Freud e Lacan explicam…

Mais de um século depois do surgimento da psicanálise, comemoramos não só seu fundador como também um de seus grandes intérpretes. Mas por quê?

 

por Bruno Militão, Luana Franzão e Maria Luísa Bassan

Arte: Luana Franzão/Fotos: Giancarlo Botti, Max Halberstadt, ECA USP, Casa do Saber e Arquivo pessoal

 

O ano de 2021 reúne datas importantes para os principais nomes da psicanálise. Neste ano, o pai da ciência psicanalítica, Sigmund Freud, completaria 165 anos, e seu herdeiro intelectual, que promove um retorno às suas ideias – afastando-se de algumas teorias pós-freudianas –, o francês Jacques Lacan completaria 120 anos. 

Não apenas uma ciência, como pretendia seu criador, mas também um método clínico, uma escola de pensamento e, hoje, uma forma de pensar, ler e ver cultura e sociedade. 

O JC aproveitou essa efeméride para conversar com alguns especialistas e estudiosos de psicanálise, pertencentes a áreas diversas do conhecimento, a fim de mostrar o alcance desse pensamento, como chegou à nossa Universidade e como se faz presente não só nas formas de interpretação e crítica da cultura, mas nas próprias produções culturais.

Por que a psicanálise?

Criada pelo austríaco Sigmund Freud como um método de psicoterapia – ou tratamento pela fala “pautado na exploração do inconsciente, com ajuda da associação livre por parte do paciente, e da interpretação, por parte do psicanalista” (Dicionário de Psicanálise, organizado por Elisabeth Roudinesco e Michel Plon), a psicanálise constitui também uma escola de pensamento. 

Segundo Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia (IP) da USP, Freud pretendia que a psicanálise fosse uma ciência laica, universalista, de aspiração demonstrativa e com grande confiança no método. Apesar disso, o método sofreu diversas críticas ao longo de seus mais de cem anos de existência, justamente por conta de seu estatuto de cientificidade. 

“Grandes pensadores, como o filósofo Ludwig Wittgeinstein, criticaram a psicanálise, porém isso coloca uma questão: como uma teoria tantas vezes chacinada, expulsa da ciência, volta, resiste, reapresenta-se e se transforma nesse processo?”, aponta Dunker. 

Um dos motivos para explicar essa resistência diz respeito à própria particularidade desse método de terapia. “Com a crise global na saúde mental e do seu modelo, baseado na hipótese de que ‘tudo são problemas cerebrais’, não há muito o que dizer, porque dentro desse modelo o que se faz é atacar o sintoma e destruí-lo”, explica o professor. A psicanálise, ao contrário desse modelo, dá um passo para trás e pensa no estado anterior ao do sintoma. 

Além do próprio método terapêutico, o alcance desse pensamento deve-se também à preocupação, desde Freud e os primeiros psicanalistas, em ler, interpretar e intervir em debates sobre sociedade e cultura. 

Christian Dunker apresenta uma tríade de textos de Freud que se encaixam nesse aspecto. São eles Futuro de uma ilusão, sobre religião; Psicologia das massas e análise do Eu, no qual Freud trata de grupos e instituições; e Mal estar na civilização, no qual ele fala sobre o desconforto causado pelos processos civilizacional e cultural enquanto processos repressivos. 

Confira o depoimento, em áudio, do prof. Christian Dunker sobre sua aproximação com a psicanálise e os estudos no IPUSP

Chegada a outros campos

Comunicação e psicanálise

Os estudos de psicanálise e de conceitos psicanalíticos, embarcando na preocupação em participar de debates sociais, se estendem também para além da própria psicologia, chegando às ciências humanas, às ciências sociais aplicadas e até às artes. 

No que diz respeito aos estudos de psicanálise dentro da área da Comunicação, Mayra Rodrigues Gomes, professora titular aposentada da ECA, esclarece que a própria psicanálise, desde seu começo, em uma vertente com base no pensamento freudiano, se instala no universo da Comunicação, na medida em que faz dela e das linguagens o seu objeto central de observação.

“A psicanálise não existe sem linguagem. É um tipo de pensamento que se baseia não só em considerações sobre o papel da linguagem na constituição do sujeito, como também na terapia, a qual é baseada na escuta. Ou seja, são teorias que têm como base uma relação com linguagem, e fazem dos modos de comunicação o objeto de seu estudo”, aponta ela. 

