Evento de barcos de luxo na raia da USP gera revolta dos estudantes

 

por Gabriel Cillo

 

Foto: moradores do Crusp

 

A raia olímpica da Universidade de São Paulo (USP), localizada no Campus Cidade Universitária, foi palco de um evento no qual barcos de luxo foram exibidos entre os dias 19 e 24 de novembro. O São Paulo Boat Show, apontado como maior salão náutico da América Latina, reuniu mais de 70 embarcações de luxo, com valores exorbitantes, que variam de R$ 45 mil a R$ 3,4 milhões.

Mesmo em meio a pandemia o evento aconteceu normalmente, com uma considerável adesão do público, segundo informou a organização: “respeitando todas as normas estipuladas por lei, pelo Plano SP e vigilância sanitária, o Boat Show recebeu aproximadamente 18 mil pessoas (até 1990 simultaneamente) e movimentou mais de R$ 155 milhões”.

O encontro só foi possível após liberação dos órgão governamentais, com autorização da Prefeitura de São Paulo e também mediante acordo com a reitoria. O pagamento de aproximadamente R$ 400 mil, para que a USP cedesse o espaço, foi feito através de: R$ 90 mil de aluguel da raia, melhorias na estrutura, metade da renda arrecadada com estacionamento do evento e a doação de um barco avaliado em R$ 70 mil, que será usado pela comunidade acadêmica para atividades esportivas, de ensino, pesquisa e extensão. 

Situação dos alunos moradores do Crusp em meio à pandemia 

Os dias 23 e 24 de novembro foram marcados por uma reação da comunidade USP ao São Paulo Boat Show. Alunos do Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (Crusp) se mobilizaram em protesto, se posicionando contrários ao evento de embarcações de luxo que acontecia na raia, não concordando e enfatizando os riscos oferecidos à saúde dos alunos e funcionários por conta da aglomeração de pessoas em meio a pandemia do novo coronavírus.

Além do risco natural por conta do aumento da circulação de pessoas dentro do campus, com um evento dessa proporção, indicando aglomeração, e configurando fatores que contribuem para a disseminação do vírus, houve mais uma preocupação. Segundo Ana Carolina Maria dos Santos, estudante do quarto semestre do curso de  Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH): “não bastasse o risco do evento em si, não respeitando a pandemia e a necessidade de isolamento social, carros de luxo dirigiam em alta velocidade pelas ruas do campus, colocando em perigo a segurança dos moradores do Crusp, sem qualquer movimentação da polícia para coibir a irresponsabilidade dos motoristas”.

 

Foto: moradores do Crusp

 

A situação inflamou quando os manifestantes fecharam a rua para os carros não passarem, impossibilitando o acesso ao evento: “um homem, que não estava usando máscara ou qualquer outro Equipamento de Proteção Individual (EPI), saiu do carro para xingar os estudantes de maneira extremamente agressiva”. O caso se agravou quando a Polícia Militar foi acionada para atender a ocorrência de que os alunos barravam o público de entrar, utilizando spray de pimenta e bomba de gás: “os estudantes receberam repressão desmedida da PM, bem diferente das pessoas que dirigiam em alta velocidade pelas ruas do campus”, alerta a estudante da FFLCH.

 
Foto: moradores do Crusp

 

O caso do São Paulo Boat Show é um incômodo real dos estudantes, mas há outros agravantes que já fazem parte da rotina dos moradores do Crusp há muito tempo. Vivendo em habitações insalubres, com problemas estruturais graves nos diversos blocos: como fiação velha que impossibilita o uso de eletrodomésticos, como fogão, microondas e máquina de lavar por conta dos riscos de incêndio; internet instável e de péssima qualidade; infiltração que mais parece uma cachoeira; falta de água quente e de energia. O que já era ruim piorou por conta da pandemia, com o bandeijão central fechado a reitoria disponibilizou marmitas feitas pelo bandeijão da química: “recebemos uma comida de péssima qualidade, há casos de alunos que receberam marmitas mofadas, algo preocupante, visto que não podemos cozinhar nossa própria comida no Crusp”, lamenta Ana Carolina Maria dos Santos.

Risco aos funcionários da USP em meio à pandemia

Desde a suspensão de todas as atividades presenciais no Campus Cidade Universitária, no mês de março, lá no começo da pandemia, a USP não optou pelo afastamento imediato de todos os seus funcionários. Mesmo que a região do Butantã, onde está localizado o campus, fosse um dos epicentros da doença no início da pandemia. Apenas posteriormente, com a obrigatoriedade, através de uma decisão do governo do estado, que a reitoria entendeu que todos os funcionários de funções não essenciais deveriam interromper suas ações presenciais, mantendo teletrabalho por atividade remota quando possível.

