Cientistas se aproximam da população pelas redes sociais e travam batalha contra o negacionismo

A dificuldade para combater a disseminação de mentiras é estabelecer uma outra cadeia de disseminação, mas de informações verdadeiras que cheguem às pessoas

Por Kaynã de Oliveira

Em meio ao negacionismo científico, propagado amplamente pelo governo federal, e a disseminação virulenta de fake news sobre a pandemia, pesquisadores viram nas redes sociais um meio eficaz de divulgação científica e de aproximação entre academia e população. A disponibilização de informações verdadeiras de forma rápida e acessível retorna à sociedade os investimentos, ainda que não muito expressivos, feitos nas universidades públicas.

O médico e advogado sanitarista Daniel Dourado, do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário (Cepeda) da USP, não costumava utilizar as redes sociais com afinco, apenas para postagens esporádicas. Durante a pandemia que assola o país e perante os esforços para encontrar soluções, o médico intensificou sua presença nas redes, principalmente no Twitter, para divulgar a ciência. As repercussões vieram e o perfil agora conta com mais de 92 mil seguidores, com tuítes que ultrapassam sete mil curtidas. “Comecei a usar [minhas redes sociais] para fazer divulgação de ciência por uma questão da pandemia propriamente. Eu basicamente uso uma rede, que é o Twitter. Tenho as outras redes. No Instagram e Facebook eu só replico o que público no Twitter”, compartilha.

Inicialmente, Dourado usou as redes sociais para comentar a atualidade da pandemia com informações verídicas. Posteriormente, passou a falar sobre sua  área de atuação, o direito sanitário. Ele explica, sobretudo, a atuação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e as ações governamentais para o controle da covid-19. “Falo hoje de regulação sanitária, a parte de direito da saúde, que é aquela atividade de regulação do Estado para o exercício das atividades de saúde. Tenho falado muito da atuação da Anvisa. Falo sobre esse conflito de regulação de vacina, o porquê saiu uma vacina, porquê  uma vacina foi aprovada e outra não”. 

O especialista também trata de temáticas políticas de saúde pública: “Saúde pública é uma atividade fundamentalmente política, está ligada a questões de natureza política e eu digo até mesmo de disputa política. Vemos claramente hoje no cenário que é evidente uma crise de natureza política no Brasil se sobrepondo à crise sanitária”.

O farmacêutico Wasim Aluísio Prates Syed, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP de Ribeirão Preto, candidato ao doutorado pelo Instituto Butantã e para o Instituto de Ciências Biomédicas da USP de São Paulo e membro da União Pró-Vacina do Instituto de Estudos Avançados (IEA) Polo Ribeirão Preto da USP, discorre sobre a importância das redes sociais na luta contra a desinformação.  A União Pró-Vacina é presente nos principais canais de comunicação da internet, como Instagram, Twitter, Facebook, YouTube e Telegram. Ao todo, são mais de 19 mil seguidores somando todas as redes. O principal tema abordado pelo grupo é a vacinação, tirando dúvidas e falando da importância em posts interativos e vídeos explicativos.

Jair Bolsonaro é um grande defensor do tratamento precoce sem qualquer eficácia científica. Foto: Fotos Públicas/Carolina Antunes/PR

As redes sociais são o principal vetor para disseminação de fake news. O WhatsApp e Facebook podem ser ainda mais potentes devido aos vínculos afetivos proporcionados pelas plataformas, em que se conversa com familiares e amigos próximos. Assim, as pessoas, quando não bem informadas, tendem a acreditar em postagens mentirosas porque foram compartilhadas por entes queridos. “Se você manda ou recebe uma mensagem de alguém próximo ou em quem confia e tem algum sentimento, é provável que acredite naquilo”, aponta Prates Syed, e complementa: “As redes sociais funcionam como uma cadeia de informações falsas de forma muito mais eficiente do que se fosse feito em notícias na TV, por exemplo”.

