Genoma: o que os novos estudos dizem sobre a história e o futuro da nossa gente

Pesquisadores do Instituto de Biociências da USP finalizaram nova amostra de sequenciamento genômico, compondo o maior banco com dados de idosos da América Latina com cerca de 2 milhões de mutações inéditas

 

por Marina Reis

Arte: Marina Reis/Fotos: Unsplash

 

O ABraOM (Arquivo Brasleiro Online de Mutações) foi criado em 2017 por pesquisadores do Centro de Estudos sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL), integrante do Instituto de Biociências da USP, que recentemente completaram o sequenciamento genético e depósito dos dados de 1.171 voluntários brasileiros, sem relações de parentesco e com idade média de 72 anos. Através da pesquisa, que teve início em 2010, foram encontradas 77 milhões de mutações, das quais 2 milhões ainda não constavam em outros bancos de dados.

Os resultados do estudo já são sentidos no diagnóstico de doenças genéticas entre brasileiros, já que o sistema com os novos dados já está disponível para uso de todos os centros de análise públicos e privados do país. Além disso, os resultados também confirmam e chamam a atenção para características genéticas que, de certa forma, ajudaram a definir a população brasileira como é hoje. Mais do que uma ferramenta puramente prática de análise de dados genéticos, o estudo também é um recorte de visão do aspecto biológico da formação socioeconômica do Brasil atual. O artigo foi publicado na plataforma BioRXiv e está sob avaliação por pares em periódico internacional. Os primeiros autores são Michel Naslavsky, Marília Scliar e Guilherme Yamamoto.

A história do projeto

Falando sobre a história do projeto, o professor Michel Naslavsky contou ao JC que a ideia de coletar e analisar material genético de idosos veio da pesquisadora Mayana Zatz, em 2008 com o propósito de criar uma ferramenta para interpretar esses dados. Isso seria um passo bastante importante, já que a maioria dos bancos de dados internacionais é bastante centrada em dados genéticos europeus e têm poucas referências de outras populações, incluindo muitas das que formaram o povo brasileiro. Mas foi em 2010, quando ele se mudou de Recife para São Paulo para concluir seu doutorado, que iniciaram a pesquisa.

E por que um banco com dados genéticos só de idosos? “Idosos são os controles perfeitos para várias doenças porque já passaram pelas idades de risco”, responde o professor. “Então imagine que estamos tentando encontrar uma mutação causadora de uma distrofia muscular em crianças e encontramos cinco mutações que parecem ser as causadoras. Quando se vê que a mesma mutação candidata está presente em alguns velhinhos que não têm a doença, é possível presumir que, apesar de não ter efeitos conhecidos, ela provavelmente não é a responsável pela distrofia muscular”, explica. Como na maioria dos bancos internacionais os dados são de adultos e não idosos, não é possível saber com certeza se cada doador ainda não pode desenvolver alguma nova doença, enquanto com idosos, essa possibilidade é menor.

O segundo motivo é a curiosidade científica sobre o envelhecimento saudável. Um banco com dados de idosos permite um estudo sobre as condições que permitem que alguém tenha mutações patogênicas em seu genoma não seja afetado pelas doenças associadas.

O primeiro passo foi uma coleta da chamada amostra de conveniência, que consiste na divulgação do projeto e recrutamento dos voluntários, que entraram em contato por e-mail ou telefone. A partir daí foram coletadas 150 amostras de DNA. Os outros voluntários vieram do projeto SABE (inquérito sobre Saúde, Bem estar e Envelhecimento – conduzido pela Faculdade de Saúde Pública da USP e coordenado pela professora Yeda Duarte), que se baseia no censo do IBGE para acompanhar idosos acima dos 60 anos a fim de estudar questões demográficas e de saúde com representações em todas as camadas socioeconômicas desde o ano 2000.

Durante o processo foi coletado um tubo de sangue de cada voluntário, a partir do qual os cientistas puderam analisar o material genético e sequenciar o DNA de cada um, observando origem genética e possíveis mutações causadoras de doenças. “Esses idosos continuam a ser monitorados, o que é muito bom porque, por exemplo, 9% deles reportou ter tido câncer. É possível saber em com qual idade eles tiveram câncer, quantos anos eles tinham quando passaram a ter hipertensão ou diabetes. Isso define um estudo longitudinal. É um patrimônio muito importante aqui do IB-USP para o estudo SABE e para a comunidade.”  Nos últimos meses, os voluntários também têm sido monitorados para Covid-19, o que pode gerar dados interessantes para a melhor compreensão do vírus e seus efeitos.

Equipe de pesquisa do genoma do CEGH-CEL. Foto: Michel Naslavsky/Arquivo Pessoal

 

O que foi descoberto

O HLA é muito importante por ser um gene do sistema imune. Por isso não é surpresa que ele seja o gene humano mais diverso, já que está ligado à nossa adaptação como espécie. Por ter mais mutações do que a média é o gene mais diferente entre os indivíduos e que por isso é muito difícil de ser avaliado, já que na hora de sequenciar existe uma dificuldade em ‘encaixar as pecinhas’. Com o método que usaram, criado pelo professor Erick Castelli, da UNESP de Botucatu, os pesquisadores conseguiram remapear esse gene e encontrar dados que nunca tinham sido vistos. A análise também contou com a contribuição da equipe do Prof. Diogo Meyer, também do IB-USP.

