Pós-graduação em quarentena

Prazos, continuidade das bolsas e queda na produtividade são algumas das preocupações dos estudantes

Por Bianca Muniz

Colagem feita a partir de fotos de Bianca Muniz e Marcos Santos/USP Imagens — Arte: Bianca Muniz

A pandemia de Covid-19 trouxe destaque para a produção acadêmica nacional. A ciência brasileira tem se mostrado essencial nas pesquisas sobre o vírus e na busca por tratamentos e vacinas. Quem é peça fundamental para o andamento das pesquisas são os estudantes de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado):  cerca de 80% da produção científica está ligada aos programas de pós-graduação. No entanto, apesar da contribuição para o conhecimento, os pesquisadores — sobretudo aqueles que não estão envolvidos nas pesquisas sobre o coronavírus — enfrentam problemas para dar continuidade aos seus estudos durante a pandemia.

Samuel Caetano, estudante de mestrado em Sistemas de Informação na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP conta que com o início da quarentena, a pós-graduação não suspendeu as atividades, mas passou muitas delas para o modo remoto, como aulas e reuniões. “A única coisa que a gente ficou impedido foi de frequentar o campus de forma presencial”, conta.  No entanto, segundo ele, “a experiência de fazer um mestrado no laboratório é diferente, porque você tem contato com outras pessoas, tem interação social, tem uma discussão de ideias muito maior do que no remoto, que é só você e o seu orientador.”

Para o acompanhamento das aulas, a Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PRPG) disponibilizou kits de internet para alguns alunos, com um chip para celular ou um modem portátil. O ensino remoto permite que muitos pós-graduandos cumpram os créditos exigidos para a obtenção do título de mestrado ou doutorado mesmo em isolamento social. Paloma Segura, que iniciou seu mestrado em janeiro no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) avançou nas disciplinas durante a quarentena. “A maioria dos professores, pelo menos das disciplinas que eu fiz, demonstraram compreensão da situação. Tiveram dificuldades, mas eles se adaptaram para isso. Está todo mundo tentando seguir”, relata.

Apesar da tentativa, a passagem para o EAD  não garante o mesmo aproveitamento de uma aula presencial. Pelo contrário, há queixas sobre a falta de didática e carga horária pesada das aulas. Raquel, mestranda no Instituto de Física (IFUSP) e representante discente na Comissão de Pós-Graduação conta que não conseguiu realizar as duas disciplinas em que se matriculou no primeiro semestre. Uma delas foi cancelada e a outra, que visava a formação de professores, ela preferiu trancar. “Nessa matéria eu ia acompanhar as aulas de algum docente. Didaticamente ia ser muito ruim acompanhar um professor lecionando a distância.”

Mas não é somente o ensino remoto que afetou as atividades de pós-graduação; muitos alunos só conseguem dar andamento ao seu projeto de pesquisa com trabalho presencial. É o caso de Daisy Fragoso, aluna da Escola de Comunicações e Artes, que desenvolve trabalho sobre práticas musicais na escola Guarani, em Parelheiros. Ela, que cumpriu todos os créditos de aula exigidos pelo seu programa de pós-graduação antes da pandemia e fez seu exame de qualificação através de videochamada, se preocupa com os próximos passos do projeto. “Eu tinha deixado a maior parte do trabalho de campo para fazer esse ano. A escola fechou e não pude ir à aldeia, porque fiquei preocupada em colocar os indígenas, moradores de lá, em risco”, conta.

Os trabalhos que não são relacionados às pesquisas sobre a Covid-19 também ficaram impedidos de prosseguir dentro dos laboratórios do ICB. Paloma conta que desde o dia 19 de março o seu grupo de pesquisa se reúne apenas on-line para discussão de artigos e a parte experimental das pesquisas foi interrompida temporariamente. “Não tem como fazer experimentos que envolvem manipulação animal e cultura de células somente com teoria.”

Outra preocupação dos pós-graduandos são os prazos de qualificação e defesa de seus trabalhos e a continuidade das bolsas pelas agências de fomento. Em abril, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) publicou uma portaria em que poderia prorrogar por até três meses o financiamento durante o período de pandemia. “Na época isso acabou me confortando um pouco, mas a gente está mais que três meses em casa, então começa a dar uma preocupada com a entrega”, conta Paloma, que é bolsista da Capes.  

A USP aceitou a prorrogação dos prazos, mas o aluno deve solicitar à Comissão de Pós-Graduação de seu curso antes, o que pode burocratizar o processo. Diante disso, a Associação de Pós-Graduandos Helenira Preta Rezende redigiu uma carta e um abaixo-assinado solicitando que os pedidos de prorrogação não necessitem de aval do professor orientador.

 

 

A Associação de Pós-Graduandos da USP-Capital divulgou um abaixo assinado para a prorrogação universal dos prazos da pós-graduação — Foto: Bianca Muniz

A necessidade da autorização do orientador possibilita casos de chantagem e assédio moral. “Como o prazo em que o pós-graduando defende seu trabalho é importante para a nota Capes do programa, quanto mais rápido o aluno concluir sua pós-graduação, melhor para o programa. E tem programa que não quer saber se a gente tá no meio de uma pandemia ou não”, conta Raquel.

Nesse sentido, uma denúncia enviada à Ouvidoria da USP informou sobre orientadores coagindo alunos de pós-graduação a retornar às atividade de pesquisa no Instituto de Química (IQ). Carla Santana, ex-representante discente do IQ, soube do ocorrido através de um e-mail enviado à comunidade de discentes e docentes. Ela diz que não se surpreendeu: “Existem diversos casos de coação/abuso moral dentro da academia. Essas atitudes foram normalizadas ao longo do tempo”. Para Carla, a academia não possui recursos para acompanhar o comportamento de gestão pessoal de cada orientador com os seus orientandos. “Além disso, não é culpa dos alunos (na verdade, de ninguém) a possível queda da produtividade durante a pandemia”, completa.

Procurada pelo Jornal do Campus, a CPG do Instituto de Química respondeu que “tem estado constantemente em contato com alunos e professores esclarecendo, mediando eventuais problemas e reforçando as orientações da Reitoria da USP”. 

Essa possível diminuição da produtividade acadêmica tem várias explicações. Uma delas, é o aumento da carga de trabalho em casa. Daisy e Raquel são professoras e se queixam do cansaço com a reformulação de suas aulas para o EAD, necessária para minimizar as perdas didáticas. De acordo com o levantamento do projeto Parent in Science, a queda na produção científica durante a pandemia é ainda maior em mulheres, que equilibram demandas como trabalho, família e ciência. 

Daisy, que mora com seu marido que também é pós-graduando, diz que com o home office tem sobrado mais tempo para ambos trabalharem na tese; no entanto, o seu foco é atrapalhado pelas preocupações com a pandemia. “Consegui mexer bem pouco na tese. Eu sento para escrever, mas me vem um desânimo. Fico preocupada, parentes podem ficar doentes ou morrer pela Covid-19”. Ela diz que seu marido tem produzido mais durante o isolamento social, visto que o trabalho de servidor público e a sua pesquisa podem ser feitas remotamente, através de entrevistas pelo Google Meets ou telefone.