“Eu sabia que eu precisava do nome da USP para conseguir meu diploma do ensino médio”

Jovem aprovada no curso de Engenharia Civil fez ensino médio pelo sistema do homeschooling

 

 

por David Ferrari e Mariana Carrara

A estudante não pôde se matricular na Universidade porque não tem diploma de ensino médio. Fotos: Elisa Flemer/Arquivo Pessoal

 

A tão sonhada aprovação na USP, que muitos almejam e, quando vem, costuma causar alegria, emoção, sensação de alívio e missão cumprida. Para Elisa Flemer, de 17 anos, os sentimentos foram distintos: Descobri sem querer. Acabou a data do SISU e eu nem olhei onde eu passei. Só descobri quando pessoas que tinham passado vieram falar comigo. 

Apesar de ter passado em quinto lugar no para o curso de Engenharia Civil, a menina de Sorocaba não pôde ingressar. Pela lei brasileira, se matricular no ensino superior só é uma possibilidade para aqueles que têm um certificado de conclusão do ensino médio. Coisa que Elisa não tinha – e ainda não possui. 

Questionada sobre qual teria sido a sensação de passar no vestibular, ela não citou as alegrias. É extremamente frustrante, claro. Porém, eu já estava um pouquinho acostumada. A mesma coisa já tinha acontecido. Eu tinha passado já na Faculdade [de Sorocaba] em 2019. Elisa cursou 2 meses aguardando a decisão de uma liminar, que não a autorizou a ingressar na instituição. 

Elisa está habituada com nãos. Eu apliquei para várias bolsas e faculdades americanas. E quando você faz algo assim, você tem vários nãos em sequência. Como a concorrência para o ingresso a instituições dos Estados Unidos costuma ser alta, a tão sonhada aprovação é um desafio.

O motivo da falta de um diploma se deu por causa da adoção do método homeschooling, em que o ensino é conduzido em casa. Apesar de discutido há três décadas em diferentes instâncias jurídicas brasileiras, essa modalidade de ensino não é regularizado no país. Assim, não confere o diploma a quem opta por ele. 

O que levou Elisa a adotar o método foi a desilusão com a escola tradicional. Eu e a escola não funcionava mais. A cada vez que eu me mudava de escola e não dava certo, eu ficava um pouco mais frustrada com o ensino convencional e me encantando com esses outros métodos que para mim pareciam contos de fadas. Depois do quarto diferente colégio, em meados do primeiro ano do ensino médio, Elisa decidiu deixar a realidade dos corredores e embarcar no conto do homeschooling.

Eu era aquela menina que ficava triste quando chegava o final de semana porque eu queria voltar para a escola

Elisa é apaixonada pelas artes e lutas marciais. Com falas longas, a jovem gosta de explicar em minúcias os acontecimentos. Tendo uma voz um pouco acelerada, sem dar muitas pausas para respirar, ela demonstra certa ansiedade. Em alguns momentos, insegurança. Ela precisa repetir o que acabou de dizer para garantir que conseguiu verbalizar sua ideia.

Nosso contato se estabeleceu através de uma videochamada. Elisa, usando uma camiseta preta, cabelos soltos e sentada numa cadeira modelo gamer. Seus olhos, um tanto inquietos, transitam pela tela. Ela observa as expressões dos repórteres, interage, dá risadas, responde sorrindo. Mesmo nas perguntas mais incisivas, a recém-aprovada mantém as expressões sorridentes.

Elisa Flemer ama o mundo ficcional. Para ela, a vida ganha outro sentido quando se mistura o real e a fantasia. Se pudesse fazer um pedido às fadas, viver em um mundo irreal, tal como o da Disney, seria uma das primeiras opções.

Aos 10 anos de idade, Elisa mantinha um blog. Um veículo jornalístico regional chegou a publicar uma notícia contando o caso. O jornalista, ao ter conhecimento sobre uma criança que mantinha um site com tão pouca idade, até imaginou que aquele texto seria lido por milhares de pessoas. Errou. Lembro que a única pessoa que viu [a matéria] foi o diretor da minha escola. 

Uma assídua apaixonada por matemática, filosofia e artes, nunca tirou uma nota menor do que 8. Elisa só teve dificuldades sociais no segundo ano do ensino fundamental. Ela passou meses excluída, sem amigos. Por ser aluna nova em uma turma que estava junta há meses, a sala já havia se fragmentado em grupos. A menina estava só.

