Preto de alma branca: o que faz Sérgio Camargo no comando da Fundação Palmares?

Responsável por promover e preservar o patrimônio negro cultural, social, histórico e econômico no Brasil, Fundação tem líder contrário a muitas das pautas raciais

 

por Marina Reis

 Arte: Marina Reis/Foto: Instagram/Reprodução

 

Uma das características marcantes do governo Bolsonaro parece ser a escolha de representantes do governo aversos àquilo que seus cargos têm por responsabilidade defender: nosso ministro do meio ambiente quer “passar a boiada” na Amazônia, a ministra da mulher, família e direitos humanos advoca apenas pelas pessoas que pensam como ela e o presidente da Fundação Palmares é contra o movimento negro. O objetivo parece ser mesmo deixar o Brasil às avessas.

A Fundação Cultural Palmares foi fundada em 1988 pelo Governo Federal. O objetivo era preservar e promover o patrimônio cultural, social, histórico e econômico decorrente da participação do negro na sociedade brasileira. O nome veio em homenagem ao maior quilombo de nossa história, símbolo da luta pela liberdade e direitos civis para negros no Brasil.

Indicado no fim de 2018, Sérgio Camargo assumiu a presidência da Fundação em 2019, em meio a manifestações contrárias de artistas, intelectuais, ativistas e integrantes da população negra em geral por conta de suas afirmações polêmicas. 

Autodefinido como um “negro de direita, antivitimista, inimigo do politicamente correto”, Sérgio é filho de Oswaldo de Camargo, escritor, poeta e intelectual muito envolvido na luta negra. Mas, ao contrário do pai, não apoia o movimento negro brasileiro. Para ele, os ativistas no movimento são uma “escória maldita”, o racismo estrutural não existe e, seguindo o código de conduta dos políticos direitistas, chegou a anunciar no Twitter que a Fundação Palmares não daria apoio qualquer à Consciência Negra.

Twitter/Reprodução

 

Muito pelo contrário: Camargo não só impediu que a Palmares apoiasse a Consciência Negra como fez questão de deixar uma impressão, ou talvez apagar seja o termo correto, ao cortar 27 nomes de personalidades negras da lista de homenagens do dia em memória  da resistência negra em nosso país. Entre os nomes cortados, estão a deputada federal Benedita da Silva, primeira senadora negra do Brasil, e o cantor Gilberto Gil.

Na somatória, o corte dos nomes não é nem de longe o mais alarmante. O que mais me assusta é que o homem no comando de uma das instâncias mais importantes para a população preta no Brasil não vê relevância e é contra a nossa reivindicação por direitos humanos e mostra um preconceito tremendo em relação a alguns dos símbolos mais marcantes da nossa cultura.

O que acontece quando Palmares não apoia as populações quilombolas remanescentes? O que acontece quando o representante da fundação é preconceituoso com as religiões de matrizes africanas? O que acontece quando quem deveria zelar por nosso patrimônio histórico e cultural vira as costas para tudo o que ele significa?

O fato é que Camargo não foi uma escolha feita pela negritude brasileira como conjunto, mas de Bolsonaro, junto de um grupo majoritariamente branco de governantes. Recentemente, ele disse que  João Alberto Silveira Freitas, espancado até a morte por guardas de uma filial do Carrefour no último dia 19 de novembro, véspera da Consciência Negra, é um marginal que “não representa os pretos honrados do Brasil”.

Protesto antirracista, em defesa da vida e história do povo negro no Brasil em frente a uma filial da rede Carrefour em Brasília. Foto: Arquivo/Sindicato dos Bancários de Brasília

 

Eu, mulher negra, mesmo não retinta, descobri o que a minha negritude significava através do racismo. Depois de sofrer com a discriminação, entendi que ser preta era muito mais que isso: é carregar um legado de um povo que luta, uma história de reis e rainhas que tiveram suas identidades confiscadas, é responder retomando o poder sobre a minha própria identidade e sobre o meu próprio corpo e apoiando aos meus.

Me assusta que Sérgio Camargo, um negro retinto e filho de um grande ativista, alguém que enfrenta todos os dias essa estrutura que é violenta para os que não são brancos, defenda  a estrutura e aqueles que a reforçam, como o atual presidente Jair Bolsonaro e seus filhos, de quem ele parece ser tão amigo. O perfeito preto de alma branca, companheiro e defensor dos racistas.

Eu, que cresci achando que tinha algo de errado comigo antes de entender o que a minha negritude significava nos ambientes quase que impecavelmente brancos que eu frequentava, me pergunto se o trauma o atinge e se ele vive desde sempre na síndrome do impostor.

Mas o mundo continua girando. Uma hora ou outra cai Bolsonaro e Camargo junto com ele. Então, esse episódio não passará de uma lembrança e uma lista de falhas a serem corrigidas no Brasil e vai ser Sérgio Camargo quem terá de lidar sozinho com a sua luta anti-antirracista.