Mulheres contra o coronavírus

Pesquisadoras da saúde na USP coordenam uma série de projetos em combate à pandemia

 

por Renata Souza

Foto: Clay Banks/Unsplash

 

Segundo dados do Open Box da Ciência, divulgados em fevereiro, os títulos de doutorado na plataforma Lattes no Brasil pertencem, majoritariamente, a homens. Eles representam 59,7% do total, enquanto as mulheres equivalem à 40,3%. Apesar disso, nas ciências da saúde elas são maioria: 57% do total de 28.612 pesquisadores contabilizados.

Logo quando o novo coronavírus chegou ao Brasil, as mulheres cientistas já marcaram presença. O primeiro caso no país foi confirmado em 26 de fevereiro. Menos de 48 horas depois, uma equipe coordenada e composta em maioria por mulheres publicava o sequenciamento do vírus.

A USP, como um todo, tem sido um importante polo de produção científica nesse momento. Projetos relacionados ao diagnóstico, tratamento, aspectos clínicos, desenvolvimento de vacinas e uma imensidade de outros estão sendo produzidos na Universidade. Por lá, professoras e pesquisadoras coordenam dezenas de projetos ligados à covid-19 na área da saúde.

Ester Sabino, diretora do Instituto de Medicina Tropical 

Professora Ester Sabino sorri em perfil. Usa camisa vermelho escuro com golaFoto: USP Imagens

 

O sequenciamento genético de um vírus é, basicamente, o primeiro passo necessário para combater uma epidemia. Em termos simples, é isso o que permite entender a estrutura do vírus, a maneira como ele se replica, além da identificação de sua origem geográfica. A partir de então é que podem ser desenvolvidos medicamentos e vacinas. Foi isso o que fez a professora Ester Sabino e sua equipe em menos tempo do que qualquer país do mundo

Foi possível sequenciar o vírus em pouco tempo porque a gente estava preparado. Desde o ano passado nós estávamos trabalhando com isso. A gente tinha feito um grande sequenciamento de febre amarela e dengue. Então, quando chegou o vírus sars-CoV-2, estava tudo pronto para fazer acontecer”, explica a imunologista.

O trabalho foi uma parceria entre a Universidade de São Paulo, o Instituto Adolfo Lutz e a Universidade de Oxford. Ester Sabino atuou como coordenadora em São Paulo, enquanto o pesquisador Nuno Faria coordenou na Inglaterra. Os dois são responsáveis pelo Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (Cadde). O projeto estuda, em tempo real, epidemias de arbovírus no Brasil, como a dengue e o Zika.

Apesar de o sequenciamento do novo coronavírus continuar sendo feito principalmente como forma de acompanhar possíveis mutações a pesquisadora participa, ao mesmo tempo, de mais de 10 pesquisas relacionadas ao combate à pandemia. Um dos artigos assinado por Ester e publicado recentemente analisa a imunidade de rebanho para a Covid-19  na Amazônia Brasileira.

Na Faculdade de Medicina da USP, a maior parte das áreas de pesquisa possuem projetos liderados por mulheres. No que se relaciona ao diagnóstico, patologia, autópsia, diagnóstico por imagem, tratamento, epidemiologia, fonoaudiologia e obstetrícia há pesquisadoras coordenando trabalhos.

Ester Sabino ressalta que os homens não são predominantes na área de biomedicina. “Não sinto tanto essa discriminação. Acho que a questão feminina na ciência vai mais na ascensão à área administrativa. Acho que é mais difícil quando você vira diretora do que no começo da carreira para as mulheres”, ela explica.

Cristiane Cabral, professora doutora do Departamento Saúde, Ciclos de Vida e Sociedade da Faculdade de Saúde Pública 

Cristiane Cabral sorri para a foto. Ela está sentada na mesa do Congresso. Ao funo, vemos o painel do CongressoFoto: Abrasco

 

Para entender o impacto das medidas não farmacológicas de combate ao novo coronavírus na vida dos jovens brasileiros, a pesquisadora Cristiane Cabral coordena o projeto “Pandemia Covid-19 e os/as adolescentes: desafios enfrentados a partir das medidas de distanciamento físico-social”.

O trabalho de Cristiane começa com a montagem de quatro grupos focais, formados por jovens da zona Leste da cidade de São Paulo. A atuação será on-line, através de questionários. Até o momento, no entanto, os pesquisadores fizeram apenas uma experimentação com um grupo piloto.

“Ainda não deu tempo de termos estudos suficientes para termos dimensão do impacto nas trajetórias juvenis em relação ao contexto dessa crise humanitária e, sobretudo, do modo como ela está sendo vivida e experienciada em países periféricos”, explica Cristiane.

A pesquisa é uma parceria entre a Universidade de São Paulo e a Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health. A professora esclarece que já há um projeto semelhante, fora do contexto pandêmico, entre as duas instituições. É o Global Early Adolescent Study (Geas). Com a chegada da covid-19 no Brasil, Cristiane decidiu analisar a situação dos jovens nesse cenário em específico.                                                                                                                                                                      

Em relação à escolha da região em que os jovens serão residentes, a pesquisadora diz que é fruto da diferença com que a pandemia atinge diferentes contextos. “Aqui no Brasil vemos, a cada dia, as formas específicas e a população específica que a pandemia vem atingindo. Ela coloca nua as nossas abissais desigualdades e as amplia, seja em termos de pertencimento social, pertencimento social em relação à raça, à região de moradia, entre outros.”

