Especial ensino remoto: a jornada da Poli e da Each pelo primeiro semestre de 2020

 

 

por Rafael Sampaio

Foto: Marcos Santos

 

A transição das aulas presenciais para as remotas foi, com justiça, um grande desafio para todas as unidades da USP; desafios distintos, porque elas são diferentes. Os institutos, as faculdades e as escolas da USP distinguem-se por várias razões como orçamento, perfil dos estudantes e infraestrutura. Diferenças que explicam, em parte, os tempos desiguais levados para iniciar o ensino remoto. A transição levou semanas para algumas unidades; para outras, meses. Na Poli, não houve trégua. Imediatamente ao anúncio da suspensão das aulas presenciais, as remotas começaram.

“A Poli não parou. No máximo, paramos três dias; então, todos estavam no ensino remoto”.

–  Fernando Akira Kurokawa, vice-presidente da Comissão de Graduação.

Significativo para a rápida transição, foi a experiência prévia de vários professores com o uso do sistema e-Disciplinas (Moodle da USP). Com a pandemia, o uso tornou-se generalizado e mais complexo. Fernando Akira Kurokawa, vice-presidente da Comissão de Graduação, explica: “Havia uso anterior do e-Disciplinas, hoje ele é amplo e mais intenso. Antes, usávamos para colocar material, sem a clareza do potencial da ferramenta”, ele continua. “Sistema genial. Comento com colegas de outras universidades que a Poli só conseguiu introduzir de forma rápida o ensino remoto pela existência do e-Disciplinas. Fazemos tudo lá: colocamos aula, vídeo, tarefas e provas”.

A celeridade não foi apenas motivo de aplausos. Houve vaias. Diante do anúncio do imediato início das aulas remotas, feito no dia 16 de março, as entidades estudantis da Poli reivindicaram o direito de todos os alunos acompanharem as aulas. Essencial era, primeiro, garantir o acesso à internet e a equipamentos adequados para todos os estudantes. Demanda justa. O elitismo histórico da Poli tem mudado, mesmo que lentamente: em virtude do sistema de cotas, pelo menos 395 dos ingressantes em 2020 (de um total de 870) são provenientes de escolas públicas.

Questionada sobre as dificuldades dos estudantes, a direção da Poli respondeu com certa insensibilidade. De acordo com informações do Diretório Acadêmico Poli USP – órgão que reúne os nove centro acadêmicos, o Grêmio Politécnico e a Atlética – os alunos com problemas teriam sido orientados a acompanhar as atividades remotas nas Salas Para o Aluno (SPA) – salas de informática de uso exclusivo de alunos da Poli. As SPAs ficam dentro do conjunto de edifícios da Poli. Enquanto todas as universidades do estado suspendiam as aulas presenciais com intenção de manter os alunos em casa e de evitar aglomerações, a Direção da Poli sugeria que alguns deles continuassem a se deslocar e a permanecer em local fechado. Rapidamente, vale destacar, a direção da Poli revogou a orientação, informando que buscaria outras alternativas.

Associação de Engenheiros Politécnicos arrecada e distribui computadores

Embora, no início, tenha priorizado a imediata continuidade das aulas, em detrimento de alunos desprovidos das ferramentas adequadas para acompanhá-las no novo formato; depois de provocada, a direção da Poli foi ativa na busca de soluções. Não sozinha, teve intensa contribuição da Associação dos Engenheiros Politécnicos (AEP) e das entidades estudantis da Poli. 

Duas ações merecem evidência. Antes da implementação do programa da Reitoria de distribuição de kits de internet, a Poli e a AEP realizaram seu próprio plano. O diretor da Associação, Dário Gramorelli, conta: “Negociamos em nome da Poli um contrato de comodato com a Vivo. É a Poli que paga. Cinquenta modens foram contratados e distribuídos a alunos da Escola Politécnica. Isso foi feito antes da Reitoria”.

A segunda ação foi uma campanha de arrecadação e doação de computadores. Iniciada pela AEP na segunda quinzena de março, a campanha obteve 80 computadores e notebooks, novos e usados. Membros do Grêmio Politécnico encarregaram-se de reparar as máquinas em mau estado. Vinícius Cardieri Lopez, presidente do Grêmio e aluno de Engenharia Elétrica da Poli, detalha o papel das entidades estudantis nas iniciativas: “Além de fazer pequenos reparos nos equipamentos doados, o Grêmio, os CAs e os Coletivos identificaram os alunos que precisavam de internet e computadores. Em torno de setenta alunos foram contemplados com modens e/ou computadores”.