Nos anos seguintes, as coisas mudaram. A garota já tinha amigos. Nos intervalos, eles conversavam, brincavam e sorriam. 

Durante boa parte de sua trajetória escolar, Elisa se sentia intimidada pelos professores. Opor-se a eles a assustava. Elisa Flemer era a síntese da crítica de Paulo Freire em “A Pedagogia do Oprimido”: um educador, detentor de todo o conhecimento e sinônimo de uma entidade divina, não dá a seus educandos o direito à voz, às reflexões e aos debates. 

Ser simpática e legal, tentar ser carismática… Isso cansa

As coisas mudaram quando ela chegou ao sétimo ano. No melhor estilo Freireano, Elisa emancipou-se. O bancarismo deu lugar à liberdade. O opressor não oprimia mais. O pássaro voou.

Foi quando Elisa Flemer percebeu que não gostava de se relacionar socialmente. Eu sabia falar, sabia agir, sabia conquistar alguém. Só que eu não gostava. A menina se cansou da interação. Gasto muita energia tentando agir corretamente. Dedico muita energia para interpretar a pessoa, ser simpática e legal, tentar ser carismática… Isso cansa. 

A garota não sabia ao certo porque se sentia assim, e chegou a fazer sessões de terapia, nas quais a psicóloga auxiliava no tratamento de sua ansiedade. Mas não havia um diagnóstico – Elisa sentia-se apenas diferente dos outros.

Quando comecei a me desencantar com a escola, fiquei preocupada

A escola foi, por muito tempo, um espaço de aparição social para Elisa. Ela era vista e reconhecida pelos colegas por conta de suas notas. Quando a professora fazia perguntas, Elisa sabia as respostas. Nos deveres de casa, todos tinham vontade de copiar as respostas da adolescente. 

A partir do momento que Elisa deixou de ser tutelada pelos seus professores, um efeito colateral surgiu. A escola já não era mais a mesma. A alegria que ela tinha para ir estudar se transformara em melancolia. A adolescente, com 13 anos, se negava a ir ao colégio.

Comecei a procurar no Google “Eu não gosto mais de escola”

Assim como um paciente procura a dosagem ideal da cloroquina na internet, como um imunossuprimido procura um chá milagroso nos sites, como um presidente procura algum deputado do Centrão para ter seu apoio no Facebook, Elisa iniciou sua busca incessante. Ela precisava saber a razão de estar assim e como resolver seu problema. Dar vários Googles era a saída.

Elisa deparou-se então com grupos que se opunham ao ensino tradicional,  sem ter certeza, no entanto, do que era ou não realmente era confiável. Entre cliques, teclas, respiro, piscadas, leituras, novos cliques, scroll down nas páginas e mais cliques, aparece em sua tela: HOMESCHOOLING.

[Métodos como o homeschooling] pareciam um conto de fadas

O que é real? Fadas existem? E o mundo encantado? Para Elisa, o mundo encantado era a realidade paralela em que a jovem poderia adotar o homeschooling como forma de estudo.

O desconforto com a escola tradicional a fez tomar uma atitude. Como na realização de um pedido feito ao gênio da lâmpada, Elisa Flemer atendeu ao seu próprio desejo: não vou mais à escola

Sua mãe, ao ser avisada, pouco fez. Até tentou alertar dos riscos, mas não se opôs. A decisão estava tomada. Era de Elisa. Não havia orientação médica, nem de seus pais. Era dela. 

Precisei estudar química três vezes para entendê-la

Elisa estudava durante o período da manhã e da tarde.

 

Ao abandonar o colégio, Elisa sentiu saudades. Quando eu saí da escola, eu estava com uma interação muito boa. Lembro que até fiquei triste, porque eu realmente tinha feito um grupo de amigos no ensino médio.

A elaboração das diretrizes educacionais brasileiras do estudo formal no Brasil se estendeu por anos. Até hoje elas são atualizadas. Elisa, por sua vez, sentia-se preparada para elaborar sua própria vida educacional. Usei como guia os cursinhos pré-vestibulares online. Sua principal forma de testar se aprendeu era realizando exercícios.

