O enfrentamento da pandemia pelas universidades federais

Opiniões de estudantes de todas as regiões do país montam panorama sobre a situação do ensino superior público 

 

por Júlia Carvalho

Arte: Karina Tarasiuk

 

Distância e demora. Essas duas palavras estão presentes na descrição de diversas situações da pandemia – e a educação superior pública é uma das mais evidentes delas. No dia 18 de março, o MEC autorizou que cursos presenciais adotassem o ensino a distância como meio de amenizar o impacto da pandemia na educação. Entretanto, dois meses após essa liberação, apenas seis das 69 universidades federais haviam adotado essa modalidade de ensino.

Em setembro, quase seis meses depois da decisão, 53 universidades se adaptaram à educação remota. Diferentemente da USP, que insistiu desde o início para que as atividades continuassem à distância, a maioria das instituições de ensino superior federais demoraram para migrar para o EAD. A maior parte dessas universidades decidiu começar as aulas on-line somente a partir do segundo semestre. Apesar da primeira determinação do ministério ser válida por 30 dias, com possibilidade de prorrogação, em junho o MEC estendeu a autorização de aulas remotas em instituições federais até o fim de 2020.

Uma das reclamações mais recorrentes de alunos de universidades federais de todas as regiões é justamente essa demora. “A gente demorou muito para iniciar o diálogo em relação a aplicação ou não do ensino remoto. Então, tivemos que fazer tudo um pouco às pressas, a gente tinha que resolver o mais urgente possível, senão teria muita perda de tempo no caso da formação dos alunos”, conta Gabriel Novais, 24, aluno de medicina da UFPA (Universidade Federal do Pará).

Matheus Tuche, 23, aluno do último ano de economia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), tem uma posição parecida: “Eu entendo toda a complexidade logística de suprir todas as particularidades do corpo docente e do discente, mas a resposta em decidir conversar sobre o modelo de aulas a distância foi mais demorada que o necessário, ao meu ver”. Tanto a UFPA quanto a UFRJ são exemplos de universidades que iniciaram as aulas remotas apenas no segundo semestre.

A UFABC (Universidade Federal do ABC) é outro exemplo dessa demora. Vinícius Campos Victor, 19, aluno de bacharelado em ciências e tecnologia na universidade, comenta que a instituição teve bastante dificuldade em se adaptar e demorou para retomar as atividades. “A solução tomada pela minha faculdade no começo foi bem estranha, eles não conseguiram adequar de uma maneira boa o ensino a distância, mesmo que emergencial, logo que começou a pandemia”, comenta.

Segundo o painel de monitoramento do funcionamento das instituições federais do MEC, 911.569 estudantes de universidades federais estão tendo aulas remotas, 195.979 estão com as aulas suspensas e 16.143 com aulas parciais. Ao todo, essas universidades federais somam mais de um milhão de discentes.

                               Arte: Gabriella Sales

 

Desigualdade de acesso

Apesar da demora ser uma crítica comum a diversos entrevistados, ela não foi o único problema citado com relação à adaptação das instituições à educação remota. A falta de acesso à internet é outra questão bastante relatada. “Nosso estado [o Pará] tem a particularidade de estar no meio da Amazônia. Para muita gente o acesso a todo e qualquer tipo de tecnologia é muito difícil. Várias pessoas têm acesso à internet só dentro da universidade, então qualquer solução fica complicada de ser aplicada no nosso panorama”, explica Gabriel. 

A solução encontrada pela UFPA para tentar contornar o problema foi abrir um edital para fornecer chips de internet e aparelhos eletrônicos para os alunos que não tinham acesso. Aline Cordeiro, 18, que estuda geografia, também na UFPA, acredita que a medida é importante, mas é insuficiente para contemplar a necessidade de todos os estudantes. “Mesmo que as bolsas fossem suficientes para todos, o valor só dá para comprar um notebook. Às vezes os alunos não têm condição de ter acesso nem à internet, isso é um dos principais problemas”.

