Os estudantes da USP têm fome

Com o fechamento dos restaurantes universitários e em situação de vulnerabilidade sem o auxílio-alimentação, alunos se organizam para reivindicar uma reestruturação de parte do programa de permanência estudantil da universidade

por João Mello e Laura Toyama

Na manhã do dia 12 de maio, a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão da USP realizou virtualmente o simpósio “Políticas Públicas para o Combate à Fome”. Com a presença do reitor, Vahan Agopyan, do vice-reitor, Antonio Carlos Hernandes, do Pró-Reitor de Graduação, Edmund Chada Baracat, além de outros dirigentes da Universidade, o evento versava sobre o problema da fome em níveis municipal, estadual e nacional. Ao mesmo tempo, estudantes comentavam no chat da live a respeito da fome dentro da própria instituição, reivindicando a atenção para um problema mais próximo. 

Comentários dos alunos na transmissão do simpósio “Políticas Públicas para o Combate à Fome”, promovido pela Pró-reitoria de Cultura e Extensão. Ao final, alguns relataram terem sido silenciados pelo moderador da caixa de mensagens. Captura de tela por João Mello

 

Medidas paliativas

Desde março de 2020, a pandemia de covid-19 tornou as aulas remotas uma realidade. Com essa mudança, criou-se um impasse relacionado ao auxílio-alimentação, anteriormente recebido pelos estudantes através de débito em seus cartões para uso nos restaurantes universitários (RUs). Hoje, esses restaurantes encontram-se fechados. A medida que a Universidade encontrou para contornar o problema foi a distribuição de marmitas no Butantã e no Quadrilátero da Saúde.

Estudantes da Escola de Artes Ciências e Humanidades (EACH) começaram a questionar a eficiência dessa medida, uma vez que não eram contemplados pela distribuição nos outros campi. Localizada no bairro Ermelino Matarazzo, a chamada USP Leste tem a maioria de seu entorno formado por bairros não residenciais, e seus estudantes estão espalhados por toda Grande São Paulo. Nesse contexto, os alunos precisariam deslocar-se grandes distâncias, em meio a uma pandemia que impõe medidas de distanciamento e isolamento social, para pegar a marmita. Dadas as distâncias, essa refeição poderia estragar no caminho de volta. Alguns estudantes chegaram a relatar já terem-nas recebido estragadas. Além disso, antes os restaurantes da Universidade ofereciam café da manhã, almoço e jantar, mas as marmitas eram distribuídas em apenas uma refeição.

Dados sobre a distribuição geográfica dos alunos da EACH, apresentada numa Plenária da Representação Discente da faculdade. Fonte: base de dados obtida no sistema Júpiter pela Representação Discente da EACH

Os estudantes da Each com direito ao recebimento do auxílio-alimentação começaram a se mobilizar para reivindicar uma reestruturação do benefício. Os representantes discentes da instituição passaram a entrar em contato com os órgãos administrativos da unidade. Sem retorno, entidades estudantis se uniram para organizar plenárias e deliberar ações e demandas a serem levadas para a cúpula administrativa da USP.

Esta reportagem conversou com Carolina Paulino, estudante de Gestão de Políticas Públicas e representante discente no Conselho Técnico-administrativo da Each, e Victor Bruno, estudante do mesmo curso e presidente do Centro Acadêmico Herbert de Souza. Eles relataram um grande processo de troca de e-mails com as instâncias administrativas, mas que não provocou resultados práticos. As respostas dos dirigentes prometiam um retorno que não aconteceu e, uma congregação da EACH, chegou a ser cogitada a criação de um fundo de caridade.

“Por vias institucionais, solicitação, ofício, eles vão ignorar a gente. Eles vão inventar desculpas, porque a questão da permanência é negligenciada há anos. As bolsas não têm reajuste há mais de 8 anos, a gente recebe uma miséria de auxílio manutenção, auxílio moradia. O Crusp está caindo aos pedaços. Então a gente precisa ser mais incisivo”, diz Victor Bruno. 

