As ameaças do PL 529/20 à autonomia das universidades

O projeto de lei do governo Doria extingue institutos e interfere diretamente com as contas das universidades, atacando seu financiamento e também sua autonomia.

 

por Guilherme P. P. Bolzan

As três universidades estaduais estão entre as instituições mais afetadas pelo projeto de lei, prejudicando sua liberdade acadêmica e de pesquisa. Arte: Karina Tarasiuk/Foto: Unsplash e Freepik

 

No dia 13 de agosto, o governo do estado de São Paulo enviou para a Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) o projeto de lei 529/20. Sob a justificativa de ajuste fiscal para lidar com a pandemia, ele altera a organização orçamentária do estado. Suas principais medidas são a extinção de diversos órgãos públicos prestadores de serviços e seu artigo 14, que prevê a devolução anual do superávit orçamentário da Fapesp e das universidades estaduais, interferindo em sua autonomia.

Tramitando em regime de urgência na assembleia, o projeto de lei gerou revolta e protestos de diversos setores. Extingue instituições importantes para população, como a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano de São Paulo, o Instituto de Terras e além de muitas outros órgãos de transporte e saúde pública. O projeto de lei prevê a incorporação ou substituição desses serviços ou, em alguns casos, os considera obsoletos e os extingue por completo.

Para Bruno Ribeiro, do Coletivo Butantã na Luta, que trabalha em pautas de acesso democratizado à saúde,  essas medidas não passarão despercebidas. “O projeto de lei ataca diretamente instituições da Saúde. Os cortes serão difíceis para população, principalmente pela perda da Fundação Oncocentro, da Fundação do Remédio Popular e da Superintendência de Controle de Endemias, durante uma pandemia.”

Porém, a maior preocupação da comunidade acadêmica é o artigo 14 do projeto. Ele prevê que “o superávit financeiro apurado em balanço patrimonial das autarquias, inclusive as de regime especial, e das fundações, será transferido ao final de cada exercício à Conta Única do Tesouro Estadual […] para o pagamento de aposentadorias e pensões do Regime Próprio de Previdência Social do Estado”. As mencionadas autarquias são as três universidades estaduais (USP, Unicamp e Unesp) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a Fapesp.

O “superávit financeiro” a ser devolvido para o governo é um tipo de superávit que relaciona-se ao balanço de todo o patrimônio de uma instituição. Para obtê-lo, se subtrai ativos (bens e orçamento) dos passivos (gastos com folha de pagamento, projetos, dívidas). O resultado desta conta é o patrimônio líquido e, se for positivo, é um superávit. A verba das universidades e da Fapesp é seu principal ativo. Ela provém de uma porcentagem da arrecadação tributária do governo estadual. No caso das universidades, é o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), veja:

Arte: Gabriella Sales

 

O valor a ser devolvido, portanto, surge da diferença da verba e dos gastos de um ano. Mas não é uma sobra, longe disso. Segundo o diretor do Sintusp, Reinaldo de Souza, toda administração responsável não gasta 100% de sua verba, deixando um montante que “é mal lido como um excedente, mas não é exatamente isso. Na execução orçamentária pode haver uma sobra de caixa que não foi possível gastar naquele momento, mas que será gasta posteriormente”.

O superávit, ao final de um ano, não fica guardado em um cofre nem é gasto de forma supérflua. Ele é utilizado para cobrir despesas advindas do ano anterior, além de ser essencial para financiamento de pesquisas, gastos emergenciais e realização de trabalhos de larga escala. Sem ele, não é possível dar continuidade a projetos de médio e longo prazo que necessitam de um planejamento e um orçamento multianual.

O problema se expande quando se considera que a devolução do superávit é também um corte de verba. E esse corte seria de todos os anos após a aprovação, não apenas para este ano de pandemia, como justifica o governo. Segundo uma nota da Congregação da ECA, somente em 2020 se perderiam mais de R$ 1 bilhão retirados das universidades estaduais, o que arruinaria pesquisas futuras e em andamento. 

Isso soma-se à redução no financiamento que as universidades já passam. Sua verba provém do ICMS e, com queda da movimentação na quarentena, a arrecadação desse imposto cai também, diminuindo sua cota-parte. Isso já pode ser percebido comparando os repasses do mês de julho deste ano e do ano passado: somando-se as três universidades, foram R$ 154 milhões a menos. “A gente já foi penalizado pela diminuição do imposto. Não existe cota pré-estabelecida, nós recebemos uma porcentagem que varia mensalmente”, afirma Eduardo Monteiro, professor e diretor da ECA. As universidades seriam duplamente punidas: primeiro pela queda na receita e depois pela devolução do superávit.  Segundo o professor, é um profundo golpe à pesquisa, dado no momento de pandemia, em que o papel da ciência realizada nessas instituições é ainda mais relevante.

