“Deixei-me conduzir pela invenção e pela imaginação”

Bernardo Kucinski fala sobre seu novo livro “A cicatriz e outras memórias”, em que busca deixar um legado aos interessados em sua produção como contista, e sua vocação para a ficção

 

por Bruno Militão

Colagem: Bruno Militão/Fotos: Marcos Santos/Jornal da USP

 

Em 2021, completam-se dez anos do lançamento do romance K. Relato de uma busca e, portanto, dez anos da estreia na ficção de B. Kucinski, assinatura literária de Bernardo Kucinski. Considerado um dos mais importantes nomes da prosa brasileira contemporânea, ele atuou anteriormente como jornalista e, por mais de duas décadas, foi professor da ECA, onde defendeu livre-docência e se aposentou como professor titular. 

Jornalista desde meados dos anos 1960, passou por redações nacionais, como Veja, Gazeta Mercantil, Exame e Carta Maior, e internacionais, como BBC e The Guardian, da qual foi correspondente. Ele também participou de diversos jornais alternativos, tema de sua tese de doutorado, transformada no livro Jornalistas e Revolucionários: Nos tempos da imprensa alternativa, lançado pela Edusp. Entre 2003 e 2006 foi Assessor Especial da Secretaria de Comunicação Social (SECOM) da Presidência da República. 

Desde o primeiro romance de ficção, lançou obras como Os Visitantes e Pretérito Imperfeito, além de Você vai voltar pra mim, livro de contos. Neste ano, lança a coletânea A cicatriz e outras histórias – (Quase) todos os contos de B. Kucinski, apresentando contos de obras passadas e textos inéditos. 

Confira a entrevista dada por Kucinski ao JC, na qual falou sobre o lançamento do livro, seu processo de escrita, e os trabalhos, hoje deixados de lado, como jornalista e professor. 

O lançamento de A cicatriz e outras histórias marca os dez anos da sua incursão pela literatura. O livro apresenta os contos de Você vai voltar pra mim, além de quase todos os contos lançados pelo senhor. Há, além desses, contos inéditos? A reunião dos contos e lançamento em um volume já era pensada há bastante tempo?

Metade dos contos são inéditos. A reunião de todos ou quase todos num só volume e a inclusão dos que já haviam sido publicados em Você Vai Voltar Pra Mim se deve à minha intenção de deixar um legado pronto e acabado aos interessados na minha produção de contista. Afinal, já estou beirando os 83 anos de idade…

O livro é dividido em cinco partes: Histórias dos anos de chumbo; Instantâneos; Outras histórias; Kafkianas; e Judaicas. Como foi pensada essa divisão? Foi levando em conta os livros lançados anteriormente, ou tematicamente?

Como são cerca de uma centena de contos, alguns curtos outros longos e sobre  temas diversos, achamos, eu e meus editores, que uma separação em grupos por tema ou forma facilitaria a leitura. Entretanto, boa parte da classificação é arbitrária. 

Desde a publicação de K. Relato de uma busca, há dez anos, o senhor continua escrevendo e lançando livros.  Como o senhor se inspira para escrever? Tem uma rotina de escrita?

Não tenho uma rotina. Costumo levar comigo uma caderneta de bolso na qual anoto incidentes ou episódios que me contam. Em geral, meus contos se desenvolvem a partir de um episódio isolado. Tento imaginar como se deu, por que se deu, e vou inventando com facilidade, valendo-me de minha própria experiência de vida, de recordações, conhecimentos etc.

Neste período de isolamento, como tem sido essa criação? Tem escrito menos? Já tem mais produções a caminho?

Sim, tenho escrito bem menos. No momento, trabalho num adendo à  minha novela A Nova Ordem, para ser acrescentado em uma nova edição. O adendo introduz a pandemia do coronavírus na Nova Ordem. Depois disso retomarei um manuscrito que já está pronto há tempos, para uma última revisão.

Em uma entrevista à época do lançamento de Os Visitantes, o senhor disse que abandonou as histórias sobre os outros (em referência à produção jornalística) para escrever “no tempo curto útil que resta” aquilo que só você pode escrever.  O que levou a esse caminho? Houve algum estopim que levou o senhor à literatura? Como tem sido o caminho de escrever o que outros não podem escrever por você? O senhor já conseguiu falar sobre tudo o que queria em relação a si mesmo?

Juntaram-se num mesmo momento o enfado e a desilusão com o jornalismo, a aposentadoria compulsória da USP e a saída do governo Lula, onde eu estava emprestado como assessor da Presidência. Nesse vazio comecei a escrever um folhetim satírico quase como um divertimento. Saiu com facilidade (Mataram o Presidente). 

Gostei e me pus a escrever uma novela policial ambientada na USP que também saiu com facilidade (Alice). A partir daí decidi nunca mais fazer jornalismo e me dedicar à ficção. Ruptura total.

Apesar da incursão na literatura de ficção, podemos dizer que há traços autorais na obra do senhor – especialmente em relação a temas delicados e pessoais, como dos primeiros romances. O senhor classificaria as obras com traços autorais como autoficção?  Mesmo em textos que se distanciam desses traços autorais, acha que os fatos da vida acabam resvalando e chegando à obra? 

