O ser de Alfredo Bosi além do tempo

Membro da Academia Brasileira de Letras desde 2003, o professor foi um dos responsáveis por moldar a base do que é a FFLCH e o Instituto de Estudos Avançados da USP

 

por Anderson Lima e Caio César Pereira

Foto: Marcos Santos/Jornal da USP

 

No último dia 7 de Abril, toda a comunidade brasileira, principalmente a da USP, se despediu de uma de suas mais importantes figuras. Alfredo Bosi, aos 84 anos, foi uma das mais de 400 mil vítimas da covid-19, deixando um imenso legado para a literatura brasileira.

Durante toda sua vida, Alfredo Bosi se empenhou nas mais diversas causas e exerceu os mais diversos ofícios. Em seus mais de 50 anos de atividade, diversos foram os adjetivos e títulos para se referir ao professor: crítico, intelectual, poeta, ensaísta, historiador, erudito, etc. Dentre todas as suas virtudes, a mais marcante delas, entretanto, é algo que a pandemia mostrou estar em falta nos dias atuais. Para além de todo o seu inegável talento para tudo aquilo que se dedicava, Bosi foi acima de tudo, humano.

Nascido em 26 de agosto de 1936, Bosi fez de sua vida um grande espelho de sua vida profissional. Foi professor emérito da USP, onde ingressou no ano de 1955. Por lá, permaneceu o resto de sua carreira, se dividindo entre a FFLCH e o Instituto de Estudos Avançados, sendo responsável por moldar e estruturar muito do que são esses lugares hoje em dia.

História concisa de um homem beletrista: a relação entre Bosi e a USP

Conforme mencionado anteriormente, Bosi inicia sua graduação em Letras Neolatinas no ano de 1955. Naquela época, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) ainda era chamada de Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), e era localizada na Rua Maria Antônia, no centro de São Paulo.

Ao se graduar em 1958, decide se especializar em literatura brasileira, filologia românica e literatura italiana, já lecionando esta última como assistente no ano seguinte. Para se especializar ainda mais na literatura e cultura italianas, antes de continuar seu legado na USP, parte para a Itália e estuda por dois anos na Università degli Studi di Firenze.

Depois de seu retorno ao Brasil, em 1963, sua história não se desconexa mais de terras uspianas, local em que defende seu doutorado e livre-docência, tornando-se professor da disciplina Literatura Brasileira em 1972. Neste momento, Bosi já havia lançado obras significativas para o estudo e pesquisa da literatura brasileira, tais como O Pré-Modernismo (1966) e História Concisa da Literatura Brasileira (1970).

Como professor, Bosi tinha características únicas em sala de aula. “Fazia sempre uma piadinha no meio das aulas, ou às vezes, contava alguma história. Mas, enquanto professor, ele se preocupava muito em dar o máximo de si em termos de utilizar melhor o tempo, compartilhando o que ele tinha estudado, o que ele sabia, com os alunos”, comenta Viviana Bosi, professora doutora do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP e filha de Alfredo Bosi, em entrevista ao JC.

Bosi sempre teve a preocupação de buscar uma sociedade mais democrática e justa e não deixava de demonstrar isso em sala de aula. Para conseguir se conectar com os alunos, usava a ironia em conjunto com sua erudição para conseguir fazer com que eles refletissem o máximo possível o tema debatido. O professor era capaz de misturar os estudos da literatura e os estudos da sociedade, tocando o mais desinteressado dos alunos.

“Era 1971, eu me preparava para me bacharelar, me licenciar e sumir da Universidade. Mas aquele professor moço, com aquela erudição, aquela sensibilidade, aquela prática ética, aquele descortino político e aquele fino humor, que surgiu como um espantoso meteoro, me deu vontade de continuar meus estudos”, comenta Alcides Villaça, professor da FFLCH e ex-orientando de Bosi, em entrevista ao Jornal da USP.  

Além de sua dedicação à FFLCH, Bosi também atuou fortemente no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, desde seu início, desenvolvendo diversos projetos e iniciativas no local. Foi Antonio Candido, outro pilar da crítica literária brasileira, que indicou Bosi para o Conselho Deliberativo do Instituto.

Sobre a participação de Bosi no IEA-USP, Viviana comenta que seu pai via no Instituto uma oportunidade única para um espaço interdisciplinar que faltava à  Universidade: “Ele se entusiasmou com essa ideia de um espaço interdisciplinar em que ciências e humanidades pudessem se encontrar e pensar juntos. Acho que esse foi o grande marco fundador deste instituto: um lugar de reunião, de conversas de várias áreas que faltava à USP.”

Através da revista “Estudos Avançados”, em que foi editor por mais de 30 anos, Bosi tratou dos mais diversos temas sobre educação pública, questões de violência, ecológicas e da Amazônia, formas alternativas de energia e formas econômicas mais sustentáveis.

