Fotografando janelas

Para se adaptar à pandemia, fotógrafos buscam novos meios de concretizar sua visão artística

 

por Vinicius Ferreira

 

 

 

 

 


Foto: Ricardo Luis Silva

 

É comumente dito que os olhos são a janela da alma. Isso acaba tornando a vida em isolamento social uma eterna associação entre janelas: as dos olhos, dos aplicativos de computador e as de casa. A fotografia segue essa mesma lógica associativa durante este período.

A fotografia na pandemia não tem nada de comum, e por isso, as soluções para o impedimento de contato humano variam muito de pessoa a pessoa. Há quem se utilize da internet para substituir o estúdio de fotografia. Há quem usa a própria janela como recorte da realidade. Há também quem simplesmente vaga pelas ruas esperando que algum prédio frio gere um bom candidato para uma foto.

Ricardo Luis Silva, arquiteto e fotógrafo, foi uma das pessoas que teve que achar uma resposta para o desafio desse novo cenário da pandemia. Sua resolução? Seu novo projeto “Das coisas que são vistas no isolamento”. No site do projeto, ele se descreve como “um caminhante urbano” e entende a cidade como “o olhar no olho do outro”. Com essa mesma mentalidade, ele explica o cerne de sua iniciativa “em isolamento, olhando pela janela da sala do pequeno apartamento, avisto a cidade e, nela, não mais os outros, mas suas janelas. Troca-se o olhar no olho pelo olhar na janela (janela da alma?). Me reconheço no outro pela janela, dele e minha. Seria afinal: janela ou espelho? “.

Ricardo se interessa pela fotografia desde a faculdade , já que acredita que ela seja uma forma muito particular de experimentação narrativa. Ele entende a imagem da seguinte maneira: “A objetividade da imagem ganha potência com essas outras camadas poéticas, lacunas, brechas de interpretação e representação”. Por causa dessa forte relação entre sua visão de mundo e sua fotografia, Ricardo explica que o início do isolamento social foi algo “extremamente castrador”.

Para resolver essa falta de liberdade, em tantos aspectos, Ricardo continuou fazendo o que mais gostava, o que fazia de melhor, listas. “Sou um colecionador. Sou um fazedor de listas. Coleções e listas de coisas. Coisas que eu olho, coisas que me olham, me interpelam, me constituem”. Essa é a frase que abre a apresentação do projeto em seu site, e realmente evidencia a lógica por trás da coleção de fotos.

O projeto, como ele mesmo disse em sua apresentação, é uma coleção de fotos derivadas da visão que ele tem da janela de seu apartamento. Ele começou o projeto, segundo ele, por dois motivos: uma forma de manter a sanidade intelectual em meio à pandemia e também uma forma de dar continuidade ao tipo de projeto mais “urbano” que ele sempre realizou. Ele mesmo diz “inventariar a vida cotidiana já era algo presente no meu trabalho desde o começo”.

Porém, quebrando com a continuidade, há uma pequena diferença no novo trabalho que é o uso de uma câmera profissional na sua janela, ao contrário do seu celular, que ele utilizava anteriormente. A mudança, obviamente, é advinda da necessidade gerada pela distância considerável entre uma janela e outra. Além disso, ele também enxerga como algo particular dessa lista o registro de pessoas, mas, de resto, ele enxerga esta como uma continuação de listas anteriores.

O resultado final dessa experimentação em tempos de pandemia é postada no instagram do autor (@por.onde.o.homem.anda), que utiliza do feed como “um grande arquivo” das suas listas. Todas as fotos apresentam a #dascoisasquesãovistasemisolamento para que a localização delas torne-se mais fácil. Além disso, o autor lançou um livro com algumas das 333 fotos que ele tirou para a coleção.

A recepção, segundo ele, está sendo ótima. Ele analisa que “A poética do registro histórico, misturado com a sensação de “espelhamento” de nossas próprias vidas em isolamento, tem agradado muito as pessoas”. O livro, segundo ele, também tem agradado, devido a sua característica de livro de artista-livro-objeto.

Agora, caso você se encontre com as fotos da coleção e goste do que vê, saiba que essa lista em particular já foi fechada. “A lista foi pensada para ser produzida apenas durante a pandemia. Já não produzo mais imagens dessa lista desde o dia 6 de julho, quando a Prefeitura flexibilizou a abertura de bares e restaurantes”. Mas, é importante ressaltar que o projeto “Coleção das coisas” ainda continua com suas outras listas. O autor também comumente faz campanhas na Catarse que se aprofundam bastante em seu projeto, e valem a pena ser conferidas.

Essa nova lógica de fotografia dentro de casa, que nasceu com o isolamento social e pode também morrer com ele, ainda é muito nova, e por isso pouco estudada. A despeito disso, Atílio Avancini, professor da ECA, fotógrafo e estudioso da área, já faz algumas considerações acerca desse tipo de fotografia.

“A produção da fotografia com a pandemia restringiu-se ao âmbito doméstico. Faz lembrar Machado de Assis, quando se trancava dentro de casa e evitava abrir janelas, mas sem jamais negar o cotidiano e os hábitos das ruas”, diz o professor sobre essa nova produção. No atual contexto, o espaço domiciliar com suas telas, janelas, computadores e celular nunca foi tão importante, e fotografias desse momento podem acabar por ressignificá-lo.

Atílio ainda lembra de Henri Cartier-Bresson, em 1974, que afirmou em sua revista Popular Photography: “para mim, todos os lugares são interessantes, até mesmo meu quarto”. E é com esse pensamento que Ricardo, e todos os outros inúmeros fotógrafos de quarentena, tentam ressignificar e analisar um momento tão diferente, de forma a eternizá-lo e torná-lo interessante.