Estatuto de Conformidade: “A USP é madura para criticar uma proposta”

Em exclusiva ao JC, professor Floriano de Azevedo Marques explicita suas intenções e responde a polêmicas sobre o Estatuto de Conformidade

 

 

por André Deviche

Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto é diretor da Faculdade de Direito. Foto: Leonor Calasans/IEA-USP

 

Tramita na USP o chamado Estatuto de Conformidade de Condutas. O documento tem como objetivo normatizar “os princípios, infrações, sanções e processos, bem como os preceitos éticos, a serem observados pelos membros da comunidade universitária”, segundo coloca a sua primeira minuta. A intenção é atualizar o Código Disciplinar da USP, em vigência desde 1972. 

A comissão para redigi-lo foi formada em abril de 2017, sendo que o texto base foi apresentado ao público somente em 2020. A comunidade teve até o dia 10 de maio para enviar sugestões, que deverão ser analisadas por uma outra comissão em 29 de junho.

Os mandatos dos integrantes da comissão de 2017 no Conselho Universitário foram sendo encerrados, fazendo com que o primeiro rascunho do Estatuto fosse conduzido principalmente pelo professor Floriano de Azevedo Marques Neto. O texto acabou gerando polêmica nos meios universitários (para saber mais, clique aqui). Em entrevista exclusiva ao Jornal do Campus, o professor Marques Neto revelou mais sobre o processo de redação.

Marques Neto é diretor da Faculdade de Direito da USP desde 2018 e relatou que seu mandato termina em março de 2022, o que também tira seu cargo no Conselho Universitário. Sua especialidade é na área de Direito do Estado e atua como professor titular na USP desde 2002. Confira a entrevista:

Em informe publicado na Associação de Docentes da USP (Adusp), é dito que a criação deste Estatuto ocorreu de forma solitária. Poderia explicar como se deu esse processo? Como o senhor avalia a maneira como ele ocorreu?

O primeiro equívoco é dizer que a elaboração do Estatuto se deu de forma solitária. Isso é falso. A minuta do rascunho do texto base acabou sendo feita de forma isolada, porque os outros membros da Comissão acabaram deixando de fazer parte do Conselho Universitário, portanto perderam o mandato e acabaram se desligando da Comissão. O processo está em curso, ele está sendo feito com uma quantidade grande de contribuições (ao rascunho) que serão todas elas consideradas agora por uma nova Comissão constituída pelo Reitor e, possivelmente depois, seja sucedido de uma nova consulta pública e de um debate no Conselho Universitário. Portanto, eu diria que esse processo está sendo não de forma isolada, mas teve como pontapé inicial uma consolidação de ideias que foi feita circunstancialmente por mim isoladamente.

Os trabalhos no Estatuto de Conformidade de Condutas foram influenciados a partir de documentos de uma Equipe Assessora que tinham a intenção de rever o Código de Ética da USP, formada no escritório USP Mulheres, que também auxiliaria nessa revisão do Código Disciplinar da USP. Houve a participação efetiva desse grupo?

Todo o material que foi encaminhado lá na origem da Comissão (em 2017) ou depois de uma apresentação de linhas mestras no Conselho Universitário (em 2019), foi analisado e considerado. Algumas coisas foram incorporadas e outras não. Eu, pessoalmente, acho que Código de Ética é uma coisa, Estatuto de Conformidade é outra. Então, por exemplo, normas muito boas de revisão do Código de Ética foram analisadas e não foram incorporadas, porque, no entendimento do texto zero, ele não é um Código de Ética, ele é um código de conformidade de condutas que prevê, obviamente, condutas que não se quer ter e eventuais consequências delas decorrentes. Agora, tudo isso está em discussão ainda. Você pode inclusive ter, como algumas congregações recomendam, um abandono do texto base, e eu pessoalmente não vou ficar nem um pouco triste com isso, e um começo a partir de outro texto.

Qual é a razão de se ter um Estatuto de Conformidade de Condutas para a USP?

Como todo documento que prevê conformidade de condutas, a primeira finalidade é indicar quais são as consequências e, portanto, quais são as condutas que uma comunidade não aceita, que ela censura. A segunda utilidade é dar clareza e objetividade ao trabalho ingrato daqueles que, por qualquer circunstância, tem que analisar condutas que firam esse Código de Condutas. Os objetivos desse documento zero foram atualizar condutas que no passado eram toleradas e que há um sentimento geral de que elas não podem mais ser toleradas, por exemplo, comportamentos sexistas, assédio moral, comportamentos preconceituosos. No passado, infelizmente eles eram tolerados, hoje não pode mais. E segundo tornar menos discricionário e mais objetiva a relação entre o que acontece quando alguém pratica essa conduta face à resposta que a Universidade tem que dar. Hoje, o que nós temos é uma legislação muito antiga em que a autoridade, o reitor, o diretor de unidade, a congregação, têm muita discricionariedade, muita liberdade para aplicar uma pena, porque são tipos infracionais muito abertos. O que se quis fazer foi dar mais objetividade e, até certo ponto, mais fechamento a essas condutas. É importante que cada conduta que a Universidade não aceita esteja prevista e com uma consequência clara para aqueles que a praticarem.

