É só uma picadinha

Com o país ultrapassando 150 mil mortes pela covid-19, Bolsonaro trava uma guerra da vacina ao dificultar os estudos do Instituto Butantan para testagem da CoronaVac

 

por Guilherme P. P. Bolzan

Arte: Letícia Cangane/Fotos: Freepik, GOVESP, Marcello Casal Jr./Agência Brasil

 

Com quase 8 meses de isolamento social e mais de 150 mil mortos, a pandemia de covid-19 se tornou um assunto onipresente no debate nacional e no cotidiano do brasileiro. Em um momento de tantas dificuldades que variam desde a econômica até questões complexas de administração pública, uma possível vacina adquire um status quase heróico. É vista como a salvação para os problemas sem fim da quarentena, uma esperança de poder finalmente retornar ao normal. Ou, deveria ser. 

O conflito

Bolsonaro iniciou uma guerra contra a vacina apelidada de CoronaVac, produzida pela empresa farmacêutica chinesa Sinovac e testada em parceria com o Instituto Butantan, em São Paulo (confira nossa matéria). Essa primeira investida da guerra da vacina aconteceu no dia 21 de outubro, quando o presidente suspendeu, sem qualquer aviso, um acordo anunciado no dia anterior por Eduardo Pazzuelo, seu (novo) ministro da Saúde. 

O acordo consistia na compra de seis milhões de doses prontas da CoronaVac, além de matéria-prima para fabricação de 40 milhões de outras doses no Instituto Butantan. A justificativa do presidente para a suspensão foi a “cautela” pela qual é conhecido: não faria a compra antes da comprovação da eficácia do produto. 

A partir daí muitos outros episódios se sucederam, marcados pelo embate entre o Planalto e os governadores, principalmente João Doria, de São Paulo. No dia 22, Bolsonaro afirmou em uma de suas lives do Facebook que não tornaria a vacinação obrigatória (mesmo tendo assinado decreto no início da pandemia que deixava o assunto a cargo dos governadores) e falou em “traição”. Um dia depois Ricardo Lewandowski, ministro do STF pediu explicações do Planalto para a suspensão do acordo. No dia 3, o assunto preocupou o Legislativo, com Rodrigo Maia se reunindo com governadores em busca de estratégias para obter a vacina. No dia 4, a Advocacia Geral da União responde ao STF, mantendo sua posição de suspender o acordo. 

Durante quase uma semana se estabeleceu um instável cessar-fogo, rompido no dia 9, quando a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), órgão federal que regula farmacêuticos e outros produtos, suspendeu temporariamente os testes da vacina no Instituto Butantan. A suspensão foi justificada por um evento adverso grave, a morte de um dos voluntários da pesquisa. 

Segundo Lygia Pereira, professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biologia da USP, interrupções como essas são medidas cautelares. “É necessário interromper, porque, se esse problema grave for decorrente da vacina, não deve-se expor mais pessoas a este risco”.  Para garantir a segurança, “tudo é paralisado até se verificar se o efeito foi ou não em decorrência da vacina”. Ela afirma que esse procedimento de interrupção faz parte da rotina de estudos: “Em testes clínicos, sempre tentamos minimizar os riscos que os participantes correm.”

Mesmo que a interrupção em si seja justificada, as ações do presidente aproveitam-se dela para faturar pontos políticos. No dia 10, mais uma vez nas redes sociais, Bolsonaro distorceu a suspensão em vitória sua: “Esta é a vacina que o Doria queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”, afirmou em um estranho uso da terceira pessoa.

Em nota, o Instituto afirmou se surpreender com a suspensão, revogada pela agência três dias depois, com a apuração de que a morte não foi causada pela vacina. No meio tempo, foram identificadas diversas dificuldades de comunicação por parte da Anvisa,  que suspendeu mesmo depois de ter recebido a informação de que a morte não era relacionada à pesquisa.

Mesmo com a tentativa do presidente de se aproveitar da suspensão de caráter técnico para criar um “eu te disse” diante de Doria, é importante destacar o papel da Anvisa para regulação. “Ela não está aí só para ser uma burocracia no nosso caminho, a Anvisa também está aí para proteger a população garantindo que ninguém importe produtos ou faça estudos que ofereçam riscos excessivos”, reitera Lygia. 

Dois pesos, nenhuma medida

Apesar das investidas terem ocorrido nos últimos meses, a movimentação de tropas para a guerra da vacina já vem de longa data. Bolsonaro se prova inimigo da realidade factual desde seu tempo como deputado federal. Dos dois projetos de sua autoria aprovados em mais de 27 anos de mandato, um deles era para a liberação da fosfoetanolamina sintética. Mais conhecida como a pílula do câncer, a droga não possui qualquer comprovação científica — o que não o impediu de apresentá-la como solução para doença. 

