O que esperar da política externa brasileira em 2021

Derrota de Trump, relacionamento com a China e percepção externa diante pandemia: Pedro Feliú Ribeiro, professor do IRI, analisa o cenário brasileiro

 

por Gabriela Caputo

Xi Jinping, Presidente da República Popular da China, cumprimenta Jair Bolsonaro. Outubro de 2019. Foto: Isac Nóbrega/PR via Fotos Públicas

 

A pandemia do novo coronavírus fez de 2020 um ano conturbado para o mundo. Na contagem do número de mortes, os Estados Unidos lideram, com mais de 300 mil até o momento. Em seguida, vem o Brasil, que já ultrapassa a marca de 180 mil mortos. Encabeçados por governantes de tendência negacionista, que lidaram com a pandemia de maneira desastrosa, ambos países acumulam visões negativas diante da comunidade internacional.

Em novembro, os estadunidenses votaram pela saída do atual presidente Donald Trump. Com 306 delegados no Colégio Eleitoral e 51,3% dos votos populares, o democrata Joe Biden derrotou o republicano, que por sua vez levou 232 dos delegados e 46,8% dos votos totais. Além das inúmeras crises que marcaram o governo brasileiro em 2020, a derrota de Trump, a quem Jair Bolsonaro se alinha de maneira incisiva, pode vir a enfraquecer uma possível reeleição do presidente brasileiro em 2022. 

Somados a isso, os atritos com a China e a visão do Brasil nas organizações internacionais. Em entrevista ao JC, Pedro Feliú Ribeiro, doutor em Ciência Política pela USP e professor do Instituto de Relações Internacionais da USP, explica o que se pode esperar da política externa brasileira em 2021.

 Foto: Arquivo pessoal

Pensando em um panorama para a política externa brasileira em 2021, qual é o cenário mais provável nas relações Brasil-EUA, diante da mudança no governo estadunidense, com a eleição de Joe Biden?

A minha expectativa maior é que, com a confirmação “ultra-oficial” da vitória do Biden, o Brasil se reaproxime dos Estados Unidos; mas fica a dúvida se haverá boa vontade de Biden em manter alguns dos compromissos já firmados entre os países. Ao meu ver, do ponto de vista estratégico norte-americano — podemos tomar como exemplo a disputa pelo 5G, num futuro leilão que o Brasil fará —, é de interesse do departamento de Estado manter o Brasil como esse aliado preferencial. 

A política externa de Bolsonaro pode ser descrita como um alinhamento automático aos Estados Unidos; o que foi bizarro nesse momento das eleições norte-americanas é que esse alinhamento parecia ser com o Trump, e não com o país. Isso é algo inédito na política externa brasileira. O Brasil já teve em sua história diversos momentos de alinhamento muito forte com os Estados Unidos, mas não me recordo de nenhum momento em que isso esteve condicionado especificamente a um governo. O que já ocorreu foram reorientações da política externa norte-americana e isso ter afetado diretamente as relações com o Brasil. Por exemplo, quando Jimmy Carter ganhou as eleições e pôs os direitos humanos como elemento central da agenda de política externa, o regime militar brasileiro se afastou de maneira significativa dos EUA. 

Joe Biden ao lado da vice Kamala Harris. Imagem: Twitter/Joe BidenJoe Biden ao lado da vice Kamala Harris. Imagem: Twitter/Joe Biden

O que espero, portanto, é que minimamente os Estados Unidos tenham interesse em manter o Brasil no eixo estratégico, e então fundamentalmente a política norte-americana seria de contenção da China. Vale lembrar que ela é um grande parceiro comercial brasileiro, mas o fator mais crucial, do ponto de vista do desenvolvimento econômico brasileiro, são os investimentos externos diretos da China. E essa é uma área em que os Estados Unidos têm uma longa tradição e são uma importante fonte de investimentos do tipo para o Brasil. Além disso, o mercado norte-americano importa mais manufaturas brasileiras, é um comércio com um grau de complexidade industrial um pouco mais interessante do que com a China, que é uma pauta mais primária.

