Pesquisas, Humanidades e Projetos Políticos

O CNPq mudou as regras de distribuição de verbas para pós-graduação. A professora Roseli Fígaro comenta sobre sua visão acerca das consequências e implicações da nova política

 

por Letícia Cangane

Arte: Letícia Cangane/Foto: Jornal do Campus

 

Recentemente, foram divulgadas mudanças na política de concessão de bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Essa ação não é a primeira envolvendo a área de pesquisa acadêmica no país, visto toda a mobilização pública que aconteceu em 2019 após o anúncio de cortes nas verbas para o setor, o qual acabou recuando após a repercussão negativa. O JC conversou com Roseli Fígaro, coordenadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo, sobre o cenário da pós-graduação no Brasil, em especial das ciências humanas, e os impactos da nova política sobre ele. 

Você trabalha no setor de pesquisa acadêmica em comunicação da USP. Qual o cenário atual da área?

Na Comunicação, especificamente, nós temos um cenário muito promissor. Temos três programas na área de Comunicação e Informação da ECA-USP, e eles são programas que, embora tenham a nota quatro na avaliação da CAPES, são tradicionais, muito sólidos, e com uma contribuição muito relevante nesses quase cinquenta anos de pós-graduação no Brasil. São desenvolvidas pesquisas de ponta, que abarcam temáticas diferentes, amplas, e com um leque bastante relevante atende às necessidades do cenário de pesquisa nesse âmbito da comunicação. Em termos de impacto social, econômico, cultural, sem dúvida nenhuma eu acho que nós temos dado contribuições efetivas na formação de novos quadros de professores e pesquisadores para o Brasil, e de profissionais na área da comunicação e da informação, incluindo temas relevantes desta nova cultura do digital e das redes. 

De que forma está ocorrendo o funcionamento das pesquisas neste ano?

Mesmo no período da covid-19, nesse ano muito sofrido de 2020, nós não paramos de trabalhar. A pós-graduação continuou funcionando, mantivemos cursos, disciplinas, defesas de dissertações e teses, processos seletivos — recentemente saiu a lista dos aprovados para a segunda fase do processo. Nós temos feito um esforço muito grande no sentido de manter nossas atividades apesar disso. Inclusive, apesar do corte de verbas no âmbito do CNPq e da CAPES. 

Como a área das pesquisas em humanidades vem sendo tratada nos últimos anos?

É preciso dizer que no cenário nacional, com a crise econômica e sobretudo com as mudanças de orientação das políticas públicas no Ministério da Educação, a área das humanidades, ciências sociais aplicadas, ciências humanas e artes, são áreas que têm sido renegadas a um segundo plano em termos de prioridades de pesquisa dos órgãos federais. Então, todas as pesquisas que estão nessa área, vez ou outra, nesses dois anos de 2019 e 2020, têm sofrido algum tipo de restrição no que diz respeito às verbas para concessão de bolsas, para incentivo de pesquisas, para organização de eventos e tudo mais. 

Essa visão política afetou de que forma o trabalho de pesquisa das humanidades?

Podemos dizer que o processo em 2019 foi bastante ímpar com relação ao CNPq e à Capes, que, enquanto instituições muito importantes de fomento à pesquisa no Brasil, têm sido colocadas em situação muito difícil do ponto de vista do orçamento. Capes e CNPq têm tido redução de suas verbas orçamentárias, inclusive de funcionários, e até boatos de que ora vão fechar uma ou outra, ora vão se fundir. São aspectos que prejudicam o trabalho de quem está efetivamente à frente dessas instituições.

Como a USP se encaixa nesse contexto?

A USP é uma das principais universidades de pesquisa da América Latina. A gente sabe da importância dela e também do perigo que significa esses ataques políticos e administrativos, em termos econômicos, de verba, e como essas atitudes prejudicam todas as universidades, em especial a USP. Eu estou falando de políticas mais gerais, num cenário de crise econômica, sanitária, que nós vivemos no Brasil. 

Como essa situação com as instituições de pesquisa reverbera para a sociedade e para as universidades?