Em universidades do Nordeste do país, a saída planejada foi semelhante. Milena Fernandes, 19, estudante de medicina na UFBA (Universidade Federal da Bahia), explica que logo depois da instituição suspender as aulas, em março, foi feita uma pesquisa para ver as condições de alunos e professores em relação ao acesso à internet. “Com os resultados dessa pesquisa, a universidade decidiu não retornar com EAD e esperar a Covid-19 passar. Porém, a Covid demorou bem mais do que os diretores esperavam e, no início de agosto, eles divulgaram que iria começar a ser organizado um semestre suplementar remoto”, completa Milena. 

Para esse retorno, a UFBA também divulgou editais para apoiar financeiramente alunos que não têm condições de ter uma boa internet ou aparelhos eletrônicos em casa. A UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) seguiu esse mesmo caminho de auxiliar estudantes para que todos pudessem acompanhar as aulas remotas no segundo semestre. Entretanto, Ana Letícia Albuquerque, 18, que cursa Engenharia da Computação na universidade, concorda com Aline ao afirmar que a ação não soluciona todos os problemas: “Mesmo tendo um projeto de fornecer computadores e redes de dados, ainda acredito que o modo remoto só aumenta a desigualdade de acesso entre os alunos”.

Estudantes preferem aulas convencionais. Foto: Isabel Teles

 

Nas universidades federais do Sul, a solução, ainda que semelhante, tem demorado para atingir os alunos que necessitam. Julia Soriani, 22, aluna de Psicologia na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), critica essa demora para que o auxílio chegue aos estudantes: “A instituição aprovou empréstimo de computadores. No entanto, já estamos na segunda semana de aula e os estudantes que pediram o empréstimo ainda não receberam”.

Fernando Yazbek, 22, estudante de Ciência Política na UFPR (Universidade Federal do Paraná), também condena a falta de ação de sua universidade para apoiar alunos em dificuldade. “Faltou a federal fazer um levantamento de quem recebe bolsa e, consequentemente, quem iria precisar de auxílio. Eles tinham que ter ido atrás dessas pessoas para dar um suporte, tinham que ter buscado parcerias e ter feito contato com esses alunos para dar apoio”, pontua.

No Sudeste, a opção também foi a de dar apoio aos discentes sem acesso à internet. Matheus explica que “a UFRJ se cercou bem na questão tecnológica, ofereceu bolsa auxílio, abriu edital para fornecer internet, mas há coisas que fogem do escopo da universidade, infelizmente”. Ele comenta que alguns colegas que vivem em regiões mais conflituosas da cidade certamente têm encontrado problemas em acompanhar as aulas.

Apesar das universidades buscarem alternativas para auxiliar os alunos, o problema de falta de acesso à internet no Brasil é grande. Segundo o último levantamento do IBGE, feito em 2018, cerca de 45,9 milhões de brasileiros ainda não tinham acesso à rede. O número corresponde a mais de 25% da população com 10 anos ou mais – idade que coincide com a de muitos dos jovens presentes nas instituições federais.

Para além das telas

A análise de Matheus de que as questões que envolvem a migração, ainda que emergencial, para o ensino EAD ultrapassam o problema de falta de acesso à internet também é compartilhada por outros estudantes. “No meu caso, eu não tive problemas técnicos porque tenho acesso à internet e a um computador, além de ambientes calmos, em que eu podia focar nas atividades. Mas as minhas dificuldades foram muito na questão emocional, de não entender o que estava acontecendo, de não saber como me portar e como abraçar todas as responsabilidades que eu tinha pegado”, conta Ana Laura Menegat, 20, estudante de Jornalismo da UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul).

A universidade em que Ana Laura estuda foi uma das poucas que migrou rapidamente para o sistema remoto assim que as aulas foram suspensas. Depois de uma semana sem atividades, a instituição já passou para o EAD. Apesar de contrária a esse tipo de ensino, a estudante entende que, dentro desse cenário, não haveria outra saída possível: “Se as universidades públicas suspendem as aulas definitivamente,  corre o risco do governo federal suspender os salários dos profissionais que trabalham nesses espaços”.

 Para diversos alunos, as aulas a distância demandam um concentração muito maior. Foto: Karina Tarasiuk

 

Diferentemente do que ocorreu no Mato Grosso do Sul, no Pará, a UFPA aprovou o ensino remoto apenas em agosto. Porém, considerando o aspecto psicológico, Aline analisa que a decisão de esperar não foi incorreta: “Acho que a opção de ter parado foi importante, porque as pessoas não estavam com saúde mental para continuar. Acho que o foco principal naquele momento era a vida e a saúde de todos”. 