A campanha da AEP extrapolou os domínios da Poli. Os computadores e notebooks arrecadados superaram a demanda dos estudantes da Politécnica. Dentro da USP, porém, a necessidade persistia. Alunos de outras unidades, como da FEA, do IGC  e da Física, ao saber da campanha, acorreram à associação. Muitos foram atendidos. Apenas para estudantes da Física, nove computadores foram doados.

As fases do primeiro semestre

Há muitas circunstâncias a explicar as diferentes trajetórias das unidades da USP no primeiro semestre. Um erro comum, embora justificável, de várias delas foi ter calculado com otimismo a duração da pandemia. Esse, não foi o caso da Poli. Desde o início, adotou-se a perspectiva da realização do ano letivo inteiro na forma remota.

Duas semanas depois da suspensão das aulas, uma série de orientações para alunos e para professores foi divulgada na forma de perguntas e respostas. Três fases foram estabelecidas, cada uma com período próprio e concessões distintas. Na Fase 1: atividades valendo nota foram proibidas e houve recomendação por cautela na cobrança de frequência. As avaliações foram liberadas na Fase 2, iniciada em maio. Fernando Akira Kurokawa, vice-presidente da Comissão de Graduação, esclarece: “Dividimos em três fases. Na primeira, quisemos garantir que todos os estudantes estivessem nas mesmas condições, sabemos dos alunos vulneráveis. Para assistir uma aula, você precisa de uma boa conexão”, ele complementa. “Na segunda semana de maio, com a disponibilização dos modens e dos computadores, liberamos as atividades de nota”.

A Fase 3 considera o retorno das aulas presenciais, cenário ainda incerto.

Com a palavra, os estudantes

Métodos avaliativos e controle de frequência foram os assuntos mais discutidos entre alunos e docentes. Embora a Comissão de Graduação e as Comissões de Coordenação de Cursos tenham recomendado flexibilidade na aferição das presenças e a adoção preferencial de avaliações assíncronas; muitos professores aplicaram provas síncronas (feitas em tempo real, com horário específico e tempo restrito) além de cobrar presença nas aulas on-line. Novamente, as palavras do professor Kurokawa são importantes: “Até o início de maio (Fase 1) recomendamos que a frequência fosse cobrada de outros modos, como entrega de atividades, mas nós da CG não podemos exigir que os professores sigam as recomendações. Na Fase 2, junto com as atividades valendo nota, a frequência também deveria ser cobrada mas sempre com a percepção das dificuldades dos alunos”.

Em pesquisa realizada no final de julho pelo Diretório Acadêmico, com 459 alunos, apenas 14,8% dos respondentes afirmaram que todos os seus professores haviam reagido de maneira compreensiva aos seus problemas de acesso às aulas em tempo real. Quase 80% posicionaram-se contra a cobrança de frequência como critério de aprovação. Em relação às provas síncronas, 93,7% as rejeitam. Ausência de ambiente apropriado para estudo, instabilidades na internet e problemas de concentração decorrentes de todo o contexto da pandemia foram as razões apontadas para justificar a rejeição pelas atividades síncronas.

 

Foto: Cecília Bastos

 

Na USP Leste, sobreviver à covid-19 foi apenas mais uma luta

A festa tinha data: 18 de agosto de 2020. São quinze anos de existência da unidade da USP mais inclusiva. Quando a Resolução 7373/2017 – sistemas de cotas na USP – foi aprovada, a Each já tinha mais de 50% dos seus alunos provenientes de escolas públicas. As comemorações foram menores, virtuais; indispensáveis, contudo. Instituição pública, de qualidade, fincada na zona leste da capital, em um bairro que clama por luz até no nome (Jardim Keralux); a simples existência da USP Leste é motivo para celebração. 

Muito simples! No horário definido, o professor senta diante de uma tela, liga o notebook; do outro lado, cinquenta estudantes no conforto das suas casas o acompanham. Ele explica conceitos, corrige exercícios e aplica provas. Bastante improvável! Porque o professor nunca ministrou aulas on-line, porque há estudantes sem acesso à internet, porque não há como concentrar-se enquanto o irmão brinca, porque o único computador está sendo usado pela mãe que está em home-office.

“É muito complicado. Muita coisa atrapalha. Você está em casa se esforçando para manter a atenção na aula; de repente, sua mãe vem e pede para você levar o lixo ou sua sobrinha insiste pra te mostrar um vídeo. A dinâmica da casa não muda só porque você está tendo aula”.

– Thiago Sousa, aluno do último ano do curso de Educação Física e Saúde da EACH.