É muito grave o que acontece, porque a orientação é de priorizar áreas que não sejam das humanidades, das ciências sociais aplicadas. A redução de verba se dá em termos de redução de bolsas de mestrado, doutorado, iniciação científica, e com mudanças de critérios na concessão dessas bolsas. A Capes, no ano passado, soltou resultados de cortes de bolsas, e depois, por meio de uma grande mobilização da opinião pública, voltou atrás, não cortou tanto em termos de bolsas e de orçamento. Para 2021, nós ainda não temos orçamento definido para a Capes, então a gente ainda não sabe o que vai acontecer, ou mesmo com o CNPq.

Recentemente, houve uma mudança relacionada à concessão de bolsas das instituições de fomento. Quais os principais pontos que foram alterados e como isso impactou a pesquisa na ECA?

Saímos de uma política tradicional, de cotas por programas de pós-graduação, para uma política de editais. O que sabemos é que as bolsas que estão vigentes em 2020 permanecerão até o final do contrato de cada pesquisador que ocupa essa bolsa, e depois elas serão substituídas pela nova política de editais. Esses editais mudam profundamente as regras, passando a determinar que cada programa concorra com outros, não só da sua área, mas entre todos os programas. A disputa pela verba acontecerá considerando as principais áreas de pesquisa determinadas pelo CNPq. As áreas de interesse que estão ali listadas são vinculadas à produção de tecnologia, ou em torno dessas áreas todas que envolvem emprego direto de tecnologia. 

Considerando o novo cenário de concessões de bolsas, como fica a pesquisa nas áreas das ciências humanas?

As áreas das humanidades e das ciências sociais aplicadas ficam desprestigiadas frente a esses critérios de relevância, de prioridades. Como áreas que fazem uma intermediação, não são áreas prioritárias e ficam à mercê de como cada uma delas consegue vincular-se de forma criativa aos itens prioritários estabelecidos pelo edital de distribuição das bolsas. Foi o que aconteceu no edital do segundo semestre, em que tais áreas de fato ficaram muito prejudicadas em termos de bolsas. Nós perdemos muitas bolsas: antes, tínhamos onze bolsas de mestrado e sete de doutorado, e praticamente zeramos esse número — eles nos deram uma bolsa de mestrado, e fizemos um recurso para ver se teremos alguma de doutorado. Isso é muito grave frente à redução de verbas para bolsas Capes e essa nova política implantada pelo CNPq que tem como objetivo reduzir as bolsas. A gente chegou a conclusão, junto a entidades de pesquisa, que essa é uma política clara de corte de subsídios para pesquisas na área de pós-graduação no Brasil.

Esse projeto vem recebendo bastante críticas da comunidade de pesquisa, acadêmica, mas também da sociedade como um todo. Você acha que, nesse sentido, esse é um projeto que vem para ficar, ou essas reações vão interferir nisso?

Minha opinião é que a gente tem que fazer uma análise contextualizada do que está acontecendo. Nós podemos achar que as direções do CNPq e da Capes, por meio do Ministério da Educação, está tomando atitudes equivocadas, querendo fazer uma economia onde não é possível. Mas eu não acho isso. Eu não acho que é uma atitude equivocada de quem não conhece o métier da educação, como muitos dizem. Eu acho que a questão é muito mais ampla, é um projeto político mesmo. É um projeto político que coloca o Brasil num determinado lugar da geopolítica, num lugar em que ele continuará sendo, no século 21, um país de produção de commodities

Num momento em que a ciência e a tecnologia ganham tal destaque, nós deveríamos ter um brutal investimento na educação, na formação de todos os quadros necessários, em todas as áreas, para qualificar o nosso povo para enfrentar as mudanças profundas que vêm por aí. Nós falamos tanto em formar com qualidade, a Capes continua indicando isso, mas do que estamos falando quando enfrentamos uma política de redução de verbas que vai incidir exatamente nessa qualidade? E mais, vai incidir no enfraquecimento das instituições de pesquisa e de ensino, o que tem relevância para o futuro. Que futuro nós estamos querendo para o Brasil? Eu vejo um cenário em que lutar pela ciência e pela educação é uma atitude política da mais alta relevância. É necessário o engajamento, principalmente das novas gerações, em defesa de uma política voltada para a defesa dos nossos interesses.