Então, nesse tabuleiro mais relevante, que são as relações Estados Unidos-China, não me parece que é razoável para a administração Biden “perder” o  alinhamento preferencial do Brasil, bastante favorável aos EUA. 

Mas, sem dúvida, as ações do presidente da República do Brasil lançam dúvidas. A política externa é feita por países soberanos, não tem nenhuma autoridade central mundial que regule as relações entre eles. Nesse cenário, a confiança mútua é uma norma não escrita, não institucional, fundamental nas relações entre os países. Então a demora [de Bolsonaro] em reconhecer [a vitória de Biden] ou, pior, a recusa em reconhecer, é um sinal de desconfiança, deteriora em algum nível as relações. Mas ainda acho que não vale a pena para os EUA grandes ações drásticas e perder esse alinhamento — diga-se de passagem, já há algum tempo não era norma da política externa brasileira esse tipo de alinhamento em que o Brasil importa a agenda norte-americana e os interesses deles passam a ter prioridade na agenda da política externa brasileira. É bem mais recente, e certamente de elevado interesse para os Estados Unidos.

Na sua visão, a mudança de governo que ocorreu nos EUA em 2020 poderia ter efeitos nas eleições de 2022 no Brasil, influenciando mudanças políticas por aqui? Que expectativas podemos — ou não podemos — ter em relação a isso?

Do ponto de vista eleitoral, é possível imaginar certa influência. Na virada do fim da Guerra Fria para os anos 1990, por exemplo, há uma onda de governos liberais, nos Estados Unidos, Reino Unido. Vários países vão paulatinamente tornando-se liberais nesse período. E o pêndulo girou para o outro lado nos anos 2000, na chamada onda rosa, em que governos de centro-esquerda, sucessivamente em diversos países da nossa região, passaram a ganhar as eleições nacionais. E parece ter tido agora um movimento contrário do pêndulo, com algumas exceções, como Bolívia e Argentina, mas diversos países voltaram para a direita, como Chile, Brasil, Colômbia, etc. Esses tipos de movimentos ocorrem, e os Estados Unidos podem ser fonte de inspiração contra o crescimento da direita. 

Quando a principal potência do planeta muda o discurso, e passa a defender outras ideias, isso tem uma difusão nos outros países, e fundamentalmente dá a percepção para os demais atores domésticos. Por exemplo, no caso do Brasil, para as forças armadas, [a percepção] de que os Estados Unidos, que são uma referência muito importante na região, tem uma orientação mais progressista. Não haverá possibilidade de conflitos, ou divergências, então isso tem um efeito de influência.

Jair Bolsonaro cumprimenta o Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Robert O’Brien, em Brasília. Outubro de 2020. Foto: Marcos Corrêa/PR via Fotos Públicas

Jair Bolsonaro cumprimenta o Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Robert O’Brien, em Brasília. Outubro de 2020. Foto: Marcos Corrêa/PR via Fotos Públicas

Agora, prever um impacto em pontos percentuais de votos é bastante difícil. Mas do ponto de vista da gestão de Bolsonaro, é uma péssima notícia, e é uma excelente influência contrária. Acho que, inclusive, fortalece a possibilidade de formar uma coalizão contra o presidente, um pouco mais ampla do ponto de vista ideológico, e isso pode ter na eleição norte-americana um espelho. Se Biden volta para a agenda de redução de mudanças climáticas, ou retoma uma agenda de combate à pandemia com outra perspectiva, ao Brasil, que sempre teve nos Estados Unidos uma parceria fundamental, é importante alinhar a agenda em busca dos investimentos. 

Quem tem capacidade no âmbito doméstico brasileiro de defender essas ideias [ambientalistas] é certamente a oposição. Pode ter um efeito certamente danoso à reeleição do Bolsonaro, mas ainda assim muitos aspectos conjunturais do Brasil especificamente podem ter um papel crucial e contrabalancear o que seria essa influência externa ou sistêmica. 

A China é um dos grandes parceiros econômicos do Brasil, mas a relação vinha sofrendo influência dos posicionamentos do governo Donald Trump nos últimos anos. Depois desse ano conturbado, dos conflitos entre políticos brasileiros e a embaixada chinesa, e da saída de Trump, como as relações Brasil-China podem ser afetadas?

