100 anos de Clarice

Conheça melhor uma das maiores escritoras brasileiras, que hoje completaria um centenário

 

por Karina Tarasiuk

15ª Feira do Livro da USP. Foto: Marcos Santos/ USP

Clarice Lispector foi uma escritora da terceira fase do modernismo brasileiro, também chamada de “Geração de 45”. É conhecida por sua inovação na linguagem e por seus textos intimistas, que faziam uma leitura do psicológico. Em suas entrevistas, respondia de forma curta, enigmática e misteriosa, o que despertava a curiosidade do público leitor.

Nasceu no dia 10 de dezembro de 1920 em Chetchelnik, na Ucrânia, com o nome Chaya Pinkhasovna Lispector. De origem judaica, a família fugiu para Maceió (AL), em 1922, por conta da perseguição antissemita, depois de passar pela Moldávia e pela Romênia. Ao chegar no Brasil, Chaya teve seu nome mudado para Clarice.

Aos cinco anos, Clarice foi para Recife (PE), e aos dez, mudou-se para o Rio de Janeiro. A escritora estudou na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, onde só havia três mulheres. Mas sua carreira não foi para essa área: ela dedicou-se à literatura e, também, ao jornalismo.

Clarice era uma escritora precoce. Em maio de 1940, publicou sua primeira história, O Triunfo. Aos 21 anos publicou Perto do Coração Selvagem, que havia sido escrito aos 19. A obra ganhou o Prêmio Graça Aranha de melhor romance.

Em 1943, casou-se com o diplomata Maury Gurgel Valente. O casamento foi responsável por várias viagens. A escritora teve que morar em outros países, sempre com saudade do Brasil, e abandonou seu trabalho na imprensa. 15 anos depois, separou-se dele. 

Embora o casamento não tenha sido dos mais felizes, foi importante para sua carreira literária, pois a ascensão econômica a possibilitou dedicar-se integralmente às suas obras, sem precisar trabalhar.

Em 1959, após se separar do marido, retoma o trabalho na imprensa, para poder se sustentar financeiramente e conquistar sua independência. No final dos anos 60 começa a publicar livros infantis e em 1977 publica sua última obra: A Hora da Estrela, que fala sobre uma jovem nordestina que vai para o Rio de Janeiro.

No dia 9 de dezembro de 1977, na véspera de seu aniversário, a escritora morreu vítima de um câncer.

Quem foi Clarice Lispector?

Para Yudith Rosenbaum, crítica literária, psicóloga e professora da FFLCH-USP, Clarice era uma pessoa extremamente sensível, como todo artista. “A sensação que eu tenho é de que ela viu demais. Ela olha as coisas numa profundidade que deve ser ao mesmo tempo maravilhoso, mas também difícil”. 

Rosenbaum conta que a autora vivia o dilema da modernidade de insuficiência das palavras para representar o que é visto. “Ela vê com tamanha intensidade que a linguagem não alcança. É uma personalidade muito intensa, que vibrava muito com as coisas. Não com as coisas talvez convencionais,  mas sempre o outro”.

Foto: Arquivo pessoal/ Divulgação Rocco

Clarice não era uma pessoa acomodada, sua temporalidade não correspondia muito à do mundo real. “Para ela o tempo era mais bergsoniano, não era cronológico, habitual. Ela realmente podia sentir uma certa inadaptabilidade, uma sensação de ser meio estrangeira ao seu tempo, à sua época, deslocada. Sobretudo essa inadaptação em relação às convenções sociais, aos papéis”, explica a professora.

Obras de destaque

Nádia Battella Gotlib, escritora e pesquisadora literária, destaca três obras que podem formar uma trilogia: Perto do Coração Selvagem (1943), O Lustre (1946) e A Cidade Sitiada (1948). “Eles foram um conjunto muito interessante, quase como uma trilogia”. O primeiro romance trata da formação da mulher, desde a infância. Já os dois outros se debruçam sobre a personagem feminina procurando um lugar, um espaço nesse mundo, e passando por várias experiências afetivas, sentimentais. “Nesses três existe um desbravamento, ou uma exploração, da intimidade dessas pessoas, no sentido de o que se passa de dentro delas, na mente delas.” 

