De volta à rua

Entre a apreensão com o vírus e a ansiedade pelos reencontros, brasileiras contam como está sendo a flexibilização do lockdown em suas cidades de residência

 

por Ana Beatriz Garcia

Fabiane e colegas em Zurique, em maio de 2021. Foto: Fabiane Midori/Arquivo pessoal

 

Estudar, trabalhar, cuidar da casa e das atividades habituais, cuidar dos filhos, conviver com amigos, viajar vez ou outra para lugares novos. É assim a rotina de boa parte dos brasileiros de classe média que vivem uma vida já estabelecida fora do país. Ou pelo menos era, até 2020, quando a epidemia da COVID-19 instaurou uma preocupação global com questões como distanciamento social, testagens, ocupação de leitos e taxas diárias de morte.

A pandemia modificou, desde o início do ano de 2020, os hábitos de pessoas em todos os cantos do planeta, levando governos a adotarem estratégias para conter o avanço do vírus e evitar que a situação da saúde saísse do controle. Isso fez com que a população, em maior ou menor medida, tivesse que sacrificar certas atividades temporariamente para que fosse possível essa contenção.

Em meio a primeiras, segundas e terceiras “ondas” e o “abre e fecha” que se tornou comum em quase todo lugar, decorrido quase um ano e meio dos primeiros casos se tornarem pauta mundialmente importante, a vacinação avança com velocidades e alcances diversos em localidades diferentes, e as administrações de cidades, estados e países estabelecem regramentos que, espera-se, serão mais definitivos na direção de uma “normalização” da vida cotidiana.

“Eu confio nas recomendações [referentes à reabertura], porque em relação às orientações do Governo eu tenho a impressão de que a Suíça tem desde o princípio feito uma campanha muito boa sobre o que realmente a gente tinha que fazer”, diz Fabiane Midori Nakagawa, moradora de Berna desde 2019. As diretrizes específicas e bastante discutidas na esfera pública proporcionaram à advogada um sentimento de que seria possível e segura a flexibilização na medida autorizada pelo Conselho Federal suíço. “Eu sempre respeitei e segui até mesmo a limitação de número de pessoas que você pode encontrar. No começo diziam ‘evite todo contato’, então não encontrávamos ninguém. Depois passou para coisas como ‘encontros de até cinco pessoas em áreas externas’, e hoje em dia há orientações para tudo: festas privadas, eventos comerciais e culturais”.

A estratégia robusta de comunicação também foi apontada por Paula Davoglio, moradora da Cidade do México, como uma fonte de segurança no momento da reabertura. “O que o governo do México fez foi criar desde o começo um programa público, das sete às oito, transmitido pelos canais como o momento de o estado dar informações sobre a COVID. E acho que foi bom, as pessoas tinham mais informação.

Aqui, no geral, as pessoas estavam mais informadas. Inclusive criaram uma estratégia de comunicação maravilhosa que era a Susana Distancia, uma super-heroína com os braços abertos”, complementa, sobre a maneira utilizada pelo governo para tornar a difusão de informações sobre o distanciamento social com maior efetividade. O nome Susana Distancia é um trocadilho com “su sana distancia”, a distância segura a se manter em relação às outras pessoas representada pelos braços abertos.

Susana Distancia, super-heroína criada pelo governo mexicano para alertar sobre a importância do distanciamento social. Reprodução.

 

A estratégia de testagem em massa de alguns países também foi um recurso que deu mais segurança para as pessoas se engajarem em novas rotinas de reabertura. Foi o caso de Luxemburgo, como relata Kauyne Parise, engenheira brasileira residente no país desde 2018. “Aqui a gente sempre teve um pouco mais de tranquilidade porque eles fizeram testes de larga escala, a gente recebia com frequência convites para fazer o teste de PCR. Eu e os meus amigos estávamos nos testando quase que a cada três semanas”.

Na universidade em que Kauyne estuda também foram distribuídos kits de testes rápidos, com a possibilidade de pedir mais testes na farmácia. A medida também foi adotada para a população em geral, pela prefeitura de Luxemburgo.

Os testes têm tido um papel importante também na reabertura de espaços de lazer, como bares e casas noturnas. “Desde sábado (26 de junho) houve uma nova flexibilização, praticamente tudo agora está aberto, mas todos os estabelecimentos têm que ter um sistema de segurança que permita que a higiene seja respeitada, mas em bares e baladas foi decretado que você só pode entrar com certificado COVID, que é um sistema de QR-Code que mostra que a pessoa já foi vacinada com as duas doses ou já teve COVID e sarou nos últimos seis meses, ou que ela fez um teste com resultado negativo nas últimas setenta e duas horas”, relata Fabiane sobre a situação de Berna, Suíça.

