A bênção mãe?

 

por Rafael Sampaio

Arte: Rafael Sampaio/Fotomontagem com imagens de Rafael Sampaio e Jahan Ger/Unsplash

 

– A bênção mãe!
– Deus te abençõe, minha filha.

Beijava a mãe ainda dormindo; saía para o trabalho.

Todos dormiam no mesmo quarto. Duas Marias. Filha e mãe. Casa pequena; por terminar. Laje pronta há pouco. A mãe juntava parte da aposentadoria para erguer o quarto dos netos. Três meninos, filhos de Maria. Trabalho longe.

De tarde, passava no mercadinho. “Dez pãezinhos, por favor.” Dois pra cada um. Todo dia, a mesa pronta. Café fresquinho. Beijava a mãe sentada no quintal.

– A bênção mãe!
– Deus te abençõe, minha filha.

Entravam, as duas Marias. Os meninos comiam no sofá, vendo televisão. Mãe e filha, na mesa. Por vezes, não falavam. Maria pegava na mão de Maria. Acariciava com os dedos as manchas rochas da pele frágil porque velha da mãe. Deveria ir ao médico ver isso, só bater fica roxo. “Coisa de velho”, retrucava a velha.

Chegando em casa, um dia, sentiu falta do café. A mãe deitadinha na cama. Dor de cabeça, minha filha. Gripe. Esqueceu de tomar a vacina; bem feito pra ela. Sopa de mandioquinha. Comeu bem pouco. Não sentia o gosto. Náuseas. A filha dormiu mal, levantava toda hora. Punha o rosto no rosto da mãe. Maria tinha febre. 

– A bênção mãe!
– Deus te abençõe, minha filha.

Voz fraquinha. Antes de sair, foi até a cama do primogênito. Levar a vó ao postinho. “Gripe forte”, disseram. Tivesse tomado a vacina. Deram um remédio pra febre. Estava um pouco melhor. Fez o café fraquinho. Do jeito que a filha gosta. Maria abriu o portão, o cheiro a deixou feliz.

A noite, tudo piorou. Maria fervia, suando. Hospital, não precisava. “Por uma gripe?” A filha insistiu. Maria tremendo esbravejava. “Perda de tempo!” Melhor tivesse ficado em casa. A filha iria trabalhar com sono, no dia seguinte. Muita gente no hospital. “Gripe forte”, disseram. Princípio de pneumonia. Tivesse tomado a vacina. Outro remédio para febre. “Te falei, minha filha. Se me ouvisse.”

– A bênção mãe!
– Deus te abençõe, minha filha.

A voz da mãe pela última vez. 

Parecia melhor. Maria quiz acreditar. Tanto sono. Perto do meio-dia, o mais novo ligou. A vó fazia um barulho estranho. Deixasse falar com ela. Maria não podia. Puxava o ar; não vinha. O peito subindo e descendo. Toda força de Maria no tórax. As duas mãozinhas enrugadas, uma sobre a outra, no peito. Maria sem ar. Hospital. O vizinho tem carro. Corre! 

Carro, cadeira de rodas, maca e UTI. Saturação baixa. Precisa entubar. Sedação. Tira um raio-x. Quase 80% dos pulmões comprometidos. Põe no respirador. Quarenta dias. 

Morreu.

Maria trabalhava. Ligaram do hospital. Disseram ser urgente a presença de um responsável para liberar o corpo. Maria avisou o irmão. Guardou o celular no avental. Lavou as mãos. Faltava pouco para o almoço, logo o restaurante estaria cheio. Terminou de encher as cubas do buffet. Quarta-feira. Feijoada, arroz, banana frita. “Faz mais arroz, Maria”. Restaurante vazio. O patrão passou do lado. “Preciso sair mais cedo, minha mãe morreu.”

Da cama para os sacos. Impermeáveis, a prova de vazamentos. Etiqueta colada no frio peito nu. Enfia o corpo no saco. Etiqueta colada no saco. Enfia no outro saco. Colada a terceira etiqueta: Maria do Rosário Silva – Risco biológico.

Do saco para o caixão. Embrulha o corpo ensacado em papelão. O pacote dentro do caixão. Caixão lacrado. 

Disseram, só dez pessoas no cemitério. Regras. Aguardavam. Era de tarde. Maria lembrou do café. Nunca mais o café da mãe. Maria chorou, pela primeira vez. O carro fúnebre trouxe o corpo. Disseram, não pode velório. Mostraram a certidão de óbito: suspeita de covid-19.

Do carro para a cova. Tantas covas abertas. O carro parou em uma. Uma qualquer. O caixão fora do carro. Tentava, Maria, ver através das tábuas. Tocou a madeira querendo tocar a mãe. Quarenta dias. A mãe sozinha no hospital. Tinha frio, quem cobria? Tivesse fome, quem faria seu mingau de fubá? 

O caixão descia. No fundo, as pás jogando terra. Maria olhava sem ver. Lembrou da última vez, o beijo na mãe antes de sair para o trabalho. As últimas palavras ditas… 

Quais palavras?

Na bolsa pegou um papel e uma caneta. Escreveu de qualquer jeito. A terra chovendo no caixão. Buscou uma pedra. Embrulhou-a no papel. A cova quase cheia. A pedra lançada. Caixão e bilhete escondidos pela terra.

Maria lembrou das palavras. As primeiras, ditas ao chegar em casa. As últimas, faladas quando se despedia da mãe. A despedida derradeira escrita no papel. O bilhete de despedida errante.

– A bênção mãe?