Ela também destaca A Paixão Segundo G. H. (1964), seu romance preferido. “Clarice leva à máxima potência o poder da linguagem, não só no sentido de construir figuras no sentido retórico, como imagens criativas. Ela leva também ao máximo a capacidade de a personagem suportar a intensidade das suas experiências da paixão”. A paixão, aqui, pode ser vista como tradução da condição humana, feita de coisas muito boas e de coisas muito ruins. “É a aceitação dessa condição humana. A G. H. passa por essas experiências que são muito intensas, a tal ponto que às vezes fica difícil você fazer a leitura do livro. Ele é encantador, é um romance muito sedutor.”

Por fim, Gotlib menciona A Hora da Estrela (1977), o último romance da autora. Na obra o narrador Rodrigo conta a história de Macabéa, imigrante nordestina que vai ao Rio de Janeiro em busca de melhores oportunidades. Ela é uma personagem inocente e ingênua, e acaba sofrendo por sua personalidade. “A história da Macabéa trata, entre outras coisas, da problematização da cultura. Fala do poder de quem tem ‘cultura’ sobre quem não a tem, que não tem nada, como a Macabéa”.

Yudith Rosenbaum não tem dúvida quanto à sua obra preferida: Laços de Família (1960), o livro de contos de 1960. “É um dos melhores da nossa literatura, sobretudo do século XX. Ela realmente sacou tanta coisa nesse livro…”. Embora tenha sido publicado em 1960, os contos são dos anos anteriores, retratando a sociedade da década de 50. 

“Ela examina com uma lupa, sobretudo a condição da mulher, examinada com muito detalhe. Clarice não é de grandes horizontes, ela realmente é da minúcia”. Como disse a crítica Gilda Maria de Souza, Clarice tem um olhar míope. Rosenbaum continua: “É míope mesmo, porque ela vai muito perto. Naquele tempo ela tinha que se ater ao mundo doméstico”.

A professora comenta que Clarice  percebeu muito bem a mulher da sua época. “Ela mostra a mulher dentro da casa, mas principalmente o que acontece com essa mulher quando sai e enfrenta os outros do mundo. E aí a Clarice é genial. Ela flagra essa escapada do sistema em que estamos constrangidos durante a vida e mostra esse momento em que há um vislumbre de libertação, quando as personagens percebem que podem viver de outro jeito, reagir de uma forma diferente.” 

“A mulher sai do sistema de crenças e valores patriarcais, esse livro é muito poderoso por conta disso. Ele mostra o que acontece com essa mulher, mas mostra por dentro. É um narrador que mergulha no mundo interior, no monólogo indireto livre. Não sabemos mais quem é o narrador e quem é a personagem, tem essa mistura, perda de fronteiras, uma técnica muito importante da Clarice. O narrador prepara o momento em que se abre uma fenda e coloca essa mulher numa situação de falso conforto. As personagens pensam que estão seguras, sólidas, bem consolidadas no seu lugar. E aí o que acontece é um incidente casual, insignificante, prosaico, inesperado, mas muito cotidiano, que faz com que essa personagem se depare com uma face nova de si mesma, algo desconhecido, sempre a partir de um outro que dispara isso nela. Clarice transcende, fala muito da condição humana, o êxtase de ser gente, o trágico da nossa condição.”

– Yudith Rosenbaum

Romances psicológicos

Yudith Rosenbaum fala que muitos identificam as obras de Clarice como romance psicológico, intimista, de introspecção ou de sondagem do interior. “A Clarice está numa época em que dominava o romance social, o neorrealismo. Ela chocou muito quando surgiu, porque enquanto Guimarães Rosa falava do sertão de Minas, ela falou de outros sertões, sertões internos, mas que não estão desconectados da vida social”.

Pode haver uma impressão de que romance psicológico é uma prosa alienada que não percebe os fatores sociais. “Não é assim, a Clarice vem mostrar justamente isso. As contradições da vida são examinadas por dentro, nas suas repercussões. O dentro e o fora se correspondem, agem com intensidade e com intenção. Nós percebemos modalidades sociais pela sondagem do narrador, que vai mergulhando no mundo psíquico”, conta a professora. 

