A USP que nunca parou: recém-formados da FMUSP contam as suas experiências de pandemia

Turma 103 da Faculdade de Medicina da USP concluiu o curso no início de novembro, após meses de trabalho nos hospitais-escola em meio à pandemia 

 

por Gabriella Sales

Cerimônia de colação de grau ocorreu em horários diversos e grupos menores, devido à pandemia. Fotos: Arquivos pessoais

 

Medo, solidão, impotência. Esses foram sentimentos relatados pelos recém-formados em Medicina pela USP, sobre a experiência de concluírem a faculdade em plena pandemia. No início de novembro, a 103ª turma da FMUSP concluiu oficialmente o curso, com a cerimônia de colação de grau. O JC conversou com três dos mais novos médicos formados pela USP, para entender um pouco melhor a experiência de cursar o último ano em meio à pandemia do novo coronavírus.

O curso de Medicina tem algumas peculiaridades em relação a outros oferecidos pela USP. Os últimos dois anos, chamados de internato, são realizados principalmente por meio de atividades práticas, plantões e estágios em hospitais. No caso da USP, os estudantes completam sua formação trabalhando em diversas áreas de serviços de saúde, em rodízios no Hospital Universitário e no Hospital das Clínicas. Logo, seria impossível concluir o curso de maneira on-line, conforme orientação geral da reitoria. Camila Agostinis, Fábio Luis Kenji Ito e Isabella Macedo, que estavam começando o sexto e último ano da graduação quando se iniciou a pandemia, relataram um pouco das suas experiências ao longo de 2020.

Qual foi a primeira reação da turma quando começou a pandemia e tudo parou? Como decidiram continuar e qual foi o esquema decidido?

Isabella: Bem no início da pandemia, quando ainda não se tinha ideia das proporções que ela tomaria, a maior parte das pessoas achava que não seríamos realmente afetados e tudo poderia continuar relativamente normal. Então, no final de março o HC se tornou exclusivo para atendimento de pacientes com covid, o que fez a maioria de nós acreditar que não ia ter como continuar o internato. Não queríamos nos formar tendo atendido só covid. Houve uma grande mobilização da turma em prol de parar as atividades, mas em extensas discussões com a coordenação da graduação foi decidido que o sexto ano continuaria os estágios de forma adaptada, mas tentando manter ao máximo possível dentro de padrões mínimos ao que seriam os estágios originais.

Fábio: Muitos alunos estavam receosos de contrair a doença ou ter o ensino prejudicado, mas outros gostariam de continuar para terminar a graduação o mais rápido possível. Assim, conversamos com o diretor da faculdade e foi decidido que o internato continuaria para o sexto ano, sendo que no final do curso haveria um período de workshops e reposições de plantão para cobrir os déficits causados pela pandemia. O sexto ano é voltado principalmente para emergências, um setor que atua de portas abertas e que deveria continuar a funcionar, independente da pandemia. Outros setores teoricamente menos urgentes, como ambulatórios e cirurgias eletivas tiveram suas atividades reduzidas ou até suspensas, o que impedia a continuação dos curso para os outros anos. Caso algum aluno tivesse sintomas respiratórios, ele deveria realizar o teste rápido e se afastar das atividades curriculares por 14 dias caso positivo.

Camila:  Os estágios foram afetados de maneiras muito desiguais e, portanto, cada grupo de alunos teve seu ensino prejudicado em graus muito diferentes. Lembro que rolaram muitas discussões, alguns queriam parar o internato para garantir a qualidade do ensino, outros queriam ajudar na parte assistencial da pandemia. Muitas opiniões diferentes. A decisão acabou partindo mais “de cima”, houve uma certa pressão da própria faculdade para manter o funcionamento do internato da maneira que fosse possível. O meu grupo, especificamente, estava nos estágios de Pronto Socorro, que foram transferidos de instituto e muito prejudicados. Acabamos fazendo esses estágios com fluxos muito reduzidos de pacientes. 

Aulas teóricas e outras atividades foram mantidas de maneira remota

 

A partir daí, quais vocês diriam ser a melhor e a pior parte da decisão? Hoje, teriam feito de outra maneira?

Fábio:  A melhor parte da decisão foi terminar a graduação no tempo correto. De modo geral, preceptores se esforçaram para tentar transmitir o conhecimento necessário, mesmo com a diminuição do fluxo de pacientes. A pior parte foi conviver com a incerteza de estar com a doença e eventualmente transmitir para os familiares. Acredito que a decisão de continuar foi acertada, uma vez que conseguimos aprender a matéria proposta e, de certo modo, conseguimos auxiliar as equipes médicas dentro dos hospitais.

Camila: A pior parte foi o cotidiano dos estágios reestruturados. Muitas vezes me sentia inútil por ir trabalhar e não atender ninguém o dia inteiro, enquanto estavam precisando de muita ajuda no setor de covid. Sentia que eu estava desperdiçando meu tempo e que não estava focando a energia em ajudar verdadeiramente as pessoas. A melhor parte foi ter algo pra fazer quando tantos foram afastados de tudo. Apesar dos estágios ruins, ainda estávamos aprendendo algo de alguma forma, ainda estávamos seguindo. Vendo como as coisas evoluíram, hoje eu faria tudo do mesmo jeito. Não acho que, se tivéssemos parado os estágios, eles nos teriam sido garantidos depois com qualidade. Só iríamos atrasar as coisas para ter os mesmos problemas depois.

