Não tão “livres de Covid”: funcionários do HU vivem entre o silêncio e o vírus

Pacientes chegam ao Hospital Universitário (HU) por outros motivos e descobrem que estão com coronavírus; trabalhadores com comorbidades não foram liberados

Por Tainah Ramos

Funcionários do HU-USP protestam por maior proteção e liberação do grupo de risco durante a pandemia do novo coronavírus no fim do mês de maio. São Paulo/SP – Brasil. Foto: Sintusp.

Dor de cabeça forte e frontal. Foi assim que a técnica de enfermagem Maria José começou a sentir os sintomas de sinusite no final do mês de maio. Antes de conseguir um atestado, ela seguiu seu trabalho no HU-USP, onde atua há quase 25 anos no setor de UTI para adultos.

No entanto, desde o dia 9 de abril, quase um mês após a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar a pandemia do novo coronavírus, a servidora passou a atuar na Unidade Básica de Assistência à Saúde (Ubas), onde ocorre atendimento primário para funcionários.

A técnica de enfermagem, Maria José, cuidando de um paciente na UTI do Hospital Universitário da USP. São Paulo/SP – Brasil. Foto: Arquivo Pessoal.

A profissional relata que esses sintomas de sua sinusite crônica, como falta de apetite, dificuldade em sentir cheiros e o gosto da comida, não costumam ultrapassar o período de uma semana, mas agora persistiam. Preocupada, Maria José fez o teste da Covid-19 no gripário do HU. Foram três dias até o resultado positivo que saiu no dia 30 de maio. Segundo a funcionária, demorou mais de um mês para que começasse a melhorar e conta que ainda está com urticária ‒ lesão vermelha e inchada na pele ‒, a qual não sabe se foi consequência da doença.

A senhora de 61 anos explica que além da idade seu medo com a infecção vinha também pelo fato de, em 2017, ter tido uma fístula liquórica no nariz, que a manteve afastada por meses. Ainda, seu marido tem mais de 60 anos e possui outros problemas de saúde.

Para a técnica de enfermagem, ter sido transferida de setor acabou sendo um fator negativo para a proteção dos funcionários, uma vez que, pela experiência na UTI, sabiam melhor como se proteger. “Começaram com as transferências, mas era chover no molhado. Quem era da UTI passou para a clínica médica, o que foi pior. O tempo todo chegavam informações de que tinha gente contaminada.”

 

“Cenário de aflição, dúvida e medo”

Maria José é um exemplo do drama vivido por trabalhadores do HU desde o início da pandemia. Nos primeiros dias, havia falta de organização e de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs).

Funcionários relatam que, enquanto eles se preocupavam com a possibilidade de contaminação, se iriam liberar pessoas com comorbidades, a Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH) e a Superintendência se negavam a dar explicações.

“Ninguém esclarecia nada. Depois que passaram 15 dias a partir de 13 de março, a coisa já estava acontecendo dentro do HU. Era um cenário de muita dúvida e medo. A gente na condição de risco, com comorbidades, procurava um apoio para saber o que a gente podia fazer, mas ninguém dava. Foi o Sindicato quem deu bastante força para a gente”, explica.

Médico do HU, Gerson Salvador trabalha na Emergência e desaprova a decisão de que pessoas do grupo de risco sigam trabalhando normalmente. Segundo ele, mesmo no gripário, onde podem chegar possíveis casos de coronavírus, continuam atuando. “A política para o afastamento dessas pessoas não é clara. De alguma maneira, o próprio governador do estado de São Paulo deixou os profissionais de saúde à mercê. Quando ele coloca um decreto de que as pessoas com mais de 60 anos e com condições de saúde devem ficar em teletrabalho, ele excluiu profissionais de saúde. E o Hospital não teve nenhuma política proativa para protegê-los.”

Em um e-mail à comunidade USP, datado em 2 de abril, a Reitoria afirmou que “a dispensa irrestrita do trabalho para o contingente específico de funcionários com idade superior a 60 anos, com comorbidades ou com filhos menores de 10 anos equivale, na prática, a fechar a instituição, pois esse grupo corresponde a cerca de 30% dos recursos humanos do HU”.

“Livre de Covid”

No mesmo comunicado, o órgão máximo da Universidade declarou que ele “se preserva como hospital ‘livre de Covid-19’”, já que as internações da doença são realizadas no Hospital das Clínicas (HC). O termo foi uma repetição das palavras da Superintendência e é criticado pelos trabalhadores, porque “dada a situação do país e a circulação do vírus, é improvável que um hospital consiga ficar livre”.

Faixa de manifestação dos funcionários do HU-USP por proteção e liberação do grupo de risco durante a pandemia da Covid-19. São Paulo/SP – Brasil. Foto: Sintusp.

Segundo os relatos, existe uma margem de que cerca de 100 servidores e terceirizados do HU tenham sido contaminados. A auxiliar de enfermagem e diretora do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp), Rosane Meire Vieira, afirma que pacientes iam ao Hospital por diversos motivos e depois se descobria a infecção por coronavírus: “Teve quem internou por diabetes e depois viu que era Covid. Internou para fazer uma cirurgia e depois apresentou sintomas de Covid. Foram encaminhados para o HC, mas ficaram lá na enfermaria até descobrirem”.

Com base nessas situações, Rosane defende que todos os funcionários que lidam diretamente com pacientes tenham acesso a EPIs. De acordo com a auxiliar de enfermagem, na reunião com o Conselho Deliberativo, foi declarado que havia material estocado para cinco meses.

Para uma fonte que não quis ser identificada, o HU segue as recomendações da OMS com relação ao uso e fornecimento de equipamentos, mas que a demanda dos trabalhadores por maior proteção, principalmente os que são do grupo de risco e não foram liberados, é válida e justificável. Segundo os dados oficiais divulgados no site da instituição, das 2.317 internações que ocorreram entre março e maio, 62 pacientes foram confirmados como casos de coronavírus.

Pouco caso

Uma das principais queixas de quem trabalha no hospital é a falta de comunicação da Chefia. “Ninguém te acolhe, ninguém te dá resposta. As pessoas têm que ser tratadas como pessoas”, afirma Maria José.

Moradores da comunidade São Remo, vizinha da USP, também criticam o pouco caso da Administração do HU e classificam que falta ética e humanidade no modo como são tratados. “É um hospital que não acolhe sua população da Zona Oeste”, denuncia o conselheiro da UBS da São Remo e representante da Associação de Moradores, Givanildo Oliveira dos Santos, em tom de indignação. Embora a Superintendência afirme que o lugar é “livre” da doença e está a se dedicar a outros atendimentos, consultas e tratamentos oferecidos anteriormente foram desmarcados.

Em seu mais recente Boletim Semanal sobre a pandemia, que se refere à semana do dia 24 de junho a 1º de julho, o Hospital Universitário divulgou que, a partir de 18 de junho, foi iniciada uma coleta de amostra de sangue de todos os servidores para realizar testes para indicar se a pessoa teve contato com o vírus. Até o momento foram colhidas 1.083 amostras, das quais 740 já passaram por exames. Desses 740, 86 apresentaram presença de anticorpos para o coronavírus, o que indica uma proporção de 11,6% até o momento.

No entanto, terceirizados e residentes não foram incluídos nessa testagem.

Questionada sobre o número de funcionários que testaram positivo para a Covid-19 e qual média de testagem diária, bem como a regularidade de distribuição de EPIs e o motivo pelo qual nem mesmo profissionais do gripário com comorbidades foram liberados, a Administração do HU não respondeu até o fechamento da reportagem.