Não interessa aos Estados Unidos perder a aliança brasileira nessa contenção chinesa, que entre outras dimensões tem a tecnologia como um aspecto central. E portanto é esperado que a administração Bolsonaro recue, como já fez em outras ocasiões, mude o discurso e retome a relação com os Estados Unidos. Assim permaneceria esse afastamento mais frio com a China. 

Não sei se continuariam as mensagens absurdas, como as que o deputado Eduardo Bolsonaro escreve [nas redes sociais], como ministros fizeram. Isso realmente é um padrão de comportamento dessa gestão, soltar mensagens bombásticas, controversas, muitas vezes desrespeitosas, de um tom absolutamente absurdo no meio diplomático, como estratégia de desviar atenção ou de inflar a ala ideológica. 

Política externa está muito concentrada nas mãos da Presidência da República, há muito em diplomacia que a Presidência pode fazer sem interferência do Congresso e do Judiciário. É um terreno em que ela tem um trânsito mais livre (o que não significa plena liberdade). É um campo que, por um lado, pode se esperar que desenvolva mais a ideologia desse governo — eles de fato usam muito a política externa nesse sentido.  Eu acredito que em relação a China, mantém-se esse discurso e esse afastamento que é muito diplomático. A China, por outro lado, tende a uma política externa extremamente pragmática. Então, não imagino que eles desistam, por exemplo, de competir no mercado brasileiro, mas certamente é uma fortíssima quebra de confiança, um retrocesso, e acho que isso vai continuar mesmo com essa mudança [no governo dos EUA].

 Xi Jinping e Bolsonaro em Pequim. Outubro de 2019. Foto: Isac Nóbrega/PR 4

 Xi Jinping e Bolsonaro em Pequim. Outubro de 2019. Foto: Isac Nóbrega/PR via Fotos Públicas

Não tenho tanta clareza se o impacto econômico dessa diplomacia desastrosa com a China vai ser nitidamente negativo, ou até imediatamente negativo. Em alguns momentos a embaixada chinesa, que não costuma fazer isso, elevou o tom. É possível que haja desvio de investimento, que haja algum tipo de boicote, mas o mercado brasileiro — do ponto de vista pragmático e do 5G, que é uma pauta bastante vigente e com potencial de impacto significativo na competitividade do país — interessa à China, e ela já está nesse mercado. Então não acredito que vão simplesmente desistir disso. Também aposto, nesse sentido, no pragmatismo chinês, mas na continuidade desses devaneios diplomáticos do Brasil. Há alguns temas que são muito sensíveis para a China, por exemplo, as questões de Hong Kong ou uma aproximação maior com a Índia, e se o Brasil começar a entrar nessa seara, de fato podem ter um impacto mais significativo.

A forma como o Brasil lidou com a pandemia do coronavírus pode trazer consequências nas relações que mantemos com outros países e como somos vistos no exterior, em 2021? De que forma você analisa isso? 

O primeiro impacto fundamental é o econômico, e quanto mais tardar para imunizar a população e retomar de maneira segura a plena atividade econômica, pior será a expectativa do mercado sobre o Brasil, e inclusive de outras nações que visem fazer alguma parceria estratégica, ou a manutenção de algumas parcerias. 

Do ponto de vista da imagem subjetiva, também prejudica. Mas, quando você tem um Estados Unidos com todo o holofote central e o Brasil basicamente imitando, tenho a sensação de que o Brasil é mais importante para gente do que para o mundo. É bastante evidente, mas repercutiu muito mal, você vê na mídia. Mas os Estados Unidos, muitas vezes mais. Como a gente mede percepção internacional? Um dos mecanismos é usar a mídia internacional, ler ou fazer análise de sentimento dos textos, e sem dúvidas há uma crescente negatividade em relação a palavras associadas ao Brasil. Isso seria um indicador. 

De outro lado há o impacto econômico em setores específicos, que tem a ver também com a imagem brasileira, por exemplo o turismo. É esperado que do ponto de vista da recepção de turistas estrangeiros essa imagem tenha um impacto econômico significativo. Outro possível problema é a utilização de barreiras fitossanitárias; é possível que países utilizem desse péssimo controle pandêmico, caso, por exemplo, uma parte dos países já esteja imunizada e o Brasil não, para levantar essas barreiras alegando que aqueles produtos podem ter coronavírus — como a China detectou na carne recentemente.

