“Cala a boca, não te perguntei nada!”

 

por Suzana Correa-Petropouleas

Foto: Fotos Públicas/Alan Santos/PR

 

Um monitoramento da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) no último ano mostrou que, de fevereiro a outubro, os jornalistas brasileiros foram agraciados com uma média de 33 ataques por mês advindos do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido). Os ataques, ofensas e xingamentos são diários  eventualmente, mais de uma vez ao dia  e incluem desde pronunciamentos que questionam a integridade e atribuem inverdades à imprensa a xingamentos pessoais esdrúxulos. 

“Você tem uma cara de homossexual terrível”, “Cala a boca. Vocês são uns canalhas”, “você não tem capacidade para entender?”, “você é um mentiroso”, “Cala a boca, não te perguntei nada!”, “Deixa de ser idiota”, “você não tem moral de perguntar nada”, “está falando da sua mãe?”, “É uma quadrúpede”, são algumas das frases direcionadas publicamente pelo presidente a repórteres no exercício da profissão, nos últimos meses. No último rompante, em 25 de junho, Bolsonaro humilhou jornalista ao ser questionado sobre o escândalo das vacinas. “Volta para o jardim de infância”, esbravejou. 

Escolas de Jornalismo não costumam preparar seus pupilos para uma rotina de xingamentos oriundos do mandatário da nação, e tampouco para a cobertura de grandes pandemias sanitárias. No entanto, essa se tornou a realidade de jovens e experientes profissionais da área em 2020 e neste ano. 

Aos estudantes de Jornalismo da USP que tocam este JC, esses desafios são familiares. A nós foi concedida a tarefa de relatar as dolorosas mortes de membros da comunidade, as dificuldades do ensino remoto e as inovações e esforços de pesquisadores e alunos de uma das universidades mais importantes da América Latina no combate à pandemia. Tarefa importante, mas também árdua.

Erramos, aprendemos com os erros e seguimos fazendo enquanto aprendemos. Não podemos parar. Nem mesmo quando questionamos a escolha por uma profissão em que ofensas e humilhações diárias dos colegas não são apenas legitimadas pelo chefe do Executivo, mas promovidas ativamente por ele. 

A violência contra jornalistas, no entanto, não é novidade ou fruto exclusivo da ascensão do bolsonarismo nos anos 2010. Um relatório da Fenaj de 2014 para a Comissão da Memória e Verdade da instituição relata 50 casos de jornalistas perseguidos, desaparecidos ou mortos durante a ditadura militar, especialmente entre 1964 e 1983. O mais emblemático foi  Vladimir Herzog, mas não o único.

Jornalistas eram vigiados, demitidos, perseguidos, calados e ameaçados. E continuam sendo. Hoje,  as agressões são perpetradas por Bolsonaro e outros herdeiros e saudosistas do regime ditatorial que se sentem à vontade, inclusive, para exaltar publicamente torturadores da época como Ustra.

Aos desafios atuais de reportar uma pandemia em meio ao governo Bolsonaro soma-se um cenário de múltiplas crises que afetam o jornalismo: falta dinheiro, faltam vagas mesmo para os profissionais mais qualificados, faltam leitores. 

Uma rápida análise dos números internos de audiência dos maiores jornais do país mostra que o interesse do público é avassaladoramente maior em pautas que espetacularizam e mobilizam o ódio e choque sobretudo relacionadas a criminosos e crimes notáveis. É o casos da cobertura recente sobre o infanticídio do menino Henry Borel, cuja autoria é atribuída ao padrasto, médico e vereador, e à própria mãe; bem como da busca pelo latrocida Lázaro de Sousa, cuja fuga e captura ganharam ampla e exaustiva cobertura televisiva.

Até mesmo notícias que contavam os próximos capítulos de novelas que foram reprisadas na pandemia —pasmem — lideraram a audiência no último ano, em detrimento de coberturas trabalhosas sobre o vírus, a crise econômica ou os direitos humanos violados no período. 

O cenário é desanimador, mas o  baixo interesse do leitor não é o único responsável. Há uma crise de credibilidade de grandes veículos, vistos por muitos ex-leitores como grandes corporações a serviço de interesses próprios. Os pequenos também padecem de falta de investimento. Profissionais do meio reclamam da baixa disposição dos consumidores em pagar por notícias, enquanto outros defendem a necessidade de gratuidade de notícias numa República infestada por fake news que circulam de graça. Não há consenso ou maioria. 

Houve, no entanto, uma maioria de quase 58 milhões de brasileiros nas urnas de 2018 que elegeram como presidente um deputado cujo desprezo pela imprensa, ciência e direitos humanos já era notório. Mas limitar o bolsonarismo à figura individual de Bolsonaro é um erro. A crise civilizatória em nosso país é profunda. Uma rápida pesquisa online atesta o óbvio: para cada frase absurda de Bolsonaro, outras dez são proferidas por brasileiros que pensam o mesmo. “Repórter tem que apanhar mesmo”, “jornazistas”, “bandido bom é bandido morto” são alguns dos exemplos encontrados na web. 

Por aqui, seguimos aprendendo a fazer notícia para servir o interesse público da comunidade uspiana e de nosso país em tempos tão turbulentos, apesar dos desafios. Por óbvio, insistimos no jornalismo como ferramenta essencial da democracia. Insistimos na defesa dos direitos humanos, dos mais vulneráveis, da transparência e da informação. E seguiremos insistindo. Nenhum xingamento ou ofensa contra jornalistas mudará isso.