e comunicação. No entanto, engana-se quem acredita que a vulnerabilidade do setor seja decorrente apenas da pandemia. Para Jorge, o mergulho no campo digital já era uma tendência nos últimos anos, principalmente pela crise enfrentada, mas que será potencializado. “As políticas de subsídio para que os grupos não fechem são voltados para o digital. Todos os lugares que fomentam cultura já estão atentos a essa nova plataforma”, analisa o produtor.  

Novos públicos

Rumores de que o coronavírus iria impactar drasticamente a cultura transformaram o início da pandemia em um momento de muita incerteza para a Companhia das Letras. Com uma produção baseada principalmente em lançamentos e venda de livros físicos, a visão era a mais pessimista possível. Marina Pastore, gerente de Projetos Digitais da empresa, comenta que, apesar do cenário, as novas formas de produzir conteúdo mostraram que “a crise é da livraria, não do livro”. Com ações como disponibilização de e-books grátis no início da pandemia e produção de lives, “o que estamos vendo é que o e-commerce conseguiu recuperar uma parte que foi perdida com o fechamento das livrarias físicas e que o e-book está tendo um crescimento muito grande”, aponta Marina.

Período de pandemia registra um forte aumento nas buscas por plataformas digitais de leitura. Gráfico: Vital Neto/Jornal do Campus

“Nos primeiros meses, a gente viu uma queda geral no mercado mas, em junho e julho, se comparar com o ano passado, está mais ou menos estável. Dados da Nielsen apontam que, olhando para o mercado em geral, no mês passado, tivemos uma queda de apenas 3%, um resultado muito melhor do que esperávamos no início”. A gerente comenta que a estratégia utilizada é a de “produzir conteúdo onde as pessoas estiverem”. Com isso, a nova forma de produção cultural ganha expansão e chega a públicos antes excluídos pela questão física. 

“A resposta das redes sociais é de que as pessoas estão realmente experimentando e se acostumando com esses novos formatos” e complementa: “estamos conseguindo atingir pessoas do Brasil inteiro. Com os eventos presenciais, a gente acaba ficando muito restrito às capitais, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro.”

Estados brasileiros lideram na pesquisa por plataformas digitais de leitura. Gráfico: Vital Neto/Jornal do Campus

Apesar de os novos formatos terem sido medidas pensadas para o período de pandemia, Marina ressalta que eles vieram para ficar. “Semana passada, lançamos uma plataforma de cursos on-line com a visão de expandir os lançamentos dos nossos autores para mais pessoas. Já para as lives, temos uma programação para os próximos meses”, ela planeja. “Acredito que mesmo depois da pandemia isso vai continuar. Talvez não com tanta frequência, mas não é uma coisa que vai passar”, enfatiza. No entanto, ela não descarta uma volta mais potente das livrarias: “no pós-pandemia, o que esperamos é que as livrarias físicas voltem com alguma força porque elas são um espaço muito importante de cultura.”

Recorte sincero

O pós-pandemia sufocará ainda mais aqueles aquém do movimento mercadológico. “A cultura precisa da rua, mas ela também precisa de dinheiro. Não é só o problema da pandemia, é o problema da pandemia e a fragilidade das cadeias produtivas do setor no Brasil”, analisa Leandro Valiati, especialista em economia da cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Queen Mary University de Londres. Para isso, a Companhia das Letras lançou um fundo de auxílio a pequenos livreiros para resistirem não só durante o período mas, principalmente, no pós. 

Leandro aponta que o novo caminho adotado da digitalização e tecnologia funciona muito bem para o artista que tem um grande público e, justamente para esse público, o artista tem capacidade de arrecadar patrocínio. “No entanto, esse é um canal de bens e serviços culturais que não é democrático, apesar de aparentar ser. É um modelo que funciona para o grande, mas não funciona para a cultura popular e artistas independentes”, afirma o especialista. Jorge aponta que é preciso também olhar e se preocupar com o “mestre do Maracatu, com o samba de caixa que não vão fazer lives.” Para o ator, “o problema é que a plataforma digital não dá conta e o resultado da pandemia é o Estado não sabe lidar direito com cultura.”

Segundo o especialista em cultura, a maior parte da atual produção no setor não está sendo monetizada, o que causará um grande problema de sustentabilidade. Para ele, o que deve ser levado em conta no pós-pandemia é que, dentro da escassez dos investimentos públicos, a sociedade precisa eleger prioridades. “E nós precisamos entender que a cultura é uma prioridade, sobretudo porque ela está conectada com uma agenda de retomada econômica mais rápida.” 

