João Steiner: a ciência e a universidade perdem um “astro”

 

por José Higídio

Foto: USP Imagens

 

No último dia 10 de setembro, faleceu aos 70 anos, vítima de um infarto, o astrofísico João Steiner. A perda abalou a comunidade científica e universitária, devido principalmente ao grande alcance e à importância das contribuições de João para a astronomia brasileira.

“Ele nunca parou de trabalhar, mesmo durante as viagens, no avião ou no hotel, ele fazia ciência”. A frase é de Augusto Damineli, que além de astrofísico é também professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, assim como Steiner foi. Mais do que colega de trabalho, Damineli já havia sido colega de graduação de João na década de 1970.

A ideia de um cientista “24 horas” demonstra o grande impacto e aptidão de João Steiner para seu trabalho, fatores que duraram até seu último dia de vida. “O João não falava ‘eu acho’, era sempre ‘eu sei que’. Sem ser arrogante, mas ele não tinha nada de achismo. Antes ele ia a fundo, e depois falava”, completa Augusto.

Mas tudo isso também pode afastar a percepção da pessoa que residia dentro da “máquina de fazer ciência”. Damineli diz que Steiner era uma pessoa tranquila, “by the book” e alegre.

Catarina Pasta Aydar, mestranda em astronomia no IAG, vinha sendo orientada por João Steiner até sua morte. Ela descreve o professor como uma pessoa de “dias e dias”: às vezes um pouco absorto, cabisbaixo, afundado em seus pensamentos; mas na maioria do tempo muito animado e sempre demonstrando sua inteligência. Principalmente, uma pessoa sensível, “de perceber que também é importante considerar o lado humano das pessoas”.

Quem visse aquele cientista de ascendência alemã, alto e imponente, talvez não imaginaria seu incrível gosto por cantar; muito menos o encanto mútuo que Steiner poderia estabelecer com uma criança: “O João fazia uma criança de colo sorrir sem parar”, conta Damineli. Ao mesmo tempo, passar o domingo com seu neto era uma das maiores felicidades rotineiras para o astrofísico, segundo Catarina.

Desde setembro, não há mais como observar a figura de Steiner, a não ser por registros. Não há mais como observar sua personalidade, nem como observar seus costumes. Mas é possível observar a trajetória desse ilustre cientista que observava estrelas.

Foto: USP Imagens

 

Planeta Steiner

João nasceu e foi criado no município de São Martinho (SC), de colonização alemã. Sua própria família se comunicava no idioma estrangeiro; ele mesmo, durante boa parte da infância, só falava alemão.

Apesar das raízes germânicas, Steiner tinha um perfil muito tipicamente brasileiro: o de interiorano roceiro, com origem simples, trabalho no campo e infância de beira de rio. Algo que parece até contraditório — ou fantástico, na visão de seu colega Damineli — para alguém que mais tarde trabalharia com tecnologias tão avançadas.

Em 1970, foi para São Paulo e iniciou a graduação no Instituto de Física  (IF) da USP. Era o início de uma relação com a universidade que duraria até o fim de sua vida. “Estudava o tempo inteiro, era certamente, se não o melhor, um dos melhores alunos da turma. E ele não se limitava ao que estava nos livros, ele sempre ia além, pesquisava coisas novas em todas as matérias. Logo se via que ele era um pessoa diferente, e os professores também sabiam disso”, conta Augusto, que dividia uma república com João naquela época.

Depois de formado, ainda na mesma década fez mestrado e doutorado pela própria USP, mas em outra área, a astronomia, e em outro instituto, o IAG. Tornava-se assim astrofísico.

O IAG foi onde se estabeleceu como docente. Começou como professor titular do instituto em 1990. Dentro da universidade, ainda passou um período como diretor do Instituto de Estudos Avançados (IEA) nos anos 2000.

A USP não foi a única instituição de ensino que o acolheu. Afinal, Steiner fez seu pós-doutorado em Harvard, nos EUA, em uma parceria com o Instituto Smithsonian, que o contratou como funcionário público federal. Lá, trabalhou com o Observatório Einstein, da Nasa, o primeiro telescópio espacial de raios X, que o permitiu descobrir diversos quasares. Mais do que isso: foi responsável por solucionar o problema das imagens captadas pelo telescópio, que até então vinham muito desfocadas.

