O iFood é um garoto!

 

por Rafael Sampaio

Arte: Rafael Sampaio/Fotomontagem com imagens de Ewerton Santos e Jahan Geer/Unsplash

 

A cabeça latejava. Parecia flutuar, arrastado. Mas não havia vento. Calor sufocante. O Sol no centro do céu. Olhos vermelhos: irritados pela fumaça dos carros e pelo suor. Viu as horas. Tinha 5 minutos.

Os enormes ônibus biarticulados corriam pelo corredor feito cobras ávidas, famintas. O garoto sentia o bafo da serpente; agarrava-se à bicicleta pensando estar protegido. A bicicleta colada no meio fio, espremida. O biarticulado serpenteava com fúria e violência. Toda vez, quase o engolia. O sol. A camisa encharcada colada ao corpo

Três minutos. Tão cedo colocaram a carga nas suas costas. Achou leve, no início. Seus ombros, agora, estavam descarnados. As alças da mochila térmica roçando 10 horas por dia. Açoites de chicote. Cicatrização impossível. Feridas feitas, refeitas, há centenas de anos. Pedalava com o peso nas costas. 

Precisava vencer a ladeira íngreme. O asfalto derretia agarrando os pneus da bicicleta. O sol queimando sua pele. A sua frente, tudo parecia dançar. A rua ondulava como se fosse um mar. Pensou estar preso em um sonho. Alucinava. Cerrou com força os olhos. Ao abri-los, tudo igual: a ladeira, o sol, o peso da mochila. Dois minutos. 

O sol. Faltava pouco. Podia ver o edifício. O prédio parecia balançar. O sol. Tentou acelerar. Respirava com a boca aberta. A face lavada de suor. Toda sua força nas duas pernas. Pedalava em pé, na tentativa de reduzir seu esforço. O gigantesco sol. O tempo correndo. Um minuto.

A bicicleta movida pelas pernas. Pernas sem corpo acopladas aos pedais. Um garoto de 17 anos transformado em uma máquina. Simples motor de bicicleta.

Máquinas são cegas e surdas.

A bicicleta entrou no cruzamento. Cega para os carros. Surda para os gritos das buzinas. Foi então que o garoto despertou. No meio da avenida ficou imóvel. Sentia as pernas cansadas. O sol. A cabeça doendo. Entregue, deixou-se cair. 

O cotovelo sangrava. A bicicleta sobre o seu corpo. A mochila térmica nas costas: uma ancora a prendê-lo no chão. Sentiu o abraço acolhedor do asfalto. O sol já não queimava mais. Erguer-se pra quê ? O tempo acabara. 

Por um momento a roda cessou seu giro. Motoristas, passageiros e pedestres reconheceram, surpresos, um garoto desmaiado no meio da avenida.

Alguém. Alguém o livrou do peso: a âncora mochila foi retirada dos seus ombros. Alguém arrastara a sua bicicleta. Alguém o erguera da avenida. Um copo de água, alguém lhe serviu. 

Meio zonzo. Sentado na calçada, tentava entender. Tinha que fazer alguma coisa. Tentou lembrar o que era. Levantou, sem ainda saber o que buscava. Quase caiu. Melhor fosse ficar sentado. A cabeça pulsando. Tudo girava. O sol. Pessoas o encaravam, os carros indo e vindo, as placas de trânsito, motos zunindo, uma mochila térmica vermelha. Sua mochila. Buscou-a no chão. O peso de volta aos ombros. A bicicleta apoiada no poste. Ajeitou a corrente solta na catraca. Pedalou, sem parar, até o topo da ladeira. 

Como se o sol não queimasse, como se sua cabeça não doesse, como se não tivesse caído, como se seu cotovelo não sangrasse. Ágil, saltou da bicicleta na porta do edifício.

Digitou o número do apartamento no interfone.

– Alô, quem é ?

– Do iFood, tenho uma entrega.

– Tá atrasado! Não vou receber!