Protocolo semelhante foi adotado em Luxemburgo. “Em bares e baladas, pediam os testes na entrada, ou você fazia lá na porta – se você não tivesse um teste de laboratório, eles te forneciam um teste para você fazer na hora”, conta Kauyne. Esse protocolo, no entanto, não foi suficiente para que ela se sinta segura para ir em festas ainda. “Não sei bem como está funcionando agora, porque eu não fui. Tenho medo”.

O receio também existe ainda para Melissa Machuca, residente de Madri desde 2014, que acredita ainda ser cedo para retomar algumas atividades do pré-pandemia. “Eu me sinto apreensiva, acredito que deveríamos aguardar mais tempo, até que os jovens sejam vacinados. Tenho receio pelos rebotes que já estão acontecendo em Mallorca e pelas variantes que estão aparecendo em outros países. É um vírus tão potente e perigoso que acredito não estarmos seguros em lugar algum”.

Apesar dos avanços nas reaberturas, os limites de lotação estão presentes em quase todos os relatos. É o que conta Marcela Scota, designer brasileira que se mudou para Kilkenny, na Irlanda, em agosto de 2020, já em meio à pandemia. “Agora, na fase pós-segundo lockdown, a maior mudança é a reabertura do comércio e dos bares e restaurantes, mas ainda com restrição de número de pessoas”. A reabertura, porém, continua sendo gradual: “sinto que o governo tem a preocupação de prevenir mais ondas de contágio, e acho sensato eles não saírem reabrindo tudo, mesmo não agradando muito a população e os donos de estabelecimentos”.

As atividades ao ar livre representaram, nos meses de flexibilização em meio ao verão de 2020, um respiro para viabilizar encontros com menor risco de contaminação. É o que relata Ana Laura Zuanazzi, que morou em Mettmann, região de Dusseldorf, Alemanha, durante o primeiro ano da pandemia. “O verão [de 2020] foi tranquilo, a gente fazia muito piquenique para estar junto”. O mau tempo, no entanto, não permitiu que a experiência se repetisse em 2021. “O inverno desse ano foi muito longo, o verão está muito, muito ameno. Então, a gente teve inverno até começo de junho, o que fez com que as pessoas não pudessem estar em lugares que pudessem abrir no lado de fora. Estava muito frio, chovendo, vento, então acabamos ficando muito tempo em lockdown”.

Para Marcela, tais atividades também se mostraram uma opção em Kilkenny, embora a previsão do tempo também seja uma questão. “Por vários meses, restaurante era só por delivery e o comércio estava fechado. Passeios ao ar livre eram as únicas opções – e ainda são minha opção preferida. Só a chuva aqui que estraga um pouco os planos”.

Jovens se reúnem na pista de skate em Kilkenny. Foto: Marcela Scota/Arquivo pessoal.

 

As restrições de número de pessoas acabam por ocasionar certa demora para atividades como realizar compras no mercado, já que  obriga a espera da liberação da entrada em filas no exterior dos estabelecimentos. É o que relatam Fabiane e Kauyne. Melissa, no entanto, passou a optar por realizar compras on-line, por se sentir mais segura. “Madri não era uma cidade tão dependente de serviços de entrega, hoje aumentou muito. Mercados e restaurantes se adequaram ao sistema de delivery. Eu mesma, muitas vezes compro on-line pelo mercado – isso foi depois da pandemia, nunca havia feito isso antes”.

Com relação aos estudos, enquanto as universidades se adequaram ao ensino remoto, as medidas com relação ao ensino de crianças e jovens variou. Para Melissa, mãe de Eduardo, 10 anos, e Felipe, 5 anos, o ensino presencial, que foi retomado em Madri, causou certo receio, mas foi lido como positivo. “Todos ficamos muito apreensivos e com medo de contaminação. Mas acredito que [a retomada do ensino presencial] foi necessária para o desenvolvimento e bem estar das crianças. Ficar trancados e sem contato com outras crianças foi muito complicado, principalmente para o mais novo. Ele sentia muita falta de interagir”.

Feira na Plaza Mayor de Chinchón, município próximo a Madri. Foto: Melissa Machuca/Arquivo pessoal.

 

Em outras localidades, as medidas com relação às escolas variaram. Em Luxemburgo, por exemplo, foram mantidas abertas, mesmo nos períodos de lockdown. “Eles sempre priorizaram as escolas, a educação. Enquanto os bares, restaurantes, até o comércio mesmo, ficaram fechados por um tempo, eu achei interessante que a educação nunca parou, as crianças continuaram indo para a escola, exceto as primeiras três semanas em março [de 2020]”, conta Kauyne.