Steiner também teve atuação em outras entidades públicas além da USP. Foi diretor de ciências espaciais e atmosféricas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e trabalhou como coordenador das unidades de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

Além disso, teve relações duradouras com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), e chegou a representar a entidade no consórcio para construção do Telescópio Gigante Magalhães (GMT) no Chile. 

A missão não era exatamente uma novidade para Steiner, que já havia sido membro dos conselhos diretores do Observatório Gemini e do Southern Observatory for Astrophysical Research (Soar), ambos também localizados em território chileno.

O espaço de ensino

Catarina Aydar considerava João um excelente professor, que conseguia tornar o ensinamento compreensível, mas sem banalizá-lo: “Ele tornava o conhecimento mais acessível, mas ainda assim de acordo com os critérios científicos”.

Muito disso se deve à sua capacidade de se expressar. “Ele era extremamente comunicativo, fosse para conduzir uma aula, um evento, uma relação mais tête-à-tête”, comenta a mestranda.

Augusto Damineli ressalta que Steiner prescindia de truques ou de edições para ser um sucesso dentro da sala de aula: “Era nas ideias e nas palavras mesmo”. 

O colega até hoje se impressiona com a marca de 1 milhão de downloads das gravações das aulas de Steiner feitas pela TV Cultura — simples apresentações de slides sobre astronomia básica acompanhadas da explicação do docente, mas que foram muito requisitadas, não apenas por estudantes da área.

Toda essa propriedade se estendia para as orientações na pós-graduação: “Ele teve muitos orientandos, e praticamente todos se tornaram astrônomos bem estabelecidos na profissão”, conta Damineli. Steiner teve uma grande descendência científica no Brasil.

Catarina revela que João formava seus alunos com bastante rigor científico. Ainda assim, ele não abria mão do lado humano da coisa: sempre teve paciência e tranquilidade na relação pessoal com sua orientanda.

Descobertas universais

“Ele era um astrônomo de primeira linha. Isso significa uma média internacional correta”. A fala de Damineli mostra como o trabalho de pesquisador de Steiner ultrapassou as barreiras uspianas e brasileiras.

Ele teve mais de 110 papers publicados, alguns com centenas de citações. Suas descobertas e atividades o colocam como uma referência na área.

Um tema de destaque em sua trajetória foi o das variáveis cataclísmicas. “Um campo que ele praticamente fundou no Brasil”, destaca Damineli.

Steiner desenvolveu uma técnica para conseguir observar melhor as variáveis cataclísmicas, chamada de fotometria diferencial. Damineli explica que, nesse procedimento, é usada uma imagem que contenha a estrela variável e alguma outra estrela estável no campo. Fixa-se, então, uma em relação à outra e tira-se a diferença. Dessa forma, os efeitos da atmosfera que interferem na imagem são eliminados:

“Esse é o perfil mais profissionalmente interessante do Steiner: em qualquer campo que ele trabalhou, ele estabeleceu procedimentos de manipulação de dados que ‘limpam’ todos os fenômenos que não são intrínsecos das estrelas — que são da atmosfera ou dos instrumentos. É por isso que ele descobriu coisas que antes não se conhecia”, diz Damineli.

Mas sua notoriedade vai além de técnicas essencialmente instrumentais. Um ponto alto de sua carreira foi o desenvolvimento do método de análise de cubo de dados, com informações tridimensionais. 

Marcelo Rubinho, doutorando em astrofísica no IAG e divulgador científico, explica que nessa técnica, além do comprimento e da altura das imagens (eixos X e Y), é traçado também seu espectro em cada ponto — o comprimento de onda, que forma um eixo Z. Ele ilustra:

“A luz que recebemos das estrelas é composta por várias ondas. Só que elas chegam todas ao mesmo tempo e diretamente. E isso atrapalha muito na astronomia, porque cada onda tem uma informação diferente. E se todas chegam ao mesmo tempo, é como se a gente estivesse em uma sala lotada de crianças, e todas estão falando ao mesmo tempo: não dá para separar qual a informação que você quer e nem obter informação nenhuma”.

Por isso, as ondas são separadas para se tentar entender uma por uma. “E não só, a gente também consegue ver elementos nas estrelas por causa disso, entender os efeitos deles”, completa Rubinho.

Ao se observar um astro, o método normal é passar sua luz por uma fenda, e assim obter seu espectro. A interpretação desses espectros permitiu o entendimento de diversos aspectos relacionados a núcleos ativos de galáxias.