Três dos meus livros de ficção poderiam ser classificados como autoficção: K., Os visitantes e Pretérito Imperfeito. São fortemente autobiográficos porém são  trabalhados como ficção. 

Deixei-me conduzir pela  invenção e pela imaginação. Também não procurei  rigor factual , nem na cronologia, nem na denominação de personagens, ou  eventuais relações de causalidade. Eu diria que é ficção derivada  de experiências de vida. Cabe aos especialistas em teoria literária dizer se é autoficção. Rótulos e classificações nem sempre servem para elucidação.

Foto: Marcos Santos/Jornal da USP


O senhor chegou à ECA como professor em 1986, de assistente à titularidade, depois de anos trabalhando como jornalista profissional. Como foi esse processo de, além de ser jornalista, passar a ensinar jornalismo? O senhor já havia pensado em dar aulas? Adaptou-se bem à nova carreira?

Eu entrei na ECA porque tinha me complicado tanto no mercado de trabalho e estava tão marcado com intransigente e mesmo “briguento”, que nenhum veículo da grande imprensa me chamava para trabalhar, a despeito de também ter a imagem de competente. 

Naquele momento específico, eu tinha acabado de brigar com a redação da Ciência Hoje. Foi quando vi no sindicato o anúncio de um processo seletivo para professor na ECA. Arrisquei e fiquei em segundo lugar. A Cremilda Medina ficou em primeiro. Ainda assim, logo depois me chamaram. 

Não tive nenhum problema em virar professor. Foi quase uma segunda vocação, creio. Principalmente porque eu tinha convicções muito claras sobre o papel do jornalismo. E tinha uma proposta pedagógica também muito clara, a da formação do aluno através de desafios de reportagens e  confrontos com os sistemas de poder de modo a robustecer seu espírito de independência e sua visão crítica. Isso tornou o ensinar fácil. Criamos mesmo uma mística através do Jornal do Campus.

A que se deveu isso? 

A denúncia dos Marajás da USP, entre outros furos de reportagem, criou um espírito de corpo entre os alunos; houve também muita tensão. Passou a ser um jornalismo “para valer” e não apenas como exercício de classe. Tanto assim, que a Reitoria se viu obrigada a lançar seu próprio jornal para se contrapor ao Jornal do Campus, e foi assim que nasceu o Jornal da USP.

O livro Jornalistas e revolucionários é uma grande referência não só para os estudos da imprensa alternativa como do próprio jornalismo. Como foi o processo de pesquisa?

O livro resulta da tese de doutorado. E a tese de doutorado resulta dos conselhos de professores amigos de que, enquanto eu não tivesse doutorado, eu não teria  cidadania acadêmica e poderia ser demitido por um nada. Mesmo porque, dirigindo o Jornal do Campus, havíamos comprado grandes brigas com o sistema, sendo a maior delas a denúncia dos “marajás” da USP, professores que recebiam salários muito acima da média dos demais.

A  tese em si foi sendo escrita aos tropeços, com base principalmente das coleções de jornais alternativos que eu possuía, pois havia trabalhado na maioria deles. Como em toda tese, começou com alguns pressupostos ou hipóteses e terminou com outros. Na segunda edição da Edusp, modifiquei certas ênfases.

O trabalho como jornalista profissional ajudou nos trabalhos de docência e gestão? E o período como professor, tem alguma influência na escrita hoje?

Sim, o trabalho como jornalista, especialmente como correspondente de veículos do exterior, que nunca deixei de exercer, em paralelo às minhas outras atividades, foi crucial na minha visão e concepção de jornalismo. Quanto à gestão, minha atuação era limitada. Possuía e propunha boas idéias, mas carecia de capacidade ou paciência para articular suas implementações.

O senhor viveu as décadas de 60, 70 e 80, na ditadura, como jornalista, tanto no Brasil quanto na Inglaterra, tendo feito parte inclusive de jornais alternativos. Naquela época, havia uma censura instaurada e institucionalizada. Hoje, alguns jornais parecem censurar suas próprias publicações. Apesar disso, o senhor ainda enxerga um bom caminho para o jornalismo? Que conselhos o senhor daria aos jornalistas e aos estudantes de jornalismo – especialmente do JC – hoje? 

Vou me abster de responder essa pergunta. A  comunicação e com ela o jornalismo estão passando por uma revolução que destruiu todos os fundamentos do jornalismo tradicional – e o processo ainda está em curso. 

Aos estudantes que estão  se formando eu sugeriria que  procurem se robustecer intelectualmente e não “vender a alma ao demo”. O que não é fácil num mundo mercadológico. Aos que estão começando, eu sugeriria repensarem enquanto é tempo: biologia, medicina, veterinária, física, as artes, qualquer dessas áreas é melhor. Sorry. É um conselho que eu daria a um filho meu.

A cicatriz e outras histórias: (Quase) todos os contos de B. Kucinski
Bernardo Kucinski
Alameda Editorial
452 páginas
R$ 84
2021