Clarice Lispector em 1940. Foto: Arquivo pessoal/ Divulgação Rocco

Embora existam textos mais evidentemente sociais, como A hora da estrela, os outros não deixam de ser também: “a introspecção não é uma prosa alienada, ela faz uma sondagem das marcas do Brasil, como o país situa a mulher, como recebe seus imigrantes. O Brasil está muito presente na obra da Clarice, presente com o seu atraso, seu conservadorismo, seu machismo”.

A obra de Clarice também apresenta uma ponte com a psicanálise. “Ambas estão centradas na palavra, na linguagem”, conta Rosenbaum. No caso de Clarice, a psicanálise se encontraria no efeito de estranhamento obtido com sua obra. “A obra surpreende o leitor, desloca-o dos seus lugares habituais, fazendo-o ter até um certo mal estar às vezes. Ela trabalha com questões nem sempre confortáveis para quem lê”. 

“Tem sempre esse momento de confronto com outro eu, a sensação que você tem como se estivesse diante de um outro que não é você, isso gera efeito de estranhamento. Ela faz com que as coisas do dia a dia sejam sentidas como infamiliares, estranhas. As coisas se mostram fora dos lugares, isso é muito psicanalítico. Mas é claro que ela sabe muito mais que a psicanálise. A psicanálise está sempre atrás da arte. A arte é mais profunda”.

– Yudith Rosenbaum

Uso de máscaras

Mariana Borrasca Ferreira, jornalista e mestre em letras pela FFLCH-USP, escreveu sua dissertação de mestrado sobre a noção de mascaramento presente nas obras de Clarice Lispector. Ela estudou o modo como esses processos são configurados pela escritora em alguns de seus contos. “Eu notei que, na obra de Clarice, a presença das máscaras adquire diversas significações, sendo que a própria palavra ‘máscara’ é empregada com sentidos diferentes.” 

As máscaras, na produção clariceana, têm caráter paradoxal. “Elas podem esconder e, ao mesmo tempo, revelar o sujeito que as veste, sendo sentidas como essenciais para a vida em sociedade e, simultaneamente, como impedimento para a vida livre da personagem. O processo de vestir e tirar as máscaras é entendido enquanto constante e contínuo ao longo da vida. Fica destacado o fato de que é impossível viver sem as máscaras, vontade que permanece enquanto procura utópica.”

O estudo de textos da autora indica a presença da máscara enquanto objeto e parte de figurinos, como no conto Mistério em São Cristóvão, que traz personagens fantasiadas e mascaradas. “Também se observa a maquiagem sendo encarada enquanto máscara, como no conto Ele me bebeu e em trechos de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”, diz Ferreira. 

“Nota-se, também, a noção de máscara psicossocial, isto é, os diversos papéis assumidos pelo sujeito ao longo da vida, como pode ser observado em Praça e em muitos outros textos clariceanos”. Mariana destaca, ainda, o entendimento da própria linguagem enquanto máscara, disfarce da realidade. “Essa noção permeia a obra da autora que, em vários momentos, diz procurar por uma linguagem mais direta do que seriam as palavras”. 

Produção para a imprensa

Tânia Sandroni é jornalista e doutora em Teoria Literária pela FFLCH-USP. Ela estudou as colunas femininas que Clarice Lispector escreveu em 1952, sob a máscara de Tereza Quadros, no jornal Comício, criado e gerido por Rubem Braga, Joel Silveira e Rafael Correa de Oliveira. Em sua tese ela analisou a reafirmação do estereótipo feminino e sua subversão nas colunas. 

De acordo com Sandroni, Clarice “sempre esteve com um pé na imprensa”. Começou a trabalhar como repórter em 1940, com apenas 20 anos. Até pouco antes de morrer, produzia crônicas para o Jornal do Brasil e entrevistas para a Revista Manchete. 

A imprensa teve duas funções muito importantes para Clarice: foi fonte de renda, especialmente quando jovem e depois, quando separada do marido, e também foi responsável pela constituição da rede de sociabilidade da escritora. “O contato com os seus pares, intelectuais brasileiros ativos, especialmente no Rio, foi possibilitado pela sua presença na imprensa. Isso foi essencial para sua carreira de escritora, principalmente no início”, conta Sandroni. Seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, só foi publicado graças a um acordo com o editor do jornal em que trabalhava. Ela não pagou pela edição, mas não recebeu nada. 