A dificuldade para combater a disseminação de mentiras é justamente estabelecer uma outra cadeia de disseminação, mas de informações verdadeiras que cheguem às pessoas. Para o membro da União Pró-Vacina, a linguagem é um dos elementos basilares, porque uma pessoa leiga nem sempre é capaz de compreender os jargões científicos: “Uma das coisas que tem ajudado é, realmente, a aproximação que a divulgação científica tem feito dos cientistas com a população. A linguagem entra também na fórmula do que mandamos”.

Dourado enxerga o WhatsApp como o principal vilão disseminador de notícias falsas. Apesar de cientistas estarem adentrando as redes sociais, o “Zap” ainda é bastante popular e tem um ambiente que dificulta o controle ou a massiva divulgação científica, diferente de outras redes, como Twitter e Instagram. O intuito dos pesquisadores é diminuir a confusão das pessoas sobre a covid-19 frente a um governo que propaga informações incorretas ou incompletas. “O WhatsApp é por onde circulam as informações. É por onde grande parte da população está se informando. Então, a pessoa não lê a notícia, ela lê a manchete, ela lê o WhatsApp, ela lê a corrente de WhatsApp. Esse é um espaço em que a gente não entra. Tem os divulgadores científicos que estão tentando entrar, mas é uma estrutura que não é fácil de se ter para replicação de conteúdo via WhatsApp. Eu acho que aí é que está o nó”, informa.

A contracorrente científica na desestabilização do negacionismo

A aproximação de cientistas e a sociedade em geral é uma forma de mostrar à população o que está sendo desenvolvido na academia, explicitando os avanços realizados com os recursos destinados às universidades. É quase uma forma de prestar contas. Para Prates Syed: “os cientistas têm que lembrar que quem paga as pesquisas, os estudos, as estruturas dos laboratórios e das salas de aula, são os impostos dos cidadãos do Brasil”. Essa conscientização na bolha científica representa um fator determinante para a aproximação com a sociedade. “Estamos nos conscientizando sobre isso, conversando com todas as pessoas. Nas redes sociais, tentamos nos aproximar mais do público”, completou.

O negacionismo científico impulsiona as fake news. Conforme o advogado sanitarista, essa descrença no que já é estabelecido e comprovado, é um traço marcante da sociedade atual, vindo para o Brasil pela influência de países como os Estados Unidos, que também enfrentam esse tenebroso inimigo. Lá, o negacionismo culminou na eleição de Donald Trump, em 2016. Aqui, essa onda obscurantista culminou no atual governo, tendo como seu líder, Jair Bolsonaro. É uma espécie de “cultura política” que tem se alastrado, não só na retórica, que vem se materializando no sucateamento das instituições públicas, resultando em cortes de verbas, corte de bolsas de ensino e cortes no financiamento de pesquisa. “O que afeta os cientistas, não é apenas o negacionismo, mas o enfraquecimento que vem como consequência disso. Vai ver o que está acontecendo no Brasil agora. É um sucateamento, uma perda do financiamento e uma desestruturação das agências de fomento. Perdemos inúmeros editais, perdemos bolsas de pesquisa, perdemos um monte de coisa”, argumenta Dourado. 

Manifestação em frente ao Congresso Nacional cobra responsabilidade do governo frente ao combate da pandemia da covid-19 no Brasil. Foto: Fotos Públicas/Roque de Sá/Agência Senado

Esse ano, o governo federal destinou 4,5 bilhões de reais para 69 instituições públicas, valor 18,6 vezes menor do que o estabelecido em 2020 e o menor valor em 10 anos, aponta a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).

Contudo, o pesquisador acredita que essa onda negacionista é um ciclo fadado ao fracasso. A teia de mentiras não se sustenta porque se dissemina em período de fragilidade do sistema capitalista e não fornece respostas realmente úteis e fundamentadas para a sociedade. Graças a uma contracorrente de esforços de divulgadores de fatos, a população, num futuro otimista, deverá absorver a importância da ciência e da verdade. “Eu acho que esse ciclo está com tendência de esgotamento. A tendência é as pessoas perceberem que o referencial científico tem um valor fundamental, que tem melhorado, embora ainda aquém do que poderia ser, as condições de vida nos últimos séculos. Passada essa onda de negacionismo, eu acho que num futuro a tendência é de melhora. Eu quero crer aqui que as pessoas vão se dar conta disso”.