O senhor considera que a forma como o conteúdo aborda as questões de gênero e de raça é satisfatória?

Eu não seria arbitrário para dizer que é satisfatório. Isso quem vai dizer é a comunidade. Acho que esse é um documento muito inicial e que só é possível chegar a um equilíbrio adequado se a comunidade estiver fazendo a crítica antes de o documento ser definitivo. Eu diria que considerei como um bom pontapé inicial, mas estou longe de ser o dono da verdade e longe de ser a maior autoridade em questões de gênero. Acho que é difícil imaginar alguma conduta de preconceito racial ou de preconceito de gênero, por exemplo, que não esteja endereçada, que não esteja lá listada. Agora, se o tratamento dado é o mais adequado, isso eu acho que só o processo vai definir.

No momento de formular esse documento, o senhor considerou pesquisas sobre a Universidade? Que tipo de suporte o senhor teve para escrever esse documento e entender as tendências do que acontecia na USP?

Fiei-me em documentos que tinham sido preparados no passado pela Congregação da Faculdade de Filosofia (FFLCH). Li os documentos das clínicas de gênero que me chegaram e fiz uma pesquisa bastante ampla, como está apontado no relatório, em como as universidades do padrão da USP tratam esses assuntos no mundo – assuntos como preconceito de gênero, comportamentos sexistas, preconceito de raça, violação ao direito autoral de pesquisadores… Tudo isso foi considerado dentro de uma pesquisa ampla. Minha premissa foi que tudo que está posto lá vai ser objeto de crítica e, portanto, nada mais autorizado a fazer a crítica do que os movimentos, os coletivos da USP que lidam com esses temas mais do que eu. Minha linha de pesquisa é outra, entendo de Direito Administrativo, não é o meu campo de atuação, por exemplo, pesquisa de gênero. Então o esforço inicial foi o de tentar agrupar problemas, propostas de soluções, um benchmark do que existe, do que está sendo discutido ao redor do mundo e submeter para crítica da comunidade universitária. E quando você olha para o outro lado das contribuições, são contribuições de crítica frontal, pontual, de insuficiências ou de tratamentos inadequados que foram dados, aí você tem um material riquíssimo. As contribuições que estou trabalhando hoje, e a comissão constituída pelo reitor está trabalhando, são riquíssimas, acho que tem muito a melhorar o texto zero, que é um texto inicial como eu disse.

Mesmo o documento sendo algo inicial, ele não requer uma maior participação no texto base, pela abrangência do documento?

É uma premissa da qual não concordo, porque quanto mais complexo é o documento e são os temas, eu tendo a achar melhor trabalhar com um ponto de partida, a menos que tivéssemos um conjunto de pessoas que fossem destinadas a trabalhar só nisso, que aí você tivesse ao longo de alguns anos um conjunto de pessoas, alunos, professores, funcionários, dedicados só a isso. O esforço que fiz ao longo de dias e noites foi tentar juntar as ideias e fazer um texto básico, que ele todo pode ser alterado. E veja, esse processo está em discussão hoje, já vão mais de seis meses, outros tantos meses serão tomados, que participação maior a gente pode esperar? As pessoas gostariam de dar ideias e que aí essas ideias fossem invertidas em um texto. Só que se você tem uma miríade de ideias que são, claro, ideias muito boas, as ideias que são oferecidas a partir de textos, teses, concepções, como é que você faz para reunir tudo isso e contemplar todo mundo sem ter um universo de pessoas trabalhando só nisso? Acho que existem muito mais objeções hoje ao método do que objeções ao texto. Estamos há duas semanas e meia trabalhando nas contribuições, que são muitas para poder organizá-las em um template para poder iniciar a discussão. Elas são bastante variadas, mas estou muito impressionado com elas.

Algumas entidades criticaram trechos muito abrangentes, como por exemplo, o inciso I do artigo 12 (infração: praticar conduta não tipificada nos artigos anteriores, mas que atente contra as finalidades da Universidade). O senhor considera que o documento está satisfatório no sentido de sua abrangência? Na sua visão, ainda seriam necessárias mais etapas para que a construção do Estatuto esteja concluída?