Primeiro email da representação discente na congregação da Each, destinado ao reitor e vice-reitor. Captura de tela fornecida pelos entrevistados

Diante desse cenário, no dia 10 de março, aconteceu o primeiro ato organizado pelos estudantes. Através de plataformas de disparos de e-mail, os alunos programaram uma mensagem que foi enviada a endereços eletrônicos da Reitoria, Vice-Reitoria, Pró-Reitoria de Graduação e Superintendência de Assistência Social (SAS) reivindicando uma solução para o problema: o recebimento do auxílio-alimentação em dinheiro. Dessa maneira, todos os alunos poderiam usufruir do benefício, que já era depositado no cartão para uso nos RUs, sem a necessidade de se deslocar até os campi, juntamente a todas as complicações envolvidas. Cerca de 400 e-mails foram enviados. Essa atitude chamou a atenção da Diretoria da Each que, no dia seguinte, estipulou a possibilidade de resgatar as marmitas na própria USP Leste. Mas as problemáticas envolvidas se mantiveram. 

“A transição das políticas de permanência para o ensino a distância foi um processo silencioso, a alimentação estava em segundo plano quando as principais demandas eram sobre as aulas”, conta Ynaê Cortada, estudante de Gestão de Políticas Públicas e membro do DCE. Ela comenta que essa restrição aos campi da Zona Oeste apenas confirmou uma marginalização histórica da Each no que concerne à elaboração e aplicação de políticas de permanência. Foi nesse contexto que centros e diretórios acadêmicos da faculdade e representantes discentes organizaram plenárias para entender quais eram as principais problemáticas ligadas à falta do auxílio, sobretudo no contexto de insegurança alimentar e pobreza, gerados pela pandemia. 

Unificação das lutas 

Paralelamente a o que acontecia na Each, Ana Laura, estudante do Instituto de Oceanografia, enviou um e-mail para sua assistente social perguntando se haveria a possibilidade de receber o auxílio alimentação em dinheiro, dadas as condições atuais. A assistente respondeu que ela, sozinha, não teria força para fazer essa reivindicação, que seria necessário unir mais pessoas. 

Dessa forma, Ana Laura teve a iniciativa de procurar pessoas que se encontravam em uma situação parecida com a dela e criou grupos, primeiro no WhatsApp e depois no Telegram, para que todos fizessem a reivindicação por um auxílio-alimentação pecuniário. Ana Laura conta que seu papel central nessa mobilização foi usar essa ideia, que até então estava isolada, e unir pessoas que tinham os mesmos direitos. 

“A marmita é inviável. Estamos em um cenário de pandemia, que zela pelo resguardo da pessoa. Então, a USP distribuir marmitas, fazer o aluno sair de sua residência, pegar um transporte, pegar essa marmita, ele está correndo risco de ser contaminado. Se a USP parou de receber seus alunos, foi justamente para isso: evitar a transmissão do coronavírus”, relata Ana Laura. 

Iasmin Dias também é estudante de Oceanografia e faz parte do Centro Acadêmico Panthalassa, que ajudou Ana Laura a expandir sua pauta dentro da instituição. Ela questiona se o auxílio, e a Universidade como um todo, são efetivamente voltados para a população. “Se fosse, mais pessoas receberiam auxílio. Porque mais do que as pessoas que recebem, são as pessoas que precisam. Muitas pessoas precisam e não recebem esses auxílios e, agora, nem as que em tese receberiam estão de fato recebendo. É simplesmente desumano você fazer com que uma pessoa precise se deslocar num momento de pandemia, de isolamento, para pegar uma marmita, que às vezes pode vir estragada.”

Após essas mobilizações simultâneas, o DCE somou-se às entidades de base e aos discentes para unificar as demandas e organizar o plano de ação para pressionar a Reitoria e a SAS. Essa representação estudantil foi importante para dar nome ao Comitê de Luta pelo Auxílio Alimentação e guiar seus primeiros passos, como coletivo. Em entrevista, a estudante de Ciências Sociais e membro do DCE, Juliana Godoy, reforça esse marco nas mobilizações e a importância de ter um acúmulo da melhor forma de acionar a institucionalidade da USP a favor dos estudantes. “O DCE cumpre uma função histórica de unificação de pautas, muitos dos nossos problemas são compartilhados” relata, “há uma familiaridade com a burocracia da USP, o que facilita que as demandas estudantis cheguem aos lugares certos”. 

Os encaminhamentos

Desde então, os estudantes se organizam em plenárias e grupos de Whatsapp, nos quais enviam informações a respeito dos encaminhamentos de reuniões e diálogos com representantes da USP. No dia 27 de abril (uma terça-feira), uma primeira plenária interunidades reuniu mais de 100 estudantes.