Para a maioria dos desafios que enfrentava, ela não encontrava respostas na internet. Suas técnicas pautavam-se no erro e acerto. Tudo era uma experimentação. Mudei minha rotina e meu método de estudo com o passar dos meses, eu ia testando coisas novas e falando ‘isso aqui deu errado’, então muda.

Os conteúdos de química só foram compreendidos após a jovem ter estudado três vezes, no que seria o seu terceiro ano de ensino médio. Mesmo tendo sido aprovada em uma faculdade de engenharia de seu município, a jovem não sabia química básica – conteúdo ensinado logo no primeiro ano do ensino secundário.

As escolas não estão preparadas para lidar com qualquer pessoa que desvie da média

O que a fazia ser diferente? Elisa não sabia, até receber, em março de 2020, o diagnóstico do Autismo Nível 1. Considerado um grau leve do espectro autista, a jovem entendeu que o seu comportamento “diferente” era apenas uma característica do autismo. Ou melhor, do grau leve do autismo. Aquilo preenchia muitas lacunas que ficaram abertas durante sua vida. 

O Transtorno do Espectro Autista pode estar associado à apresentação de diversos sintomas, como a sensibilidade a sons, luz e atrasos no desenvolvimento da fala. Também não é incomum que pessoas diagnosticadas dentro do espectro tenham um chamado “hiperfoco”, que as leva a dedicar maior atenção a um determinado tema, o que pode levar a pessoa a se destacar em alguma área. No caso de Elisa, isso se manifestava apenas em seu QI, de 120. A jovem tem uma inteligência acima da média. 

Se eu entrar na USP, não tem como alguém falar que eu não possa ganhar meu diploma

“Menina aprovada na USP é impedida de se matricular por falta de um diploma”. Foram muitas manchetes parecidas com essa. Acreditar que Elisa não esperava se deparar com esse problema é subestimar sua inteligência acima da média. Eu sabia que eu não poderia me matricular desde o início, por causa do edital, por causa dessa exigência que todas as faculdades brasileiras têm, mas a minha esperança era justamente que dessa vez, com o nome da USP, eu conseguisse um juiz que falasse ‘ok, ela pode ganhar o diploma dela’.

A verdade é a da USP como um sonho. O fim. Porque alguém quereria algo além disso? Eram meios de eu conseguir chegar onde eu queria. Se eu entrar na USP, não tem como alguém falar que eu não possa ganhar meu diploma. 

A escolha do curso de Engenharia Civil no Sisu foi estratégica para Elisa, que deixou claro que não tem o sonho de obter tal diploma na Universidade de São Paulo. Eu acabei escolhendo Civil no Sisu porque eu sabia que eu precisava do nome da USP para conseguir meu diploma. Mesmo assim não deu certo. 

Elisa conseguiu, no entanto, chamar a atenção para o seu caso. Seu plano era levar para a imprensa e esperar que, aos olhos da juíza, e do público, uma aprovação em um curso concorrido como Engenharia na USP significaria que o homeschooling deu certo, e que seus estudos haviam sido suficientes para lhe conferir o certificado de conclusão do ensino médio. Eu estava e estou num ponto em que eu preciso mostrar que deu certo.

Mas será que deu mesmo? Se ela tivesse passado em outro curso, não tão concorrido, mesmo que na USP, teria tido toda essa repercussão? As pessoas diriam que é um absurdo a USP não ter a deixado se matricular em História? Elisa sabia que precisava dessa aprovação para repercutir seu caso.

A publicidade veio. A história estourou no Brasil. E dessa vez, não foi só o diretor da escola que leu. Eu acordei e tinha um pessoal: ‘Você viu que a Janaína Paschoal compartilhou?’.

Tanto não era seu sonho que Elisa e sua família desistiram do processo para sua vaga na USP e a menina vai se dedicar ao sonho de estudar em uma Universidade nos Estados Unidos. Eu consegui algumas coisas muito legais, como uma bolsa para ficar uma semana no Vale do Silício… Agora Elisa espera pela chance de fazer algo diferente, algo que vai lhe dar chance de ter uma aplicação diferente, que aumente de forma significativa suas chances de uma aprovação no exterior. Isso sim é seu sonho.

Para Elisa, a USP foi só um meio para um fim que ainda não veio. Mas que está quase lá. Batendo na porta para entrar.