Em 2018, na inauguração da nova sede do IEA-USP, uma das salas é nomeada como Sala Alfredo Bosi em sua homenagem, refletindo a importância de sua figura para o local em que atuou como diretor entre 1998 e 2001 (também atuou como vice-diretor entre 1987 e 1997)

O professor ainda participou da elaboração do Código de Ética da USP, lançado em 2001. “Ele chegou a participar da Comissão de Ética quando foi criada, junto com outros professores. Eles pensaram em uma regulamentação dos princípios que deveriam gerir a Universidade. Ele escreveu orientações éticas do trabalho universitário, tanto para professores, quanto funcionários e estudantes. Acho que essa é uma das contribuições importantes dele, junto com colegas de várias áreas”, comenta Viviana.

A contribuição de Bosi para a USP foi reconhecida com nomeações de Professor Honorário do IEA em 2006 e Professor Emérito da FFLCH em 2009. Em sua morte, o atual reitor da USP, Vahan Agopyan, divulgou uma nota de pesar, em que afirma que “Alfredo Bosi era um dos responsáveis por forjar a USP”.

Apesar da grossura das lentes e uma timidez aparente, Alfredo Bosi conseguiu emanar seu afeto e preocupação para além da USP, influenciando estudantes, mas também outras pessoas nas mais diversas áreas das ciências humanas, o que o faz um forjador não apenas da USP, mas de toda uma cadeia de pessoas que buscam resistir a um momento tão triste e conturbado.

 
Imagem da Sala Alfredo Bosi, inaugurada em homenagem ao crítico literário, depois de 30 anos de colaboração com o IEA-USP. Foto: Leonor Calasans/IEA-USP

 

Dialética do ser humano: a sensibilidade em prol da resistência

“Meu pai era uma pessoa muito afetuosa, mas também reservada. Então pode ser que na sala de aula ele fosse, com certeza era, bem mais formal. Eu acho que ele era uma pessoa um tanto tímida talvez na vida pessoal. Ele adorava conversar, mas ele não era do tipo aberto”, nos conta Viviana.

Para além de sua incomparável figura como professor, Bosi era dono de um senso de humor invejável, sempre atento ao lado mais peculiar das situações. “Ele era muito irônico. Tanto como professor, como na vida”.

De maneira simultânea a sua jornada acadêmica, Bosi também se dedicava de forma igualmente apaixonada às causas sociais, educacionais e culturais. Quando militava, procurava aplicar a teoria à prática, buscando sempre propor soluções para os problemas. Era integrante do Centro de Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, além de ter sido membro da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Paz, que, aliás, era um de seus lemas.

“Ele odiava violência”, relembra Viviana. “Eu me lembro que uma vez, ele ia dar um curso de férias em Goiânia. No último dia, ele resolveu acordar cedinho e dar uma volta na cidade. E quando ele passou, uma joalheria estava abrindo, e o dono da joalheria deu uns pontapés, e empurrou o mendigo que estava dormindo na porta para o meio da rua. Meu pai voltou para o hotel tão abalado, que ele escreveu uma carta para o dono da joalheria”.

Viviana recorda também o papel que seu pai teve com o padre Domingues Barbé na Vila Iolanda, em Osasco, junto a um grupo de operários da região. “Ele ia todo final de semana, durante muito tempo. Eles tinham um grupo de estudos com os operários que moravam naquela região. E liam literatura, liam Gramsci, liam outros textos e discutiam. Ele não queria ficar restrito apenas ao mundo universitário, ao mundo acadêmico”.

Além das causas sociais, Bosi também lutou pelas questões ambientais. Amigo do arquiteto, ativista e político, Chico Whitaker, Bosi costumava ir com frequência à Câmara dos Vereadores da cidade de São Paulo, a fim de discutir a elaboração de leis e formas econômicas mais sustentáveis. “Então ele era um homem muito prático nesse sentido. Ele ia, conversava com os vereadores, ia conversar na assembleia com os deputados, no sentido de preservar o último cinturão verde do Estado de São Paulo. Que as indústrias não fossem poluidoras, que houvesse regulamentação”.

Em seu último livro, Arte e Conhecimento em Leonardo Da Vinci (2017), Bosi faz uma análise sobre a obra do genial polímata italiano. Em uma observação a respeito do artista quanto ao seu fazer artístico, Bosi discorre: “De todo o modo, o artista só alcança esse grau de liberdade depois de ter fixado o olhar com longa e amorosa atenção na variedade prodigiosa do universo”. Curioso notar, que apesar da análise ser feita sobre Da Vinci, ela se aplica também ao próprio Bosi.

Para todos aqueles que tiveram o privilégio de conhecê-lo, ficam as lembranças de um homem único e o conhecimento de um profissional brilhante. Para os que infelizmente não tiveram tal oportunidade, fica o exemplo de um humanista inspirador, sempre preocupado com que as relações humanas fossem mais justas e éticas, e de uma obra profunda e subjetiva, sendo muitas vezes um espelho efêmero e atemporal da vida.

Tomando suas palavras em seu discurso de posse da Academia Brasileira de Letras: “A memória que, no verso de Camões, ‘os homens desenterra’, é, neste caso, o mais grato dos deveres. É minha vez de convidar-vos a me acompanhar nesta viagem de reconhecimento”. Para a maioria dos seres humanos, o convite foi aceito.