Inscrições para a Lei Aldir Blanc acontecem em todo o país

Na USP, os alunos das artes se equilibram para sobreviver à interrupção dos trabalhos causada pela pandemia

 

por Renata Souza

 Foto: Teerasak Anantanon/Rawpixel

 

Com teatros e espaços culturais fechados, shows cancelados e aglomerações proibidas, todos os artistas se viram impedidos de realizar seu trabalho nessa quarentena. Mas a situação é bem mais crítica para aqueles que não são famosos a maior parte do número total. Para estes, o momento é de lutar para sobreviver: pagar contas, comprar comida e garantir os direitos básicos. “Já desapeguei de fazer arte, agora não, eu tenho que sobreviver antes” foi uma das frases que ouvi dos entrevistados.

Um dos primeiros estados a adotar a medida, a quarentena em São Paulo começou a valer em 24 de março. Naquela altura, o setor das artes já vislumbrava o impacto da pandemia, mas ainda era muito subjetivo pensar no tempo que ficaríamos isolados. Cerca de três meses depois, em 29 de junho, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei nº 14.017 ou, como ficou conhecida, Lei Aldir Blanc, que assegura auxílio emergencial para os trabalhadores da cultura durante a pandemia.

Incluídos na cadeia produtiva da arte, os alunos artistas da USP também encaram a corda bamba da sobrevivência. Para esta matéria, conversei com quatro alunos da ECA e chegamos a um denominador comum: todos precisam se desdobrar em muitos projetos simultâneos para conseguir o mínimo de recursos.

Ato I: os artistas entram em cena

Quando ainda era permitido se aglomerar, em uma cantina da USP nasceu um grupo musical. A Banda Merengues é composta, hoje, por três alunos da ECA. André Leite tem 26 anos e está no quinto ano do curso de Música, com habilitação em Composição. Na banda, ele toca violão e faz arranjos. Emilie Becker tem 21 anos e está no quarto ano de Artes Cênicas, embora o curso esteja trancado desde que começou a pandemia. Assim como Cela Vianna, que tem 23 anos e também decidiu não cursar as disciplinas a distância. Nos Merengues, elas cantam e compõem.

O projeto de lei 1.075/2020, que mais a frente se tornaria a Lei Aldir Blanc, é de autoria da deputada federal Benedita da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), do Rio de Janeiro. Similar ao auxílio emergencial, o benefício se destina a pessoas que tiveram sua fonte de remuneração afetada pela pandemia. Nesse caso, trabalhadores da cultura. 

Arte: Gabriella Sales

 

No artigo 4º da lei, fica definido que “compreendem-se como trabalhador e trabalhadora da cultura as pessoas que participam de cadeia produtiva dos segmentos artísticos e culturais […], incluídos artistas, contadores de histórias, produtores, técnicos, curadores, oficineiros e professores de escolas de arte e capoeira.”

Uma semana antes da quarentena começar em São Paulo, Ícaro Pio estava em turnê na França com seu grupo de teatro, a ColetivA Ocupação. O Ícaro tem 21 anos e está no 4ª ano de Artes Cênicas na USP. Além da turnê, o grupo estava prestes a começar um novo projeto de um edital que foram contemplados em 2019. As atividades foram adiadas, mas o dinheiro foi recebido. Para os participantes, era melhor utilizar a remuneração nesse momento de crise, ainda que quando o projeto venha acontecer não haja mais verba a ser paga.

No documento que aprova a lei nº 14.017 não há como critério a necessidade de formação artística. O produtor cultural José Renato explica que estudantes que cumprirem os demais requisitos podem receber o benefício. José faz parte do grupo de trabalho montado pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo para organizar o repasse da verba. “A lei pretende atender aqueles que trabalharam regularmente com cultura, em qualquer área, e que tiveram suas atividades de trabalho interrompidas por causa da pandemia. É necessário comprovar atuação artística nos últimos dois anos”, afirma o produtor.