Quando reflete sobre a sua condição de mulher na ciência, Cristiane expande a questão para a Universidade como um todo:

“A gente luta, briga por maior igualdade, acho que é nosso compromisso ético, político e moral, enquanto mulher, de buscar posições equitativas, igualitárias em relação aos homens, mas as diferenças realmente estão colocadas. Na academia não seria diferente.”

– Cristiane Cabral

Se a pandemia chegou aos países periféricos ressaltando diferenças, com a desigualdade de gênero não aconteceu diferente. Para a professora Cristiane, a pandemia afetou, principalmente, as mulheres “cuidadoras” e cientistas. Sejam aquelas responsáveis por filhos menores ou por idosos. “Claro que ela é imediatamente afetada, então é claro que ela vai ter parte da sua produção acadêmica afetada. É evidente que ela vai ter uma sobrecarga absurda de trabalho. E falar dessa sobrecarga absurda de trabalho é falar de desigualdade de gênero, é falar dessa não divisão igualitária”, Cristiane explica.

Ana Marcia de Sá Guimarães, professora doutora do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas 

Ana Marcia sorri para a foto e veste blusa brancaFoto: Arquivo pessoal

 

Dos oito projetos de pesquisa em andamento no ICB, apenas dois tem como professor responsável uma mulher. A professora Cristiana Guzzo coordena um estudo para o desenvolvimento de testes rápidos para a Covid-19. Já a microbiologista veterinária Ana Marcia de Sá Guimarães conduz o projeto “Avaliação de hamsters sírios (Mesocricetus auratus) como modelo experimental de infecção e doença por SARS-CoV-2”

A pesquisa da professora Ana Marcia, que se encontra em fase inicial, obteve financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Segundo ela, a pesquisa tem como objetivo “desenvolver um modelo animal de infecção e doença pelo sars-CoV-2 que possa ser utilizado para estudos posteriores sobre patogenia, tratamento e vacinas contra Covid-19”.

Também participam do projeto os professores associados Edison Luiz Durigon, Claudio Marinho, Cristiane Guzzo e Carsten Wrenger. Nos dois anos em que se estenderá o projeto, os hamsters serão avaliados quanto à infecção pelo novo coronavírus através de “parâmetros clínicos, hematológicos, bioquímicos, imunológicos, histopatológicos e moleculares”. Por enquanto, como afirma a professora, os resultados de um estudo piloto confirmam o sucesso do modelo animal escolhido.

Sobre a importância da pesquisa, Ana Marcia explica que “antes que terapias e vacinas possam ser avaliadas em ensaios clínicos em pessoas, elas normalmente são testadas em modelos animais de infecção e/ou doença”. A pesquisadora completa esclarecendo que estabelecer um modelos de sars-CoV-2 envolve uma série de desafios. “Esse é um vírus que tende a ser espécie-específico, e o camundongo tradicional é resistente à infecção. Nossa pesquisa usa um modelo de fácil manuseio e que pode ser trabalhado nos laboratórios de biossegurança de nível 3 do ICB-USP”, finaliza.

Além dessa pesquisa, a microbiologista também participou do desenvolvimento de uma plataforma direcionada aos profissionais da saúde, durante a pandemia. No endereço virtual, os visitantes são orientados quanto à manutenção e o descarte de equipamentos de proteção individual. Até o dia 9 de outubro, mais de 160 mil pessoas acessaram o site.

Ana Marcia concorda com Ester Sabino ao afirmar que a discriminação se aflora nos cargos de chefia e coordenação. Nestes, a presença masculina é maior. Além disso, a professora Ana destaca que “as mulheres também tendem a ser menos representadas em eventos científicos como palestrantes e eu não me espantaria se existissem diferenças nas progressões de carreira e na produção científica em diversas áreas da Universidade”. Para ela, a questão de gênero está na presente área da saúde, como em quase todos os ambientes profissionais.

A microbiologista veterinária ressalta que a pandemia também deixará marcas para a atuação feminina na ciência. “Durante a pandemia, a maioria das mulheres cientistas assumiu atividades domésticas e de cuidados com os filhos(as). As instituições não parecem estar preocupadas com isso; não vejo nenhum movimento para resgatar ou recuperar o enorme abismo que existirá entre os cientistas homens e mulheres ao final da pandemia.”

“Esse é o futuro, pois já passou da hora”

A frase acima é da professora Ana, enquanto discorria sobre a necessidade de equalização da presença feminina na academia. Tanto ela quanto Ester e Cristiane concordam que a desigualdade da mulher cientista se destaca em cargos de poder. Ana Marcia ressalta as evidências científicas de que grupos mais diversos produzem pesquisas mais qualificadas. “É estranho ver que os próprios cientistas e instituições muitas vezes ignoram as pesquisas nessa área e o que é certo, e pouco se esforçam para criar um ambiente mais diverso e inclusivo. Em outros países, políticas de diversidade, equidade e inclusão na pós-graduação e na pesquisa de maneira geral são mais presentes”, conclui.

Para a professora Cristiane, é necessário ter esperança. Ela lembra que, há alguns anos, as mulheres passaram os homens no percentual relativo aos anos de estudo. E é aí que ela enxerga a esperança: “assim como teve essa inversão do hiato de gênero em termos de escolaridade, por anos de estudo, espero que tenhamos mais mulheres que sejam professoras livre-docentes, professoras titulares, que ocupem cargos de chefia, cargos de posição de destaque na universidade, porque faz diferença”. A partir dessas diferenças, de trajetórias de vida diversas, é que o mundo pode ser percebido de outra forma, com outros olhares.

De maneira concisa, a diretora do IMT da FMUSP finaliza dizendo que “a gente tem que se colocar, tem que estudar e tem que fazer mudar”.