Preciso dizer que estou cansada do “antirracismo”

Se você está cansado de ver quadrados pretos nas suas redes sociais, imagina eu

 

por Gabriella Sales

Se você é uma pessoa branca, provavelmente você nunca pensou duas vezes antes de marcar uma alternativa de identificação racial em um formulário qualquer. Afinal, é uma coisa muito simples, certo? Tem a ver apenas com cor da pele, uma questão basicamente física e visual. Apenas mais uma caixinha para marcar.

Detesto ter que contar isso, mas preciso dizer que não é tão simples assim. Já que, ultimamente, estamos falando tanto de “privilégios brancos”, acho que caberia dizer que esse é mais um. Não posso dizer que me preocupei com isso a vida inteira, mas posso garantir que, pelo menos ao longo dos últimos três anos, marcar a caixinha de identificação racial, para mim, foi um processo quase doloroso.

Quando se é preto ou mestiço, no Brasil, esse momento é tudo menos simples. Não posso falar em nome das pessoas retintas, que, em geral, não são permitidas dúvidas quanto à sua cor por terem suas vidas marcadas pelo racismo desde os momentos mais simples. Porém, posso contar que, sendo uma pessoa mestiça, parda, morena, negra de pele clara – ou qualquer um dentre os tantos nomes usados para definir a mesma coisa – , já marquei no mínimo três opções diferentes nesse tipo de questão. 

Eu sei que pode parecer que estou fugindo do assunto ou apenas divagando. Mas, isso tudo é apenas uma maneira de dizer: muitas coisas teoricamente simples podem ser extremamente complicadas quando não se é branco. Definir-se enquanto pertencente a uma raça ou etnia é uma delas, principalmente num país tão miscigenado quanto o Brasil. Porém, não é a única.

Por muito tempo, eu apenas aceitei a definição de “moreninha” que me foi dada, principalmente devido ao contexto socioeconômico de privilégios que sempre ocupei. Foi preciso muita conversa e reflexão para que eu me entendesse como parte de algo maior. Mas essa é uma conversa para outro momento.

A questão maior aqui é que, apesar de muitas questões já existirem anteriormente, foi a partir do momento em que eu identifiquei o meu não-pertencimento ao espaço da branquitude que falar e pensar sobre raça se tornou cada vez mais cansativo. 

Certo dia, estava assistindo a um filme americano, prestigiado e indicado ao Oscar. Não esperava muito da produção, por não fazer bem o meu estilo, mas, aos poucos, o longa foi me conquistando, e eu me vi envolvida com a história, pronta para elogiá-la para os amigos posteriormente. Foi quando percebi: nas mais de duas horas de filme, eu não vi aparecer uma única pessoa negra. Tentei olhar melhor, procurar entre os personagens secundários, os figurantes… E nada. Acho que não preciso dizer que fiquei revoltada. Primeiro, pelo motivo óbvio da falta de representatividade. Depois, e talvez principalmente, pelo simples fato de que eu não queria estar pensando naquilo. Eu não queria estar procurando pessoas negras (e não achá-las). Eu não queria ter que criticar um filme que eu estava gostando. Eu não queria ficar frustrada num momento de descontração e diversão.

A questão é: eu não queria estar pensando em raça. Eu estava cansada. Eu estou cansada. Cansada de racializar todos os aspectos da minha vida. Cansada de procurar pessoas como eu e não achar. Cansada de repensar e criticar meus gostos e considerar cada acesso e compra no mínimo duas vezes. Eu não queria ter que pensar em raça. E a branquitude me obriga. Por dizer que não pensa, após ter construído um sistema secular de opressão e se recusar a assumi-lo.

Talvez, agora, você pense: mas há um intenso movimento antirracista sendo organizado nas redes sociais! Talvez, você diga: mas agora a branquitude está buscando ter consciência do seu papel e modificá-lo. E, talvez, se eu abrir o meu Instagram, pode parecer que você está certo. Porque, há alguns meses, havia uma infinidade de quadrados pretos (em sua maioria, sem propósito e sem significado) no meu feed. Há algumas semanas, havia uma série de posts ensinando “como ser um branco antirracista” na série de stories na minha conta. Há alguns dias, alguém estava compartilhando mais um vídeo de “para você entender o que é privilégio branco”.

É, pode parecer que as coisas estão mudando. Mas eu preciso dizer: apenas parece. Porque, mais uma vez, eu continuo cansada. Cansada de olhar postagens sem significado, de ver um quadrado preto no feed daquela pessoa que me fazia chorar após elogiar o meu cabelo apenas nos dias em que estava liso (e sugerir que eu alisasse). Cansada de ter que pensar duas, três ou mil vezes sobre cada compartilhamento que eu não sei se foi feito por alguém que realmente se importa. Cansada de ver uma reprodução infinita de coisas que a negritude já está dizendo há anos, mas, agora, ditas por brancos, são tratadas como grandes revelações. Cansada de ter meus momentos de descanso e distração transformados em frustrações, reflexões e conversas exaustivas. 

Não me entenda mal, estou longe de odiar a minha cor, meu cabelo e minha ancestralidade. Eles são lindos e libertadores, mesmo que chegar a essa conclusão tenha sido um caminho difícil e tortuoso. Mas eu estou cansada. Estou cansada de pensar sobre raça. Estou cansada do racismo. E, sinceramente, estou cansada do “antirracismo”. Porque, mais uma vez, a branquitude conseguiu fazer isso tudo ser sobre ela. Sobre ser cool e postar um quadrado preto. Sobre como ser branco e antirracista. Sobre como é ter privilégios brancos.  

Bom, eu sei que vocês não perguntaram, mas deveriam. Não posso falar como é não ser branco em nome de todos os não-brancos que existem. Mas, o que posso dizer com certeza, à branquitude, é: existir pode ser muito mais cansativo do que parece. E eu gostaria muito que não fosse. Porque, antes de mais nada, é incrível.