Leandro aponta que a cultura é um setor que oferece caminhos inovadores para sair da crise, na possibilidade de vender produtos culturais brasileiros no exterior e nos canais digitais. “Mas sempre lembrando da inclusão e democratização”, reforça. “A forma como estamos lidando com a tecnologia é uma questão importante, quase que de sobrevivência para o setor cultural no momento, mas precisamos prestar atenção na necessidade de inclusão do meio digital.” Para além de novos projetos, é necessário refletir sobre como incluir pessoas e as demais manifestações culturais nos formatos. 

Agenda pública no pós-pandemia

“Dentro da intensificação da pandemia, se intensifica a busca pelas soluções. Como o problema aumentou, fica evidente a falta de financiamento da cultura, novos modelos de negócios, incentivo público e concentração de mercado”, Leandro analisa. Para ele, o período reforçou a necessidade de políticas públicas para o equilíbrio no mercado cultural. Apesar de a tecnologia ser um caminho inevitável, “é preciso, como sociedade, criar condições para que isso seja em benefício de todo o mercado. Isso é fundamental para o mercado cultural sobreviver.”

Na análise do cenário atual, até Jorge, que esbanja utopia e otimismo, surpreende com uma fala de choque de realidade. “O tempo presente, sem olhar para frente, é o pior cenário que poderíamos ter: empresas e produtoras falindo, pessoas desistindo. A gente acredita que a lei emergencial Aldir Blanc vai dar um fôlego, mas ela  não é suficiente, sobretudo para as empresas.” Para ele, além de uma renovação artística, que deve perdurar na agenda da cultura como resultado dos esforços do setor na pandemia, é preciso três itens.

“O primeiro se refere às políticas emergenciais de acesso a recursos. O segundo é uma linha de crédito para quem empreende na cultura.” O último, por fim, segundo ele, é “elencarmos uma bandeira, uma agenda pública ampla e o governo abraçá-la: editais, aumentar a porcentagem e o orçamentário das políticas culturais. E, depois que a gente sair do buraco, é necessário qualificar a forma de repasse”, afirma o ator.

Leandro acredita que as atividades culturais vão liderar a retomada econômica pós-pandemia e enxerga que “o investimento deverá vir da esfera dos estados e municípios para compensar a profunda diminuição do investimento federal.” Mas reitera a importância de mobilização social para que haja mudanças. “A cultura está sendo muito atacada ideologicamente. Acredito que seja o momento para a sociedade empoderar o setor cultural valorizando-o. Só isso vai mudar as políticas públicas brasileiras de modo a conseguir atender o setor público com recursos para importância dele.”

Novo cenário para o exercício cultural 

A nova forma de consumir cultura será impactada pelo atual abandono no setor. A precariedade e sobrevivência dos artistas, aquém de auxílios públicos insuficientes durante a pandemia, trará como consequência um aumento da exclusão. Na visão de Leandro, o custo de produção para o teatro vai aumentar bastante pelas medidas de prevenção em relação ao coronavírus e a capacidade de público vai diminuir pelas medidas de afastamento. “Consequentemente, os preços vão aumentar e fará com que a atividade cultural presencial seja cada vez mais restrita”, aponta.

A arte irá se transpor também para o digital e medidas adotadas não serão esquecidas, mas aperfeiçoadas, como aponta Marina. Está sendo atingido um outro grupo com a nova forma de cultura, mas a arte física foi deixada de lado pelo poder público e ela tem complicada adaptação para o modelo digital. O questionamento sobre os espaços da arte é inevitável. Leandro afirma que, especificamente para o teatro, “é muito importante que se pense sobre os espaços onde vai ser produzido; se nós temos uma estrutura adequada ou se precisamos de mais espaços adequados às nossas necessidades”, questiona.

No entanto, Jorge retoma seu tom utópico, como ele mesmo aponta, e acredita em uma ressignificação da cultura para a sociedade e, consequentemente, maior possibilidade de fazer arte. Apesar de medidas de isolamento social permanecerem em vigor mesmo após a pandemia, exigindo mudanças no contato da cultura, o ator acredita que haverá uma ressignificação do teatro com o espaço público e que ele irá retomar seu compromisso com a cultura nacional. 

“Talvez haja uma explosão de experiências de performance, de coisas feitas no olho no olho, sem o grandioso. É como se a pandemia proporcionasse um resgate de significação, para que a gente trilhe o caminho de novo pra gente chegar onde chegamos.” E o ator finaliza: “tomara que cheguemos num caminho melhor.”