Das disciplinas que deveriam ser ministradas no primeiro semestre, pouco mais de 90% foram finalizadas; as restantes, por exigirem atividades práticas como estágios e trabalhos de campo, aguardam o retorno das aulas presenciais. Atingir esse percentual não foi fácil. Até a pandemia, a utilização de mecanismos de ensino a distância, como o e-Disciplinas, era incipiente. O aprendizado dos professores na lida com métodos didáticos não presenciais ocorreu em simultâneo às aulas, com prejuízos evidentes. Tiago Maurício Francoy, professor da Each e presidente da Comissão de Graduação, realça o problema da falta de treinamento: “A falta de treinamento dos docentes com as ferramentas de ensino remoto foi um gargalo enorme. Como usar o e-Disciplinas ? Como gravar uma aula ? Houve docentes, no começo, que faziam aulas corridas de quatro horas. Depois, entenderam a necessidade de mudar. Na Unifesp, antes do início do ensino remoto, foi feito uma série de workshops para definir e explicar, por exemplo, o que é uma aula síncrona (on-line) e assíncrona (off-line)”.

O cuidado em perscrutar a quantidade de alunos impossibilitados de acompanhar as aulas antecedeu qualquer exigência pelo seu início. Nos primeiros dias de suspensão, a Comissão de Graduação e os Centros Acadêmicos (CAs) realizaram um amplo levantamento das demandas dos estudantes. A participação dos CAs foi contínua em todo processo de ordenação do atípico semestre.

Com a atuação dos CAs – são dez na Each –, houve flexibilização no controle de frequência da maioria das disciplinas. Bianca Maria Lobato, aluna do terceiro ano do curso de Gestão de Políticas Públicas, relata: “Nas disciplinas que cursei, não houve cobrança de frequência”. Não cobrar presença nas aulas síncronas – em tempo real – exige que elas sejam gravadas e disponibilizadas. Na Each, boa parte dos professores optou por colocar suas aulas gravadas no Youtube. Conhecimento que agora está disponível não apenas aos alunos mas para toda a sociedade. Tiago Maurício Francoy: “Fizemos um esforço para tornar as aulas acessíveis. Quase todos os professores optaram por gravar as aulas e disponibilizá-las. Assim, os alunos poderiam visualizá-las quando pudessem. Um número expressivo de docentes optou por armazenar os vídeos no Youtube em razão do seu alcance.  Estamos em uma universidade pública, faz parte da nossa missão tentar atingir o maior número de pessoas. No Youtube, fica mais fácil achar os vídeos, facilitando o seu acesso pelo público externo. Todas as minhas aulas do primeiro semestre estão no Youtube”.

Computadores da Pró-Aluno são emprestados a estudantes

Os 42 primeiros kits de internet enviados pela Reitoria chegaram em meados de maio, quase um mês depois da suspensão das aulas. No total, perto de 100 modens e chips foram entregues a alunos da Each. O acesso à internet não bastava; computadores eram necessários. Assistir às aulas e realizar atividades no celular é pouco produtivo. Ineficiente. Mais uma vez, os CAs pressionaram por uma solução.

Havia computadores nas Salas Pró-Aluno mas não havia alunos. Decidiu-se por emprestá-los. Por meio de um acordo entre a Pró-Reitoria de Graduação e a diretoria da Each, todos os 25 computadores foram cedidos a estudantes para uso durante a pandemia. “Tinha internet mas era difícil participar das aulas pelo celular. Fui um dos beneficiados pelo empréstimo dos computadores da Pró-Aluno”. A afirmação é de Thiago Sousa. Dez alunos permanecem na lista de pedidos por computadores. O presidente da Comissão de Graduação diz que o problema está sendo tratado pela Each: “Temos a demanda de mais 10 computadores. A diretoria está trabalhando para alugar pelo menos 30. Vamos zerar a lista de pedidos e ainda teremos uma gordurinha para atender novas requisições que surjam até o fim do segundo semestre”.

Com a palavra, os estudantes

Questionada sobre como avaliava o primeiro semestre, a estudante da Each, Bianca Maria Lobato, foi direta: “Depois de um longo dia de trabalho, não consigo manter a atenção necessária para assistir a uma aula na tela do meu notebook. É cansativo demais”.

O cancelamento e a suspensão do semestre foram opções levantadas e discutidas por estudantes. Haveria, porém, consequências. A inviabilização do Vestibular 2021 é uma delas. A oferta das disciplinas regulares aos ingressantes do próximo ano estaria comprometida por falta de vagas, já que essas seriam totalmente preenchidas pelos estudantes de 2020.

Inspirado no programa federal de suporte financeiro para trabalhadores informais, o Conselho de Entidades da Each – coletivo que reúne os 10 CAs e as Atléticas – propôs à Reitoria a criação de um programa análogo, destinado a alunos vulneráveis: o Auxílio Emergencial Estudantil. Trata-se de uma sugestão oportuna que deveria ser analisada pelas instâncias superiores da USP.

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