Ato II: o palco é reorganizado

A Banda Merengues surgiu como uma grande brincadeira na lanchonete do Departamento de Artes Cênicas. O André tocando o violão e as letras nascendo do improviso. De lá para cá, a banda fez apenas uma apresentação remunerada: 1.200 reais ao todo, que no fim das contas rendeu menos de 150 reais para cada uma das 5 pessoas envolvidas. 

 

 

 

 

 

 

 


Captura de tela de Cela Vianna em videochamada. Foto: Renata Souza

 

“Começou a quarentena e com ela veio o surto. Porque a gente que é do teatro pressupõe muito encontro. No começo da quarentena tudo parou, tudo deu uma estagnada”, relembra Cela Vianna. Uma das saídas foi retomar o contato com os Merengues para tentar reestruturar a banda à distância. As reuniões de produção, criação e ajustes passaram para as videochamadas. Agora, esperam o resultado de um edital da Funart (Fundação Nacional de Artes) e outro do ProAC (Programa de Ação Cultural) para seguir com o trabalho.

Depois de sancionada pelo presidente, a lei dispôs autonomia aos estados e municípios para organizar o calendário de repasse da verba. Em São Paulo foram quase dois meses até ser aberto o processo de cadastramento, no dia 16 de setembro. Os interessados terão até 18 de outubro para realizar as inscrições.

Com as apresentações interrompidas e o projeto adiado, Ícaro também se viu alguns meses à deriva do isolamento. Mas logo apareceu outra atividade para se debruçar. O Instituto Criar de TV lançou o edital “Projeto Curta em Casa”, que, como o nome sugere, incentivaria pequenas produções audiovisuais caseiras. Junto de mais dois amigos atores, Ícaro foi contemplado pelo programa. É daqui que nasce o curta “A proCURA que vai chegar”.

Ícaro Pio reproduz cena do curta “A ProCURA que vai chegar” em chamada de vídeo. Foto: Renata Souza

 

O governador João Doria estabeleceu que, no estado, serão cinco parcelas de 600 reais cada, resultando em um total de três mil reais por trabalhador beneficiado. Como explica o produtor José Renato “o número de parcelas, cada estado define conforme sua demanda e disponibilidade de recursos”. Ainda segundo ele, “o critério é prerrogativa de cada estado”.

Se o mercado das Artes já é instável e mal remunerado sem pandemia, com as medidas de isolamento a situação se tornou praticamente insustentável para muitos desses trabalhadores. Antes do benefício da Lei Aldir Blanc, o auxílio emergencial era destinado também para essa categoria. Era o caso de Ícaro Pio e Cela Vianna: ambos vinham recebendo a renda assegurada pelo governo para este momento. “Por um lado a coletivA deu sorte, por estar recebendo o valor do prêmio, então não me via totalmente desamparado economicamente. Mas ainda assim eu tive que recorrer ao auxílio” conta Ícaro. Um dos requisitos da Aldir Blanc, no entanto, é que o benefício não poderá ser simultâneo a pessoas que estão recebendo o auxílio emergencial.

Mesmo todos os estudantes artistas que participaram desta matéria estando perto de concluir o curso, garantir o sustento através da arte ainda é difícil. André Leite mora com familiares e obtém sua renda por meio de aulas particulares de violão e teoria musical, além de um estágio como editor de Podcast no Jornal da USP; Emilie Becker dá aulas de inglês e também vive com a família; Cela Vianna, por outro lado, mora em uma república e é responsável pelo próprio sustento. Hoje, depende quase exclusivamente do auxílio do governo e uma ajuda esporádica dos pais. E Ícaro Pio, que também vive de sua própria remuneração, mas tem conseguido viver exercendo sua função principal, como ator. 

Sobre a necessidade de ter muitos projetos simultâneos e não depender de uma única atividade, Emilie conta “pensar em ser atriz é uma coisa muito louca. Ao longo do tempo eu fui procurando outras artes para que eu pudesse ter alguma autonomia, no sentido de produção. Não depender de outra pessoa para conseguir criar”.