São duas percepções muito pertinentes, mas que são balizadas pela realidade. Primeiro, você sempre vai ter, em matéria disciplinar, algum grau de abertura normativa: conceitos indeterminados, ou tipos que sejam muito amplos em relação a sua conduta, isso é sempre possível de ser aperfeiçoado, mas é muito difícil zerar essa abertura, porque você sempre vai ter alguns tipos que são tipos que envolvem um preenchimento no caso concreto. Acho que há um campo bastante grande para fechar os tipos abertos, deixá-los os mais objetivos possíveis e esse trabalho precisa ser feito, deve ser feito, mas sempre você vai ter uma margem de abertura. Dou um exemplo: assédio moral. Acho que tem que ter algumas prescrições para evitar que os superiores hierárquicos pratiquem assédio moral. É difícil praticar assédio moral sem trabalhar com algum tipo de abertura, abertura do conceito vernacular da infração. A outra crítica é que há um viés punitivista. Ora, qualquer estatuto disciplinar sempre vai prever punições. Em algum momento, quem pratica um preconceito na universidade tem que ser punido, ninguém discute isso. O que acho que esse processo (de análise das sugestões) iluminou e é importante é que você tenha um maior reforço do caráter pedagógico em detrimento de um caráter sancionatório. Esse equilíbrio, acho que está na ordem do dia e deve ser buscado.

No artigo artigo 11, fala-se em condutas praticadas em ambientes assembleares. Haveria uma fiscalização para supervisionar essas condutas?

Ninguém cogita ter um comissário de fiscalização de assembleias. Agora, esse tipo infracional volta à seguinte situação: Imagine que uma assembleia de estudantes, e que entre um estudante que participa de movimentos de direita profere uma fala altamente preconceituosa de promoção e erradicação de minorias. E uma parte dos alunos que está nesta assembleia se sente ofendido. Aí você vai ter um conjunto de pessoas que testemunharam aquilo, faz uma representação da unidade. Aquilo chega para o diretor da unidade para ele avaliar se pune ou não o aluno. Não vai ter lá um comissário da assembleia, não faz sentido. Mediante uma prova documental, por exemplo, o aluno gravou a fala do discurso de ódio ou de prova testemunhal, já hoje é possível punir. 

P: E quanto às greves, quando o próprio poder Judiciário julga a greve como abusiva, já não estão previstas punições?

No tema da greve, a intenção foi fazer uma separação do que é o direito de greve e o que é a continuidade de uma greve que é considerada ilegal. Isso ficou ruim, está mal feito. Está absolutamente equivocado. Claramente essa redação precisa ser melhorada ou, eventualmente, retirada, mas o objetivo era definir exatamente a separação entre o ato de greve, que é o ato normal, regular, exercício de direito, e a atitude de extrapolação do direito de greve.

Qual a sua avaliação pessoal sobre o documento até o momento?

Primeiro, não acho que ele é suficiente. Se tudo se cumprir, vai ser um processo bastante participativo. Ele está em curso. Não acho que até aqui já tá pronto, precisa ter mais debate e o documento vai ter que ser aperfeiçoado. Acho que a Universidade é madura o suficiente para receber uma proposta, criticá-la, alterá-la e melhorá-la, isso é fruto do processo participativo. Convoco a todos que acompanhem esse processo, sem a desconfiança de que esse seria um processo feito para ser enfiado goela a baixo da universidade.

Algumas pessoas já mencionaram que, como haverá a troca de gestão na Reitoria no meio do ano, o processo de implementação do Estatuto estaria sendo acelerado. Como o senhor analisa a suposta correlação entre troca de gestão e implementação do documento?

Não sei qual é o conceito de rápido desses críticos. Fiz em 2019 representação de linhas mestras do texto. Tivemos a divulgação do texto em 2020, meados de 2020. Já estamos em meados de 2021. Esse processo está começando. Vamos ter, provavelmente no começo do segundo semestre, um texto para colocar em nova consulta pública. Talvez seja aprovado no final do ano. Se for, o processo dura dois anos e meio, isso é rápido?

Mas estariam considerando o fato de ter sido apresentado amplamente à comunidade no final do ano passado.

Bom, tudo bem, então vai ser aprovado em um ano. Não acho que seja uma coisa rápida. Mas também não há garantia nenhuma de que esse processo vai ser aprovado agora na gestão do professor Vahan [Agopyan]. Pode ser que um novo reitor queira começar do zero, como o professor Zago [Marco Antônio Zago, reitor quando o processo se iniciou em 2017] lá atrás não quis fazer uma discussão no final do mandato, até porque não estava pronto nem o texto zero. Um dia a universidade vai ter que ter encontro marcado com discutir esse tema. E acho que nenhum gestor queira consagrar sua gestão aprovando um estatuto desse. Não vejo como a aprovação acontecer no fim deste ano, não é possível, com todas as contribuições que a gente recebeu e tal ter um texto decente para uma nova rodada de discussão antes disso. Se o atual reitor quisesse dar um golpe de mão nessa matéria, acho que não teria aberto um processo amplo assim.