A filha vira passarinho e quer voar, mas não pode

 

por Mayara Prado

Imagem: Mayara Prado

 

Era dezembro de 2019 e a trilha sonora oficial do nosso apartamento era “No dia em que saí de casa”, de Zezé di Camargo e Luciano. 

Como prefácio de uma tragédia, eu havia dito:

Mãe, agora você vai ter que se acostumar com minha ausência! Eu vou começar a trabalhar no próximo ano e não vou poder ir para Belo Horizonte durante as férias, provavelmente nós nos veremos somente no Natal.

Odete, conhecida como minha mãe, ficou arrasada. Não queria ficar mais de 300 dias sem me ver.  Afinal, desde os primórdios, sempre fomos nós duas. Meu pai morreu quando eu tinha um ano e ela me criou sozinha. Sem irmãos, sem padrastos ou até mesmo visitas. Somente nós. 

No dia em que eu saí de casa
Minha mãe me disse: filho, vem cá
Passou a mão em meus cabelos
Olhou em meus olhos, começou falar
Por onde você for eu sigo
Com meu pensamento sempre onde estiver

Quando anunciei em janeiro daquele mesmo ano que iria estudar na USP e me mudar para São Paulo, ela odiou. Quando saiu o resultado da Fuvest, ela nem me deu parabéns. As duas choravam, mas por motivos diferentes. Eu de alegria, ela de luto. 

Eu fui o foco de sua vida durante 19 anos. Ela ficou perdida com minha partida, não sabia o que fazer durante o ano letivo, não sabia como existir sem ser como mãe. E eu, apesar da animação, não sabia como viver sem ser filha. 

Eu bem queria continuar ali
Mas o destino quis me contrariar
E o olhar de minha mãe na porta
Eu deixei chorando a me abençoar

Mas, como tudo na vida, nós tivemos que aprender a viver separadas. A distância nos fez bem e nosso convívio ficou até mais bonito. Transformamos com sucesso as identidades mãe e filha, em cargos de verão. Responsabilidades belas e ardentes, mas com prazo de validade. 

Ou ao menos foi o que pensamos. 2020 trouxe o meu desejado emprego e junto com ele o apocalipse. O retorno do Natal foi adiantado para a Páscoa e a data de validade da nossa convivência era desconhecida. 

Estávamos de volta ao mesmo apartamento com a convivência de mãe e filha. Porém, aquela rotina já não nos servia mais. Odete havia criado novos hábitos: gostava de dormir a tarde em paz, de ter a casa sempre arrumada e sair com sua amiga Regina toda quinta-feira. Do outro lado, eu amava a loucura de São Paulo, a liberdade de viver sozinha e minha QiB às quintas.

A verdade é que a franquia De volta para o passado não é divertida. As coisas podem até parecer as mesmas, mas não estão em sintonia e as lembranças do que já foi entram em conflito com as mudanças do presente. 

Queria eu amar habitar no passado distópico que se tornou nosso lar. Mas como uma peça errada do quebra-cabeça, mesmo com toda a força de vontade do mundo, as coisas não encaixam. Os fatos estão bagunçados e aquele não é mais o meu lugar.

Eu sei que ela nunca compreendeu
Os meus motivos de sair de lá
Mas ela sabe que depois que cresce
O filho vira passarinho e quer voar

É Zezé Di Camargo e Luciano, eu não voei… Como uma galinha, bati as asas por um minuto e logo retornei. 

Creio que o sofrimento de minha mãe não é só o de perder a própria liberdade. Ela também sofre pela minha perda. Toda mãe sabe que o filho nasce para voar e que a sua saída é necessária. Mas nenhuma mãe é treinada para ver o filho cair. 

O voo frustrado machuca principalmente aquela que me ensinou a voar.