O luto não pertence a métricas

A morte é um fenômeno universal, mas o luto é singular 

 

por Mayara Prado

 

“Composição (figura só)”, 1930, Tarsila do Amaral. Reprodução: Acervo MASP

 

“Eu não aceitava que minha avó tinha morrido, foi muito difícil lidar. Eu fiz muita terapia para conseguir falar sobre. Eu simplesmente tentava me alienar ao máximo, não conseguia ligar a TV e ver alguém falar sobre coronavírus. Ainda hoje, eu sinto um pouco de raiva, não por ela ou pela morte, mas pela injustiça, porque a minha avó não saía de casa” – Julia Fadua

O Brasil atingiu a triste marca de 500 mil mortos pela covid-19. Como uma avalanche, a pandemia devastou uma sociedade que pensava já estar no chão. Mas, apesar da vastidão dos números, o luto pelo presente não pode ser retratado de maneira generalizada. A dor projetada em cada cidadão é única e incalculável, não pertence aos gráficos e métricas.

A respeito das particularidades do luto, a professora livre docente do Instituto de Psicologia da USP, Maria Julia Kovács, esclarece:  “Cada pessoa tem o seu processo de elaboração de perdas. Ele acontece com todos nós, mas de formas muito peculiares e singulares. São várias questões que interferem: a idade; que tipo de experiências ela já teve com morte; quais são as suas características de personalidade e quem foi a pessoa perdida”. 

Focar em nomes e vivências, pode ser mais saudável do que focar em números. “A morte em massa é algo muito difícil de elaborar psiquicamente. As mortes, para aquelas pessoas que perderam alguém, são situações de perda de entes queridos, não são milhares, não é a massa: é uma pessoa ou duas ou cinco de uma mesma família que afetam tremendamente aqueles que estão perdendo alguém”, diz a especialista.

Julia Fadua, perdeu a avó em abril de 2020 e conta: “é muito difícil porque a minha avó acabou sendo um desses números. Essa situação de ver todo mundo morrendo é uma coisa que nos deixa traumatizados. É muito traumatizante pensar que tudo que a minha família passou, tudo que eu passei, tudo que a minha avó passou, quase 500 mil pessoas também passaram. Cada vez mais parece que o luto aumenta um pouquinho, não só por ela, mas por todos que de certa forma vivenciaram isso”.

Em contrapartida, Gabriele Knudsen, que perdeu o avô em 2020 após este morrer de câncer, afirma que, ao conviver com a situação de mortes em massa, a perda de um único familiar se torna menos nociva: “eu fico um pouco mais aliviada de ter sido apenas uma pessoa que eu perdi, porque estou acompanhando tanta gente perdendo a família toda. Minha vizinha, por exemplo, perdeu avó, avô e a outra avó está em estado vegetativo. Então, eu fico mais aliviada, entre aspas, por não ter acometido tanto a minha família”.

O futuro no aguardo

A perda de um ente querido se manifesta em cada pessoa como uma cascata. Não existem etapas pré-determinadas de luto, cada pessoa reage de maneira diferente. No entanto, o único processo certo é a passagem de tempo. O futuro é inevitável para aqueles que vivem enlutados. 

Fernanda Souza perdeu o avô, que já tinha problemas de saúde anteriores, em janeiro deste ano para a covid-19 e comenta: “Meu avô sempre foi meu melhor amigo. Minha maior dificuldade não é pelo agora pois eu tenho a plena convicção de que foi muito melhor para ele, que sofria tanto mas sim em pensar no futuro. Quando eu me formar, no [curso] que ele sempre me apoiou, ele não vai estar lá; quando eu casar, ele não vai me ver de noiva”. 

Gabriele também compartilha do mesmo pensamento: “me formo daqui dois anos, o mais triste para mim é que ele não vai estar aqui para a minha formatura. Quando ainda estava internado, um pouco antes dele piorar, a gente conversava sobre isso, que ele ia ficar bom e que iríamos beber juntos na minha formatura”. 

A passagem de tempo como amiga

Pensar sobre o futuro pode ser bastante doloroso, mas a passagem de tempo é vital para o processo de cura. “Hoje em dia, eu tento pensar nos momentos bons com minha avó: tento pegar vídeos antigos meu e dela, tento colocar na minha cabeça tudo de bom que ela representou para mim, de forma que eu consiga ter uma imagem boa dela. Porque eu a imagino hoje e não penso em nada do que estava sentindo antes, não imagino dor, nem raiva”, declara Julia.

“No começo afetou muito, eu não queria falar com as pessoas ao meu redor, e queria ficar mais quieta no meu cantinho. Hoje em dia, eu valorizo mais as pessoas que estão ao meu lado, principalmente a minha avó. Qualquer oportunidade de estar com ela, eu estou. Acho que perdi um pouco o medo de demonstrar os sentimentos e conversar sobre coisas que me incomodam. Tento valorizar cada momento que tenho com as pessoas” – Fernanda Souza

Não existe manual para lidar com o luto e muito menos para se adaptar à pandemia e suas perdas. No banco de dados as pessoas são apenas números. Mas para quem lida com a morte de um ente querido, a morte representa o encerramento de uma vivência compartilhada e o início de um futuro que deve conviver com a perda.