Isabella: Considerando as proporções e a duração da pandemia, acredito que a melhor opção mesmo foi ter continuado os nossos estágios. Alguns momentos foram péssimos, não tínhamos pacientes para atender, os estágios perderam qualidade e a gente sentia que ia se formar não tendo visto muitas das coisas que deveríamos ver. O pior da decisão de continuar foi isso, esse medo de achar que teríamos uma formação incompleta. A melhor parte de continuar com certeza foi poder manter a vida relativamente ativa, sentindo que não tinha parado tudo. Tivemos um propósito ao longo dos meses de quarentena.

 

 Equipamentos de Proteção Individual (EPI’s) são essenciais para o trabalho no hospital durante a pandemia

 

Pode descrever um pouco da experiência de trabalhar nos hospitais nesse período de pandemia?

Camila: Meu grupo ficou afastado do setor de covid no pior pico da pandemia devido a nossa grade de rotação nos estágios. Minhas lembranças são mais do começo da pandemia, estávamos em um hospital secundário, havia um pânico muito grande na população e muita desinformação ainda. Nos colocaram para triar e orientar as pessoas e muitas vezes éramos confrontados pelos pacientes. A testagem estava muito limitada, o hospital ainda não estava preparado para aquilo. Foi bem difícil. 

Fábio: Inicialmente, houve grande busca por uso de álcool em gel e máscaras por parte dos médicos, sendo que esses materiais chegaram a estar em falta. Além disso, houve a tentativa de dividir os serviços médicos em áreas específicas para atendimento à covid (instituto central) e áreas que estariam livres do coronavírus (outros institutos), o que nem sempre era possível. No início da pandemia, com as medidas de restrição adotadas, houve grande redução do movimento nos prontos-socorros. Grande parte da população estava com receio de buscar atendimento médico nesse período. Assim, grande parte dos plantões eram pobres em movimento, à exceção de quem atuava nos setores de covid.

Isabella: Trabalhei tanto no setor de atendimento covid quando no setor de pacientes que não tinham covid. Foram experiências bem distintas, claro. No setor covid acredito que o mais difícil era ver o medo dos pacientes e ver o quanto os colegas estavam exaustos, consumidos pela pandemia. Já no setor não covid, foi muito complicada a tensão constante de saber que poderíamos nos contaminar e contaminar outras pessoas, já que os cuidados de paramentação eram menores. Ao mesmo tempo, qualquer paciente com os mínimos sintomas já nos davam o medo de ele ter covid e estar expondo os outros pacientes do local.  Acho que incerteza foi um dos principais sentimentos. Em relação a ser a decisão certa ou errada continuar o curso nessas condições, em relação à dúvida de já ter se contaminado ou não, em relação a não saber como lidar com uma doença nova é desconhecida. E outro sentimento acredito que foi o medo constante por si e pelos familiares e amigos, uma tensão que estava o tempo inteiro presente.

 

Formatura com segurança: cerimônias em pequenos grupos, respeitando medidas de restrição social

 

E agora, formados, em meio à pandemia, qual a principal sensação? Como foi a formatura?

Fábio: Foi uma sensação ótima, de felicidade e dever cumprido. Apesar de toda a pandemia, acredito que conseguimos aprender bem dentro das limitações impostas. Além disso, conseguimos terminar o curso e podemos exercer nossa profissão. Não tivemos formatura ainda, apenas colação de grau, que foi realizada em pequenos grupos, em esquema de rodízio, para evitar aglomerações que violassem as medidas de restrição social.

Isabella: Acho que a sensação é de vitória. Apesar de todo o caos, conseguimos nos formar, e tenho a segurança de que aprendemos o que deveríamos. Acredito sim que algumas experiências foram perdidas com a pandemia, mas de forma geral acho que nos formamos com potencial de sermos bons médicos. Fico triste com a falta de vivências e despedidas que marcam o último ano, mas sou muito grata por ter conseguido concluir meu curso no meio disso tudo. Fizemos a colação em seis horários e dias diferentes. Cada panela (o grupo de estudantes que convivem juntos em cada estágio do internato) ficou com um horário. E a cerimônia foi transmitida pelo YouTube para amigos e familiares. Não foi o ideal, mas, como disse, no meio de todo o caos da pandemia, fico feliz e grata por isso ter sido possível. Tivemos que adiar todas cerimônias de formatura (culto ecumênico, colação festiva, festa), esperamos comemorar no futuro.

Camila: Eu fico feliz de estar formada, acho que o sexto ano foi proveitoso dentro das possibilidades. As festividades de formatura foram adiadas, ficou um grande vazio de diversos rituais de grande significado. Ainda não sei como vou encontrar cura para esse vazio. Meus planos para o ano que vem mudaram muito. Mas ainda consigo ver a beleza de encerrar uma jornada tão importante pra mim.