Catarina explica que o grupo de João Steiner trabalha majoritariamente com esses dados na intenção de fazer um catálogo astronômico do hemisfério Sul, que não tem tantos recenseamentos do céu quanto a porção norte do mapa.

Os resultados dos trabalhos do grupo formado por Steiner se mostraram tão confiáveis justamente pela descendência científica atingida: “Ele sabia que sozinho não teria conseguido fazer aquilo. Ele precisou dos alunos dele, que ele ajudou a treinar com uma certa excelência”, comenta Aydar.

Propagação do conhecimento

Além de fazer ciência com maestria, João Steiner também se comprometeu intensamente a impulsionar a ciência e espalhá-la a todos os públicos. Ainda durante sua graduação em Física, Steiner já tinha interesse em desenvolver pequenos equipamentos para uso em escolas ou estudos caseiros. “Esse sempre foi um perfil dele, de boa relação com conceitos importantes, mas em laboratórios simples”, conta Damineli.

Entre 1988 e 1992, Steiner foi tesoureiro e secretário-geral da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Ficou marcado como o responsável por trazer os astrônomos para lá e por introduzir a astronomia nas atividades da entidade

Toda essa disposição fez Steiner também se envolver com a divulgação científica. Em 1996, quando Augusto Damineli foi aos EUA para seu pós-doutorado, Steiner herdou do amigo a coluna “De Olho no Céu”, da revista Superinteressante. Mesmo muito atarefado e cheio de viagens para cumprir, João resolveu assumir uma coluna de 2,5 milhões de leitores mensais, e conseguiu manter o sucesso estabelecido por Augusto.

A coluna foi seu primeiro grande envolvimento com divulgação científica. Com a missão de manter uma grande audiência, difundir ciência atual e escrever para um público completamente leigo, Steiner deu um grande passo para se fazer entender com palavras simples. “Ele sempre foi muito bom nisso, de ir no centro da questão e explicar de uma forma inteligível para quase qualquer pessoa”, diz o dono original da coluna.

Outro material importante de Steiner voltado para o público leigo é o livro Fascínio do Universo, de 2009, escrito e editado junto a Damineli, que teve 45 mil exemplares amplamente distribuídos pelo país. João também era colunista da Rádio USP desde 2018.

"</pFoto: Divulgação/Editora Odysseus

 

Catarina entende que João conseguia aproximar um pouco mais a academia da sociedade: “Ele era uma pessoa muito boa para comunicar um resultado científico super técnico e específico, mas para que um público leigo também tivesse acesso e pudesse reconhecer a importância”.

Para além da divulgação, Steiner estimulou a ciência através da coordenação de um curso de astronomia do IAG voltado para a formação de professores de ensino médio de todo o estado de São Paulo. Catarina é uma das responsáveis por dar continuidade ao legado de Steiner, por meio da tutoria dessa disciplina:

“O João tinha essa preocupação também com a educação básica. Ele achava que o jeito mais eficiente de tentar trazer um pensamento científico e motivar as próximas gerações a estudar astronomia seria ensinando os professores que vão dar as aulas de Física para essa ‘molecada’ no ensino médio”.

Ela acredita que essa contribuição social idealizada por Steiner é o que pode despertar o fascínio do universo: “Era um grande talento dele, de como ele conseguia motivar as pessoas mostrando a beleza do universo de um jeito acessível, e ainda assim com um rigor científico”.

O cientista brilhante

Em 1998, João Steiner recebeu a Ordem Nacional do Mérito Científico, com o grau de comendador. Em 2010, foi agraciado com o grau da Grã-Cruz da mesma ordem. Antes disso, em 2001, ele recebera a Ordem do Rio Branco, concedida pelo governo federal para aqueles considerados merecidos por algum mérito ou serviço importante ao Brasil, também com grau de comendador.

Mesmo com todo o status e seu caráter visionário, João “não ficava puxando a bola para ele”, segundo Catarina. A humildade de sua criação parecia prevalecer. É o que constata Damineli: “Olhando para o João, isso era o que eu mais via: uma pessoa simples, mas que chegou lá”.

A perda de João Steiner é imensa, não só para quem tinha contato com ele, mas também para a ciência brasileira. Porém, ela não é maior que o legado deixado pelo astrofísico. Há quem diga que quando as pessoas morrem, elas viram estrelas. Uma metáfora que se encaixaria muito bem para alguém que trabalhava com estrelas. Mas que também seria redundante, já que tudo mostra que Steiner já brilhava durante a vida.