Clarice Lispector produziu colunas femininas em três momentos. “Nas três vezes, usou máscaras. É o único tipo de produção que não tem sua assinatura”, explica Tânia Sandroni. Em 1952, Clarice foi Tereza Quadros no Comício. Entre 1959 e 1961, foi Helen Palmer no Correio da Manhã. E em 1960 e 1961, foi ghost-writer de Ilka Soares no Diário da Noite.

O Comício era um semanário com 32 páginas. Não tinha recursos financeiros, mas conseguiu reunir na redação nomes como Drummond, Millôr e Fernando Sabino. O jornal durou cerca de seis meses, com 23 edições, e faliu por “leucemia administrativa”, como disse Millôr.

Clarice Lispector fazia a página “Entre mulheres”. Sua participação no jornal foi curta: produziu 17 páginas. A coluna era composta por cerca de 6 ou 7 textos, por uma fotografia de uma modelo relacionada à moda e, eventualmente, alguma ilustração.

“O diferencial da página é que, ao lado de receitas e dicas relacionadas ao universo doméstico, que ratificavam o papel da mulher na sociedade patriarcal, Clarice publicava trechos de outros autores e crônicas de autoria própria. Algumas dessas crônicas se tornaram contos publicados posteriormente em seus livros”, diz Sandroni. 

A pesquisadora também comenta ser possível dizer que Clarice Lispector foi pioneira ao apresentar trechos de O segundo sexo (1949), obra base do pensamento feminista, às leitoras do jornal. “Ela não agia, na coluna, de forma ativista ou engajada. Na verdade, ela agia de forma dissimulada. Simplesmente publicava os textos sem qualquer comentário.” 

De modo geral, Clarice Lispector defendia a emancipação feminina, mas sem levantar bandeiras de movimentos. “Isso é nítido na coluna Entre mulheres”, conta Tânia. A colunista teve autonomia, devido às características do Comício, para planejar a página. “Por isso Tereza Quadros é a mais ‘ousada’ das três máscaras.”

A pesquisadora aponta outras diferenças em relação à “máscara” de Tereza: “Como Helen Palmer e Ilka Soares, ela teve que se submeter mais às restrições dos veículos e de suas linhas editoriais. Além disso, nessas duas atuações dos anos 1960, ela buscava uma fonte de renda. Tratava-se de um emprego. No Comício, o dinheiro não era significativo, já que muitos colaboradores não recebiam nada, e ela ainda estava casada com um diplomata”.

Legado literário

Nádia Battella Gotlib diz que Clarice traz uma obra muito diversificada, com um nível de qualidade excelente, e com muita originalidade e criatividade. “Ela escrevia diferente das outras pessoas, não seguia modelos convencionais e inovava através de vários recursos”. Sua própria preocupação com a linguagem já é uma inovação. “Era uma mulher muito aberta ao que o mundo tinha a oferecer para ela. E dizia que ela era inclassificável, e era mesmo, porque não se encaixava em modelos”.

Clarice Lispector em 1960. Foto: Arquivo pessoal/ Divulgação Rocco

Para Yudith Rosenbaum, o primeiro legado de Clarice foi publicar uma obra que rompeu com os padrões da linguagem da época. “Ela deixou esse legado da ousadia da palavra, fez a palavra ressoar em camadas totalmente novas de significação, porque faz combinações muito insólitas de adjetivos com substantivos. Ela dizia, por exemplo, ‘náusea doce’, ‘alegria difícil’, ‘horrível mal estar feliz’”. Clarice saiu do dicionário e cria seus referentes. “São muitas antíteses, muitas contradições que ela põe nas frases”. 

Ela também transgrediu a pontuação. “Os modernistas já tinham aberto esse caminho e a Clarice aproveitou e radicalizou. Tem um romance que começa com vírgula e termina com dois pontos. Tem outro que começa com seis travessões, e termina com seis travessões. Ela traz essa liberdade para escrita, de escrever para ir para perto da Coisa. O que é essa coisa, não me pergunte, mas ela quer estar perto da Coisa. E para isso ela tem que inovar na língua”. 

Rosenbaum também aponta um legado para o público leitor. “Nós somos acordados pela Clarice. Ela nos desperta de uma espécie de sono. Ela nos mostra um espelho, nem sempre apaziguador, mostra o que desconhecemos de nós mesmos e nos chacoalha, para nós sermos plenamente”.