Mas e a autonomia?

O corte de verbas porém, revela um problema talvez ainda mais grave: o ataque do artigo 14 à autonomia universitária. Mesmo que as universidades escapem do desfinanciamento, esse ataque abre precedente para uma universidade menos independente no futuro.

A autonomia foi estabelecida em 1989, ano em que a USP passou a ser administrada por seus órgãos internos, como uma autarquia, e não diretamente pelo governo do estado. Isso veio com a responsabilidade de gastar sua própria verba na folha de pagamentos e na manutenção dos campi, mas permitiu que a USP decida os temas de suas pesquisas e distribuição de recursos sem se submeter aos interesses políticos ou econômicos do governo. “A maior vantagem [da autonomia] é a independência da Universidade sobre o que ela faz — não há censura em suas pesquisas”, afirma Bruno Ribeiro. Segundo ele, com essa independência, não há constrangimentos da maneira como a Universidade gasta sua cota-parte, correspondendo ao que a “comunidade universitária considera de maior interesse social”.

Segundo o professor Eduardo, a interferência do governo é totalmente inapropriada, impedindo o planejamento de pesquisa de longo prazo. Este não poderia acontecer com a instabilidade de um orçamento definido pelo estado a cada ano. “É muito surpreendente como o governo se acha no direito de confiscar esse dinheiro, intervindo na Universidade. O tempo da pesquisa não é o tempo do orçamento; não é o tempo do ano fiscal”, afirma ele. E ressalta ainda que a autonomia foi um dos principais fatores para garantir a qualidade do ensino e assegurar salários competitivos com outras instituições, retendo os talentos dentro da universidade.

Os funcionários da USP também seriam afetados pela perda de autonomia. Reinaldo de Souza acredita que, “ao rompê-la, os funcionários teriam que se reportar ao governo do estado, o que tornaria muito mais difícil a luta imediata por melhorias de condições de trabalho”.

Apesar do momento de pandemia dificultar muito a realização de protestos efetivos contra o projeto de lei, no dia 4 de setembro, a pressão da comunidade acadêmica, do Cruesp, de sindicatos e de movimentos sociais fez a Alesp recuar. A promessa atual é adicionar uma emenda ao projeto de lei, tornando a devolução obrigatória apenas para o ano de 2019. O Cruesp, por sua vez, ainda tenta negociar por uma exclusão total das universidades e da Fapesp do artigo 14.

A oposição para além do artigo 14

Mesmo com a promessa de atenuação do artigo 14, o conflito ao redor do projeto de lei 529/02 ainda não acabou. Mesmo que os outros artigos não afetem diretamente as contas ou a autonomia da Universidade, eles ainda representam um ataque aos serviços e ao funcionalismo público, seja pela extinção de institutos ou pela precarização de seu trabalho de maneira geral.

Porém, o foco das negociações da Reitoria da USP tem sido no artigo 14, evitando uma oposição ao projeto como um todo. Está é uma das preocupações do Sintusp, que tenta organizar-se para combater o projeto de lei como um todo. Seu diretor, Reinaldo de Souza acredita que esse posicionamento é contra produtivo: “Essas manifestações da Universidade não tocam no problema de fundo, que é um ataque aos serviços públicos. Com isso, a Universidade se isola dos setores sociais que também são afetados”. A consequência disso seria um distanciamento ainda maior entre a USP e o resto da sociedade. “Essa posição corporativista dificulta uma luta unificada. Se cada um lutar somente para tirar o que o afeta do projeto, ninguém tira nada no final”.

“A Universidade não é uma ilha”, afirma Bruno Ribeiro. Ao opor somente às partes do projeto que a afetam, a USP abandona potenciais aliados. E, segundo ele, ter aliados é essencial, “não só para garantir que esse projeto seja derrubado, mas para que não venham outros desse respaldo no futuro”.

A USP, como universidade pública, deve mostrar sua importância e seu trabalho para a sociedade. Construir uma relação com a comunidade além de seus muros é essencial para que a população entenda o papel social que ela desempenha e defenda-a de ataques como este daqui adiante. Ela deve mostrar-se presente, para poder continuar presente.