Ana Laura comenta sobre como o momento prejudicou seu rendimento. Ela conta que na faculdade há uma matéria que envolve diagramação, uma das disciplinas que ela tinha mais vontade de cursar, mas que a pandemia a fez se sentir desmotivada. “Para mim as matérias de diagramação também têm muito a questão da criatividade e eu não estava me sentindo nem um pouco criativa, nem um pouco motivada, a minha cabeça estava uma confusão”, desabafa. Para não prejudicar tanto sua experiência, ela acabou trancando a disciplina.

O impedimento de realizar as atividades práticas também foi muito prejudicial para Gabriel. “O meu curso parou porque os hospitais cancelaram o acesso dos alunos de Medicina logo no começo da pandemia, em março, então a gente não poderia entrar. O curso é eminentemente prático, ou seja, sem as aulas práticas não dá para continuar muita coisa”, explica. Segundo ele, mais de 60% da carga horária são atividades práticas.

O estudante relata que a desmotivação também foi algo bastante comum para ele e para seus colegas. Com uma carga horária total de mais de nove mil horas, qualquer atraso no cronograma do curso representa meses a mais na universidade. “Muitos de nós fazemos esse curso para ter uma perspectiva de ganho no futuro, de ajudar a nossa família e de melhorar nossa condição. Qualquer atraso nesse planejamento é um gasto que a gente está infringindo à nossa família e isso é algo um pouco desesperador”, completa.

Para Vinícius, a falta da prática e da rotina na faculdade também foram problemas: “O que mais atrapalha é que de duas a três vezes por semana a gente tem aulas práticas, laboratórios de química e física, entre outras coisas, que são impossíveis de se ter a distância”. Ele afirma ter muito mais dificuldade de se concentrar em casa, onde várias coisas o distraem e tiram seu foco, do que em sala de aula. “Estando presencialmente na faculdade já é bem difícil de entender, por EAD então é muito mais complicado”, conclui.

No caso de Matheus e de Fernando, a indefinição prejudicou a conclusão de seus respectivos cursos. “A pandemia estourou justamente no meu último período, então na teoria eu já era para estar formado. Acho que a demora da UFRJ em tomar as medidas necessárias complicou bastante a vida dos concluintes”, comenta Matheus. Para Fernando, a circunstância é a mesma: “Eu já estava atrasado com a formatura. E agora com isso tudo não sei como as coisas vão ficar. A situação de quem iria se formar ficou bem confusa e indefinida”.

Distância do EAD

Diante de tantos problemas envolvendo a adaptação do ensino das universidades federais para a educação remota, as opiniões dos alunos sobre o EAD é negativa. Pela quantidade de aulas práticas e pelo curso de Medicina depender muito de uma vivência presencial, Gabriel acredita que não seria possível que todas as matérias fossem feitas a distância. “O ensino remoto fornece algumas alternativas, mas é só até certo ponto. De um ponto para lá, a gente não pode contar com ele”, analisa.

Para Fernando, a falta do convívio diário com os colegas também é algo muito prejudicial: “Sinto muita falta de um contato físico. O olho no olho com o professor faz toda a diferença no aprendizado. O convívio com os colegas, as piadas em sala de aula, tudo faz falta”. Ele afirma que até consideraria fazer algum curso a distância, porque viu que há tecnologia suficiente para que o EAD funcione. Porém, ele defende que não é a mesma coisa que ter aulas presencialmente.

Ana Letícia também tem uma visão pessimista dessa modalidade de ensino. “Se tem uma coisa que a educação remota me ensinou é que ela é somente uma forma de precarização do ensino. Uma universidade sem nenhum preparo prévio, com professores muito inteligentes, mas com dificuldade de ligar um retroprojetor na sala, não tem como fornecer a mesma qualidade de ensino do que o presencial”, critica.

Já Ana Laura, entende que os impactos desse tipo de educação são bem mais profundos: “Acho que os problemas do EAD vão muito além dessa falta de democratização ao ensino, da falta de aparelhos eletrônicos e internet, a gente tem que entender que as pessoas não são máquinas. Ter acesso aos aparatos às vezes não é suficiente, tem toda a parte psicológica que precisa ser levada em consideração”.