Um exemplo básico explicitado pela professora é a obra A interpretação dos sonhos, de Freud, publicada originalmente em 1899. Segundo ela, trata-se de uma proposta para analisar os relatos do analisando, a narração dos fatos acontecidos ou por ele experimentados. “O analista tem de prestar atenção nesses fatos, e pensar nesses sonhos relatados como símbolos de uma determinada situação, sempre como signos de um certo ponto de conflito.”

A profª Mayra comenta, em áudio, um pouco sobre o histórico dos estudos de comunicação e psicanálise
Arte: Luana Franzão/Foto: Max Halberstadt

Para Rosana de Lima Soares, professora associada do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA, a comunicação é pensada a partir da psicanálise como uma forma de problematizar visões mecanicistas ou funcionalistas que se têm não só em relação aos processos comunicacionais mas aos próprios meios de comunicação, especialmente em relação aos seus públicos. 

Segundo a docente, o sujeito que fala nos discursos não é sempre um sujeito racional, dono de sua vontade, mas também não é sempre dominado ou assujeitado. Esse sujeito é interpelado pelo campo do discurso, ao qual ele reage e do qual também é produtor. 

“Essa é uma questão importante quando a gente coloca o sujeito em relação ao conceito de inconsciente que Freud e Lacan desenvolvem; a relação do humano com a linguagem se transforma. A linguagem não é apenas uma ferramenta que pode produzir conteúdos, mas ela é o nosso próprio modo de ser e de estar no mundo”, explica. 

Em vez de se voltar para buscas de respostas, a psicanálise seria uma teoria de indagações. “É claro que ela é mais voltada para a clínica do sujeito, mas quando pensamos na psicanálise em perspectiva social, é ela quem interpela o campo mais amplo da cultura e das produções culturais.” Nesse viés, é uma teoria que lança um olhar crítico sobre a sociedade, ao problematizar relações que são consideradas naturalizadas ou estabilizadas.

A profª Rosana também conta sua aproximação com os estudos psicanalíticos, quando da sua chegada à ECA-USP

Literatura e psicanálise

No campo das artes, a relação com psicanálise é intrínseca e de mão dupla: a arte, assim como esse campo de estudo, muitas vezes busca expressar os sentimentos mais profundos e abstratos, enquanto a psicanálise pode se aproveitar das imagens e arquétipos cimentados no imaginário popular por obras artísticas – alguns exemplos notáveis são a utilização de Édipo, Electra, Narciso (narcisismo) e Madame Bovary (bovarismo).

Adentrando a área da literatura, a relação entre arte e psicanálise depende da palavra. Ambos os campos parecem estar sempre em busca das palavras certas para descrever um sentimento, um momento, exprimir o que se passa no inconsciente.

Em seu artigo Literatura e psicanálise: reflexões, a professora da FFLCH Yudith Rosenbaum descreve a relação: “Tanto a psicanálise como a literatura falam de algo que escapa pelas malhas da linguagem, mas que só nela pode ser flagrada”.

Muitos autores recorrem à literatura para tentar encontrar formas de descrever conceitos e expressões do inconsciente e de abstrações. Sigmund Freud, por exemplo, era conhecido por ser um leitor voraz de clássicos, como Homero, Cervantes, Flaubert, Dostoiévski e Zola, lista Rosenbaum.

Na visão de alguns pesquisadores, Freud inaugurou a busca da compreensão do inconsciente, muitas vezes suprimida na psiquiatria tradicional, mas que já se expressava de formas diversas nas artes.

A visão do próprio psicanalista alemão sobre a arte não era tão amistosa. No artigo, a professora esclarece que Freud considerava a arte como um “véu” criado pelos indivíduos para que pudessem recobrir a realidade, e que este véu deveria ser desfeito pela psicanálise.

Na obra de Lacan, esta relação também é explorada. No universo da linguagem, segundo ele, nada será comunicado de forma completa e estaríamos em uma busca incessante por palavras que descrevam o que sentimos e pensamos. “Nesta cadeia infinita produziremos significações, mas nunca poderemos nos apoderar de coisa alguma, sendo a palavra uma eterna aproximação alusiva e esquiva com a tal Coisa perdida (Das Ding, para os lacanianos)”, reflete Rosenbaum.