O Comitê de Luta pelo Auxílio Alimentação então elaborou uma carta, assinada por 44 entidades estudantis, que funcionava como uma nota política expressando as dificuldades impostas pela pandemia, na qual muitas pessoas estavam passando até por questões de insegurança alimentar, e versava sobre as problemáticas da marmita, reivindicando a possibilidade do aluno receber o auxílio pecuniário, via crédito em conta ou vale-refeição. Em seguida, um abaixo-assinado foi assinado por cerca de 1.700 alunos que concordavam com o conteúdo da carta.

No dia 30 de março, houve uma reunião entre a representação discente da Each e o DCE com o pró-reitor de Graduação, Edmund Chada Baracat, na qual foram apresentados os dados e problemas relacionados ao auxílio, além de um mapa que mostra onde moram os estudantes da unidade. O encaminhamento foi marcar uma nova reunião para dali a 15 dias, que até hoje não aconteceu. 

Mapa que identifica onde estão localizados, geograficamente, os estudantes da Each. Cada ponto azul representa um bairro, e os laranja, os locais de retirada de marmita. Os dados brutos foram obtidos através do Júpiter Web. Imagem: Google Maps

O Orçamento

Nas respostas que os órgãos institucionais da USP enviaram aos estudantes, geralmente são relatados problemas para alocar um auxílio pecuniário no orçamento da Universidade. A USP possui, para este ano, um orçamento de aproximadamente R$5,9 bilhões, dos quais R$94,09 milhões representam recursos para o Programa de Bolsas e Auxílios e, destes, R$ 2,5 milhões apenas para o auxílio alimentação. 

O Comitê pelo Auxílio Alimentação tentou negociar com a SAS para que, ao menos, os estudantes alocados na categoria econômica mais vulnerável do programa (P1) fossem contemplados com um auxílio pecuniário. A quantidade de estudantes que se encaixa nesses níveis, entretanto, não está disponível para consulta de todos. 

Carolina Paulino questiona: “A finalidade do dinheiro do auxílio alimentação é para alimentar alunos, então se você não está utilizando esse dinheiro para a sua finalidade, o que você está fazendo com ele? O orçamento é simplesmente uma questão alocativa. É um conflito no qual os estudantes estão sempre atrás. Como a gente vai influenciar isso se não existe paridade nos conselhos?”

Para Victor Bruno, a questão do auxílio representa, acima de tudo, uma luta pela democracia universitária. “Historicamente, as medidas tomadas pela USP sempre foram tomadas de cima para baixo. A USP é uma Universidade anti-democrática, cujos órgãos de deliberação estão sempre fechados a um grupo de pessoas que têm interesses distintos do que a gente entende pela defesa de uma democracia, de uma universidade plural e popular.” Ser popular, Iasmin Dias acrescenta, é “dar condições para que os alunos permaneçam nos seus cursos”. 

Em 19 de maio, os estudantes contemplados com os Auxílios Financeiro, Transporte e Manutenção que integram o PAPFE receberam um e-mail sendo avisados de que os pagamentos desses Auxílios, referentes ao mês de maio de 2021, serão atrasados e ocorrerão na primeira semana de junho. Nesta mesma mensagem, é informado que os Auxílios Alimentação e Livros estariam disponíveis para utilização desde o primeiro dia do mês de maio. Não se trata de um auxílio alimentação em dinheiro como reivindicado pelos estudantes, mas sim da possibilidade de ir até um dos campi e pegar uma marmita. 

Sobre a importância das políticas de permanência, Paulino conclui: “Existem diferenças entre nós, elas não deixam de existir depois que você entra na Universidade. Não é porque você fez um vestibular que você deixou de ter uma origem diferente das demais pessoas que estão lá. Eu sempre fui de escola pública, de uma classe média baixa. A política de permanência foi a única coisa que me manteve aqui até agora, eu não estaria aqui se eu não tivesse garantido as minhas bolsas. Isso para mim é essencial, é algo que a gente tem que debater a fundo, porque a USP se coloca como um local cada vez mais inclusivo, mas ela negligencia política de permanência, é como se ela dissesse ‘entrou, mas pode sair se quiser, porque não nos interessa o seu contexto pessoal’.”

Contatamos a SAS para esclarecimentos da situação, mas até a publicação dessa reportagem, não tivemos retorno.