Livre

 

por Suzana Correa-Petropouleas

Foto: Éva Zara/Canva CC

 

O bicho-pombo abre os olhinhos negros. Adormecera acomodado sob o mesmo fio de sempre, entre os dois postes de sempre, olhando as ruas sujas do centro paulistano que eram sua casa e agora amanheciam claras e vazias. Vazias demais. Olha para a direita. Para a esquerda. Ninguém. Irmão-pombo se aproxima. Ele também notou. Observam.

Já é final da manhã quando todos irmãos pombos reúnem-se sob o chão da Praça. Dezenas. Talvez uma centena. Reunião assim só se vira na Grande Chuva de Migalhas, quando um carreto de pães pilotado por um menino-homem magricela tombara na esquina da Quintino Bocaiúva com a Rua Direita. Faziam quase cem invernos em anos-de-homem e bicho-pombo não estava lá mas é uma daquelas histórias que se ouve no ninho e jamais se esquece. Dessa vez, no entanto, nenhuma migalha.

Morreram, morreram aos montes. Extintos declara aos pios irmã-pomba mais viajada e metida a sabida. Vinha de longe, do leste, e lá também as ruas estavam vazias e nem sinal dos bichos-homem que lotavam a Sé àquela altura da manhã, todas manhãs.

Exagera, a companheira. Veja ali um deles. E outro ali, caminhando com seu ninho-papelão e seu bicho-cão.

Mas sozinhos. Parecem abandonados. Como se tivessem ficado para trás, esquecidos pelos seus.

Esquecidos pelos seus, sim. Mas há muito tempo. Desde que a praça é praça e o bicho-homem, homem.

O bicho-pombo ouvia em silêncio as opiniões da família-pombo. Sabia que os bichos-homem matavam de fome seus iguais, mesmo sabendo produzir migalhas de pão suficientes para dar de comer a todos eles. Se ele soubesse fazer migalhas, nunca mais os bichos-pombo disputariam os pequenos e crocantes pedaços de pão. Nunca mais. Ele podia jurar. 

Sol nasce, sol se põe. Ruas esvaziadas. Todos os dias chegam na praça notícias novas de bichos-irmãos sobre o desaparecimento dos bichos humanos. Estão escondidos, ouviu dizer um bicho-grilo que soube da informação em primeira mão de bichos-tartaruga no litoral, longe dali.

O mar estava em festa, ele dizia. Bichos-tartaruga aproximavam-se de baías e portos antes sujos e revoltos. Boiavam sob o silêncio. Em Marselha, muito longe dali, bichos-baleia que antes se escondiam nas profundezas agora apresentavam o mais bonito dos balés sob as águas. Toda sorte de bichos d’água subia à superfície para espiar o que fizera as águas clarearem e o barulho cessar.

Aos poucos, era difícil dizer o que era fantasia ou uma realidade que o bicho-pombo, ali, só podia imaginar. Um bicho-cão percorrera pela terceira vez o trajeto entre a Praça do Relógio e o Largo São Francisco, em busca de notícias sobre os bichos-homem filhotes que antes circulavam alegres por ambos, fazendo-lhe companhia. Voltara com histórias sobre bichos-macaco que agora nadavam em piscinas vazias de prédios na Índia, como sonhavam fazer há anos.  

Seus irmãos domesticados não tiveram tanta sorte, dizia o bicho-cão. Enclausurados com os bichos-homem, não podiam andar sob o sol ou pisar na grama. Bicho-homem teme bicho-vírus, contavam sob latidos e miados emitidos através de janelas gradeadas.

Sem bicho-homem, sem migalhas. Bicho-pombo gostava de migalhas. E aprendera a gostar, à sua maneira, dos bichos humanos — embora suspeitasse que o afeto nunca fora recíproco. Mas também gostava das histórias no ninho sobre um tempo em que a cidade era como um mar azul infinito sem sinal de óleo ou motores.

Bicho-pombo estica as asinhas cinzas. A cidade finalmente seria, como sempre fora de direito, dos seus.