Arte: Luana Franzão/Foto: Giancarlo Botti

Os frutos do desenvolvimento da psicanálise para a literatura são colhidos até hoje. A compreensão da subjetividade e alteridade trazidas pelo campo se tornaram elementos essenciais para o desenvolvimento e análise de obras literárias, que ganharam camadas cada vez mais profundas.

A psicanálise hoje

A professora Mayra Rodrigues Gomes retoma uma questão que se tornou comum nas últimas décadas, que é o termo “psicanálise da cultura”. Trata-se de uma série de conceitos vindos da psicanálise aplicado a situações culturais de diversas comunidades, povos e ideologias. 

Ela cita dois autores muito conhecidos que promoviam esse tipo de análise. O primeiro é o psicanalista Contardo Calligaris, morto recentemente, que possuía uma coluna no jornal Folha de São Paulo. “Ele escrevia magnificamente bem, sempre fazendo a ponte entre o que acontecia no mundo e no cotidiano do nosso Brasil de mais relevante, correlacionando esses acontecimentos a conceitos psicanalíticos”, explica Gomes. 

Apesar de não chegar a anunciar os conceitos de psicanálise, os leitores com certo conhecimento do campo conseguiam identificar essas situações. “Em termos de identidade e de representação social, de identidade e construção de subjetividade, era muito claro o aporte psicanalítico que Contardo trazia.”

O segundo autor é o filósofo esloveno Slavoj Zizek, que promove diversas análises de ocorrências sociopolíticas por meio de um instrumental psicanalítico – especialmente lacaniano. 

A professora Rosana de Lima Soares aponta que a psicanálise coloca dúvidas e incertezas em um espaço que sempre nos parece controlável e previsível. Em relação aos processos amplos de comunicação, existem muitas variáveis cujos efeitos nem sempre podemos prever. 

“É interessante pensar também quando olhamos exemplos da vida social e da esfera política. Uma eleição como a que tivemos no Brasil, com resultados bastante trágicos, nos perguntamos: ‘Como chegamos aqui? Como isso foi acontecer?’. Alguma coisa escapou de certa ordem lógica e controlada racionalmente. Aqui, a psicanálise pode contribuir para a compreensão desse fenômeno, em que algo se rompeu no processo.”

Sobre o aumento nas buscas e no interesse pela terapia psicanalítica, para o professor Christian Dunker isso se deve também à mudança do perfil dos terapeutas, que passaram a se identificar menos com a prática “das elites para as elites”. “Hoje temos movimentos de psicanálise em espaços abertos, como o Psicanálise na Praça Roosevelt. Movimentos como esse tomaram o Brasil, e chegamos a encontrar clínicas em praças públicas, onde se tem pessoas escutando o sofrimento de outros.”

Mesmo não sendo o tratamento padrão em consultório, a variedade das práticas indica para o aumento e mutação nas conversas. Há ainda a presença de psicanalistas em hospitais gerais e psiquiátricos, nas varas de famílias, escolas, empresas e corporações. “Usam a escuta e os conceitos talvez de uma forma mais humilde e mais dialogada, negociada com as realidades próprias de onde se está e onde se clinica”, completa ele.

“Freud mostrou que a mente é um produtor de poesia. Ele naturalizou a poesia. Freud descobriu na própria organização da mente os mecanismos através dos quais a arte provoca os seus efeitos, expedientes tais como a condensação e o deslocamento, associadas depois por Lacan à metáfora e à metonímia”, conclui Yudith Rosenbaum.

A professora Rosana Soares completa trazendo à tona a reflexão da nossa própria constituição por meio de um campo simbólico. “Mais do que dados concretos e históricos da realidade, a psicanálise diz respeito a esse lugar que nos antecede, nos define, mas que também é transformado pelos grupos sociais.”

A grande contribuição da psicanálise seria, assim, o questionamento da razão como aquilo que determina as ações do sujeito nas ações do dia a dia, em seu trabalho, nas mídias e na produção artística. Ou seja, os sujeitos têm, sim, consciência, mas também são determinados pelo inconsciente – proposto por Freud e depois retomado e desenvolvido por Lacan com o nome de função do inconsciente – o qual é a maior contribuição psicanalítica ao pensamento contemporâneo.