Achar outros exemplos na mesma linha não é difícil, ainda mais na pandemia: suas dificuldades em manter protocolos de distanciamento social, seu raro uso de máscaras. Mas certamente o mais emblemático é sua recente devoção à cloroquina e hidroxicloroquina. Além de seu constante propagandismo dos medicamentos que há muito já foram descartados como tratamentos viáveis, o presidente já gastou mais de 1,5 milhão de reais com sua produção nos laboratórios do Exército — gastos esses que hoje estão sendo investigados pelo Ministério Público.

Com os episódios da guerra da vacina, Bolsonaro não apenas reforça seu caráter anticiência — este já está claro para todos que prestam atenção em seu governo. Mas também nos revela seu descompromisso com a vida humana em prol de um jogo político:

Os ataques do presidente não foram às vacinas em geral, mas em especial à CoronaVac, a “vacina chinesa”. Enquanto ela tem seus estudos bloqueados, acordos suspensos e diversas barreiras para continuação dos testes, outras vacinas são tratadas de maneira muito diferente.

A vacina de Oxford é o maior exemplo de seu tratamento desigual dos imunizantes. Produzida pela farmacêutica Astrazeneca, ela será testada no Brasil pela Fiocruz, no Rio de Janeiro.

A “cautela” de Bolsonaro ao lidar com a vacina da Sinovac desaparece de forma surpreendente quando discute o produto de Oxford. Mesmo diante dos altos investimentos — 1,9 bilhão de reais por medida provisória de autoria do próprio presidente —, a justificativa de “esperar pela comprovação da eficácia” ou seu novo medo de efeitos colaterais não voltam a ser mencionados. O que é estranho, considerando que a vacina de Oxford também já foi temporariamente suspensa por “efeito adverso grave”. 

Mas o que justificaria este cuidado especial com o imunizante da Sinovac? Seria ele mais seguro? Mais eficaz? De uma empresa principiante? Nada disso. 

Ambas as vacinas estão na mesma fase de testes, a terceira e última antes da liberação para o público. É o momento em que um produto promissor é testado com grande quantidade de voluntários visando garantir segurança e eficácia. Segundo Lygia, “não é possível afirmar que a vacina de Oxford é mais segura que a da Sinovac. Elas estão na mesma fase de testagem e desenvolvimento. Não há ainda dados para dizer qual vacina é melhor do que a outra”.

Mas então qual seria o motivo da diferença de tratamento? É certamente uma questão difícil de se responder. Mas, mesmo assim, vale notar que os ataques da guerra da vacina aumentaram acompanhando os atritos entre Bolsonaro e o governo Doria. Antes do conflito, os dois já brigavam pela obrigatoriedade da imunização.

A única característica da CoronaVac que a diferencia da sua correspondente de Oxford não é um detalhe técnico na sua fabricação, mas sim que ela está sendo estudada no Instituto Butantan, sob jurisdição do governo Doria. Ao criticar a vacina e prejudicar seus estudos, Bolsonaro não se mostra preocupado em garantir a segurança do povo brasileiro o qual governa. Ele apenas sabota seu rival político e, paralelamente, atrasa cada vez mais a data do início das imunizações. 

Prioridades infectadas

Qualquer governante responsável deixaria essa rivalidade de lado quando a relação entre suas ações e a vida de seu povo é tão direta. Com suas decisões, Bolsonaro deixa suas prioridades claras: cutucar Doria é mais importante do que conter a pandemia. A vida do brasileiro é um pensamento posterior, quase secundário. 

Ele nunca esteve diante de uma decisão tão fácil, mas ainda decidiu rejeitar a ciência, rejeitar a razão. “A ciência não tem partido, o partido da ciência é a verdade. São fatos”, afirma Lygia. E, nesse caso, os fatos são as centenas, e de vez em quando milhares, de mortes por dia.

Com seus argumentos cada vez mais antivacina, antiquarentena e anticiência, cabe resumir o presidente em uma só síntese, desta vez positiva: ele é pró-vírus. Entrando no terceiro ano de seu governo e no sexagésimo quinto ano de sua vida, Bolsonaro parece ainda desacreditar do velho eufemismo dos médicos ao aplicar vacinas em crianças. Mas não se preocupe, senhor presidente, pode cooperar com a vacina — afinal, é só uma picadinha.