Se o Brasil se mantiver minimamente próximo dos prazos razoáveis de imunização dos outros países, acredito que isso possa ser amenizado e contornado. O problema é a vontade do governo em fazê-lo, então isso é o nosso gargalo. Além das óbvias consequências sanitárias e de saúde pública, em uma magnitude que pelo menos nos últimos tempos não vivemos nada parecido, também vai ter reflexos na economia. Quanto antes você conseguir controlar, principalmente imunizando a população, melhor vai ser a recuperação da atividade econômica e melhor para a imagem, que tem reflexo em aspectos econômicos, como turismo, exportação, e até mesmo investimentos. O mercado responde negativamente a isso. Se começar a ver que as compras não estão acontecendo no Brasil, o capital vai migrar.

Abril de 2020, Vila Mariana, São Paulo. Projeção em prédio denuncia Bolsonaro durante seu pronunciamento, ao lado de panelaços. Foto: Guilherme Gandofi/Fotos Públicas

Abril de 2020, Vila Mariana, São Paulo. Projeção em prédio denuncia Bolsonaro durante seu pronunciamento, ao lado de panelaços. Foto: Guilherme Gandofi/Fotos Públicas

Ainda sobre a pandemia, o descaso brasileiro, principalmente diante das posições da OMS, em que se contradizia ou minimizava recomendações: de que forma o Brasil pode sofrer punições, dentro dessas organizações?

Dentro da OMS não há grandes sanções que o Brasil possa sofrer. Podem ter resoluções contrárias em Assembleias Gerais da ONU, mas alguma ação no Conselho de Segurança da ONU acho praticamente impossível. E qualquer coisa fora das instituições internacionais também acho pouco provável, sanções ou mesmo manifestações.

Apesar de o vírus não respeitar fronteiras, é um assunto eminentemente doméstico, e o princípio da soberania, resguardado pela própria Organização das Nações Unidas, na minha interpretação, não possibilita nada nesse sentido. É uma política de saúde pública, não posso criar uma sanção econômica contra os Estados Unidos porque ele não tem um sistema público de saúde, por exemplo. Pode ter fechamento de fronteiras, proibição de entrada; o Brasil se mantendo um centro reprodutor de Covid, os outros países vão querer se proteger. 

[O que pode ocorrer são] afirmações contrárias, como por exemplo na Comissão de Direitos Humanos da ONU. Que pode ser elemento para a oposição minar o governo, mas também é um governo que já taxa as instituições internacionais como globalistas. Então, às vezes, é até combustível para ele, casa com toda essa ideia de símbolo nacional etc. Mas não acredito em uma punição formal, pelas instituições internacionais. Certamente proibição de entrada ou restrição, em algum extremo fechar novamente as fronteiras, isso pode ser.

Por último, São Paulo tomou frente na corrida pela vacinação brasileira, fechando parceria com laboratório chinês, enquanto o direcionamento do governo federal era outro. Essa “fragmentação” da relação do Brasil com o exterior pode ser prejudicial para as relações do país lá fora?

Não acredito que haja “fragmentação”. Ela é bem específica no caso da vacina. Vale lembrar que os entes federados no Brasil não têm autoridade para fazer política externa. Vamos pensar em um paralelo: o governo do estado de São Paulo quer construir metrôs, e faz consórcio com empresas estrangeiras, contrata o serviço, dentro das regras de licitar, de fazer os leilões, está previsto, isso não tem problema algum. E tem o decreto de março que dá agilidade, caminhos e atalhos que podem ser tomados, aos estados. Eu não generalizaria [a vacina] para a política externa, da mesma forma que quando se fala de metrô não generaliza. Se a China quiser fazer um acordo com o estado de São Paulo não pode, não é simples assim. Agora, se uma empresa chinesa quer prestar um serviço, vender um produto, isso não tem problema algum, acho que são coisas diferentes. É muito circunstancial.