Outro elemento pouquíssimo estudado, ainda mais em populações miscigenadas, e que a pesquisa abrangeu foram os elementos móveis do genoma. Eles são um tipo de gene que tem a capacidade de se copiar e colar em outras regiões. A maioria deles está inativa, ou seja, só atua como uma espécie de cópia do que aconteceu com os genomas dos antepassados daquele indivíduo. Mas em todos nós, existe um ou outro que ainda estão ativos. Isso é importante porque, em uma criança, por exemplo, dependendo de onde o gene estiver localizado, ele pode resultar em uma doença muito grave. Os pesquisadores da equipe do Dr. Pedro Galante do Hospital Sírio Libanês descobriram que quase 40% do que estudaram nunca tinha sido visto antes. “Não porque a gente trabalhou especialmente com elementos móveis brasileiros, mas porque pouca gente antes explorou esse tipo de dado”, contou Naslavsky.

Também foi estudado o genoma de referência que é, basicamente, um resumo de um genoma humano, ou, como o professor Naslavsky exemplifica, é como se fosse ‘a foto da caixa do quebra-cabeça’. Ele é importante porque qualquer genoma que seja feito precisa ser montado do zero em comparação com a referência. Mas o mesmo problema dos bancos de dados se dá com o genoma de referência, porque ele é baseado em um conjunto de indivíduos que não representam o mundo todo. “Agora a gente pode oferecer uma espécie de expansão do nosso quebra-cabeça, é como se a gente dissesse ‘Vocês brasileiros podem tentar montar esses aqui agora’”, explica o pesquisador. Essa etapa do projeto foi realizada em parceria com o Dr. Victor Guryev, do European Research Institute for the Biology of Ageing, na Holanda.

O que esses novos dados contam sobre o Brasil?

Arte: Equipe de pesquisa do Genoma / BioRXiv

 

O gráfico acima foi retirado do estudo publicado. Nele, cada barra vertical representa um dos indivíduos voluntários e é preenchida respectivamente por cores representando a ancestralidade genética detectada a partir do sequenciamento do DNA de cada um, podendo ser européia, africana, asiática ou nativo-americana. Além disso, o gráfico está subdividido pelas categorias de autodeclaração do IBGE: asiático(a), branco(a), pardo(a), preto(a) e não declarado.

Em entrevista, o professor Naslavsky explicou a escolha do recorte: “A minha grande pergunta era: será que a autodeclaração reflete a ancestralidade genética? A gente vê que parcialmente. As pessoas que se autodeclaram pretas e pardas têm respectivamente mais DNA africano ou menos DNA europeu. Mas metade das pessoas que se autodeclaram brancas também tem um componente não-europeu muito grande. A minha interpretação é de que isso seja uma tendência que as pessoas têm de se autodeclarar mais brancas do que elas realmente são porque nós vivemos numa sociedade extremamente racista. Isso não é novidade, o nosso trabalho só reforça isso.”

Outros estudos em genômica de brasileiros, coordenados pelas professoras Lygia Pereira e Tabita Hunemeier, reforçaram dados há décadas conhecidos por geneticistas e historiadores: a maior parte da herança genética materna dos brasileiros tem origem africana (36%) e indígena (34%), enquanto a maior parte da herança genética paterna (75%) tem origem européia. Esse dado reflete o fato de que, durante a história do Brasil, os homens pretos, indígenas e de outros grupos étnicos não-brancos tiveram menos oportunidade de gerar descendentes, muitas vezes por conta da violência que sofreram e sofrem até hoje. Enquanto, no caso das mulheres pretas e indígenas, muitas nunca nem tiveram opção e acabaram por gerar descendentes através de situações de abuso, como sabemos que acontece desde o período colonial.

Outra observação feita pelo professor Naslavsky é que, no Brasil, quanto mais europeia a origem genética, mais rico é o indivíduo. “A questão é que ainda que existam políticas públicas de sequenciamento e diagnóstico genético, a diferença vai continuar grande enquanto não houver dados de populações não-européias nos bancos. E enquanto não existirem políticas públicas e os testes genéticos continuarem caros e privados, no Brasil vai aparentemente parecer que não tem problema, porque os bancos de dados vão basicamente refletir quem consegue pagar pelos testes”, o professor explica. Sem possibilidade de pagar pelos testes genéticos e sem políticas públicas para auxiliar, a maior parte da população brasileira seguirá impossibilitada de diagnosticar doenças genéticas de forma precisa e, assim, poder tratá-las.

O futuro

O próximo passo da pesquisa era voltar a coletar material genético de novos voluntários em 2020. Mas, impedida não só pela pandemia mas também pela falta de recursos, a equipe espera conseguir realizar esses planos no próximo ano. O desejo é coletar amostras de DNA dos cônjuges, filhos, noras, genros e netos dos primeiros idosos voluntários para expandir a amostra em São Paulo e no Brasil.

“Esse foi mais um trabalho de longo prazo que só foi possível porque houve financiamento recorrente ao longo do tempo e mostra como grupos brasileiros conseguem colaborar para trazer realizações de alto nível”, declara o professor.