Já em Düsseldorf, a maior parte das crianças foi mantida em casa, por meio do ensino remoto. “Aqui, as crianças que tinham pais que trabalhavam em atividades essenciais tinham a prerrogativa de ir para a escola. Os outros foram levados para casa”, relata Ana Laura.

Para quem teve a possibilidade de trabalhar remotamente durante os momentos mais graves da pandemia, chega agora um momento de indefinição. Se alguns empregadores autorizam que os funcionários trabalhem de casa até a vacinação atingir percentuais mais altos da população, outros têm mais pressa na retomada das atividades presenciais. É o caso do chefe de Fabiane. “Agora já existe a possibilidade de no futuro depois da pandemia a pessoa trabalhar uma parte em home office. É uma coisa que no nosso ofício sempre foi muito tabu, porque o chefe não gosta, mas foi decretada [essa possibilidade] na Administração Federal, então agora o que manda é essa diretiva”.

Ela não pensa, no entanto, em ficar em uma rotina de trabalho parcialmente remota. “A maioria das pessoas quer fazer pelo menos um dia de home office. Eu falei que eu não queria, você perde o contato com os colegas, você fica o tempo todo em uma posição não muito confortável, porque, não é tão ergonômico quanto um escritório. Não é a mesma coisa, eu prefiro realmente ir, eu moro perto. Eu não sinto medo, porque eu sei que as pessoas são educadas e na minha equipe estão todas vacinadas”.

Melissa, que é secretária e assistente administrativa em uma empresa de tecnologia, relata que as mudanças devem ocorrer a partir do final do mês. “Na minha empresa podemos fazer home office, mas muitas empresas já estão trabalhando presencial alguns dias na semana. A partir de agosto a maioria irá trabalhar presencialmente pelo menos 50%. Eu vou alguns dias por mês, e estou tranquila quanto a isto”.

Outros tipos de atividade não permitiram o trabalho totalmente remoto, como conta Kauyne, que trabalhou em uma empresa de engenharia. “Quando eu estava trabalhando no escritório, eu fazia home office alguns dias. Em outros dias eu ia, porque eu ia para a obra. Mas muita gente tem trabalhado de casa”.

O uso obrigatório de máscaras é apontado como um fator importante para garantir a tranquilidade nessas situações em que sair de casa se mostra necessário – e num momento em que as ruas já estão bem mais movimentadas do que durante períodos de maior restrição de circulação.

Paula aproveitou o regime de home office para passar uma semana trabalhando de Oaxaca. Na foto, Monte Albán, um importante sítio arqueológico da região. Foto: Paula Davoglio/Arquivo pessoal.

 

“Já não me sinto tão insegura. O uso de máscaras foi obrigatório, continua sendo. No meu bairro eu vejo bastante [pessoas usando máscara], menos as pessoas fazendo exercício, correndo, aí não. Mas, no geral, no supermercado, especialmente em lugar fechado, todo mundo usa”, relata Paula sobre a situação na Cidade do México.

Em ambientes como transporte coletivo, o uso da máscara parece representar um fator indispensável para que as pessoas se sintam confortáveis com a retomada de sua utilização. Alguns lugares, inclusive, determinaram o uso de máscaras específicas, como na Alemanha, como relata Ana Laura. “Dentro de transporte público só [se pode usar] aquela máscara [PFF2], a mais segura. Eu, inclusive, só tinha essa máscara, porque era a única que você podia andar nos transportes, desde janeiro”. Ainda assim, há quem não respeite as recomendações, causando incômodo. “A pessoa que não usa máscara, ou usa máscara no nariz… Dá muita raiva. Eu me sinto muito mais exposta quando a pessoa não tá nem aí. Mas a maioria das pessoas respeita”.

A “máscara no nariz” também é um problema relatado por Melissa, e que causa grande desconforto. “Aqui [em Madri] o uso da máscara é obrigatório em locais fechados. A maioria está usando de maneira correta, mas outro dia tive que usar o metrô e tanto na ida quanto na volta sentaram ao meu lado com o nariz para fora. Eu me senti insegura, mudei de lugar”.

Como é possível imaginar, a gradual reabertura, em todo lugar, demandará certos cuidados e comprometimento coletivo, além de orientações efetivas e confiáveis das autoridades, para que se dê em segurança. Mas embora a “vida de antes” ainda pareça um tanto distante, se aproximam as possibilidades de aproveitar pequenas coisas que relembrem a normalidade da época pré-pandemia.