Esse embate entre o Sindicato dos Trabalhadores da Universidade de São Paulo (Sintusp) e a reitoria se estendeu durante toda a pandemia, sendo sempre fator presente nas discussões. Com a luta para garantir EPIs para os funcionários que estavam comparecendo aos seus pontos de trabalho, como o caso de seguranças e o pessoal do Hospital Universitário (HU). Segundo o Diretor do Sintusp e representante dos funcionários no CO Funcionários da Faculdade de Educação, Reinaldo Santos de Souza, há uma preocupação em especial com o caso do HU: “muitos trabalhadores do grupo de risco continuaram exercendo suas funções, se expondo ao vírus, ainda mais num ambiente como o HU. Com isso, já contabilizamos 16 mortes por COVID-19 entre todos os funcionários, sendo duas pessoas do HU e também do grupo do risco”. 

A situação se agravou, gerando um descontentamento geral, com a tentativa da reitoria em impor o retorno compulsório dos funcionários no início de novembro. “Essa ação da reitoria excluía os grupos de risco do retorno, mas ao nosso ver o conceito de grupo de risco era equivocado e muito restrito”, explica o Diretor do Sintusp. Após uma semana, tendo repercussão negativa, com movimentação dos funcionários em diversas unidades, demonstrando insatisfação com o retorno, ainda mais considerando que alunos e professores não retornariam, a reitoria recuou.

Toda essa situação só demonstra o descaso da reitoria com a saúde e segurança de seus funcionários, fato que só foi confirmado ao promover um evento do porte do São Paulo Boat Show dentro dos muros da USP. Ainda mais deslocando muitos para fazer a segurança e demais dinâmicas de acesso até a porta de entrada. Não se preocupando com o número de pessoas que circulariam pelas dependências do campus, com elevado potencial de disseminação do vírus para seus funcionários.

Incoerência e falta de transparência

O São Paulo Boat Show aconteceu, passou, e utilizou do espaço da raia da Universidade de São Paulo para exibir as embarcações de luxo no maior salão náutico da América Latina. Entretanto, é necessário uma análise em dois pontos principais: a forma como a reitoria conduziu o fornecimento do espaço e toda sua divulgação, e qual a função de uma universidade pública como a USP.

Por se tratar de um evento para um grupo seleto da sociedade brasileira, uma certa elite que se interessa pelo ramo naval e apresenta poder aquisitivo para tal, a comunidade USP não obteve conhecimento. “Nós, alunos e moradores do Crusp, só ficamos sabendo do evento quando já estava acontecendo, através de uma nota de repúdio da Congregação da FFLCH à realização do Boat Show na raia olímpica”, contou Ana Carolina Maria dos Santos. 

 
Foto: moradores do Crusp

 

Toda a negociação, de um evento que envolvia a circulação de milhares de pessoas em meio a pandemia, não foi amplamente divulgada. A reitoria em nenhum momento teve um alinhamento com funcionários ou moradores do Crusp. Além disso, não há transparência sobre o pagamento dos R$ 400 mil, que envolve diversas formas conjuntas de ações, como retratado anteriormente, para alcançar tal valor. Não apresentando um projeto ou deixando clara quais seriam as melhorias, e nem a forma exata de uso do barco de R$ 70 mil nas atividades esportivas, de ensino, pesquisa e extensão. “Esse barco envolvido na pagamento por parte do evento pode se tornar um presente de grego, se tornando mais um empecilho, com a preocupação para se manter, do que em benefícios, dependendo de como for usado”, alertou Reinaldo Santos de Souza.

Esse panorama, no qual o evento aconteceu, é sintomático, demonstrando que a reitoria tem outras prioridades. Afinal, a situação histórica de insalubridade do Crusp ou as demandas dos funcionários administrativos não são artigos de primeira preocupação para a reitoria. Além disso, há toda uma questão de falta de entendimento do que a universidade pública representa e qual sua real função.

Foto: moradores do Crusp

 

Podemos entender como funciona o comando da USP através da declaração do reitor Vahan Agopyan: “quando você tem um evento desse tipo, que a sociedade vem à universidade e compartilha suas preocupações, ajuda muito na integração”. Esse pensamento demonstra a falta de compreensão de que a universidade pública deveria ser lugar de acesso mútuo para toda a população, e não só uma elite, através de eventos culturais, esportivos e de difusão do conhecimento, e não comerciais, como o Boat Show.

Essa incoerência e falta de transparência nas ações, e tomadas de decisões unilaterais, preocupa, e muito. Atestando falta de preparo e entendimento do tamanho da Universidade de São Paulo e sua importância como entidade pública de ensino para o Brasil. Faltando alinhamento entre os mandatários e a função social, o papel que a USP deve cumprir com a sociedade brasileira.