Economia na prática: conheça os coletivos de economia popular nascidos na FEA

Levando a economia para o cotidiano das pessoas, esses movimentos estão presentes em vários estados do Brasil

 

 

por Laura Toyama e Marina Caiado

Arte: Marina Caiado/Fotos: Pixabay

  

O debate econômico dentro das universidades sofre críticas há tempos por ser inacessível e pelo seu viés elitizado. Pensando em subverter essa lógica, grupos de alunos da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP se mobilizaram para criar coletivos que buscam aproximar a economia à população de fora da academia e do meio econômico tradicional. 

Idealizados por alunos do instituto, os coletivos Desajuste e Arroz, Feijão e Economia contam hoje com perfis nas redes sociais com mais de 2 mil seguidores e abrangência interestadual, para além dos muros da USP. Mesmo em meio à pandemia, promoveram atividades como ciclos de debates, trabalho comunitário, assessoria econômica, formações e fóruns que dialogam com faculdades de economia de universidades públicas como a Unicamp, UFMG e UFRJ, além de organizações políticas populares.

Para explicar as motivações e as estratégias por trás da construção de um debate econômico mais popular, essa reportagem conversou com representantes dos dois coletivos.

Desajuste: Economia fora da curva

O coletivo Desajuste nasceu no final de 2019, fruto da vontade de um grupo de alunos de economia da FEA de ampliar o debate sobre o tema para uma perspectiva mais progressista e jovem. Ao perceberem como a imprensa e a academia apresentavam muitos conceitos de interesse público a partir de uma perspectiva teórica de uma minoria academicista e conservadora, decidiram agir. 

Esse foi apenas o embrião do projeto, que hoje já se expandiu para cerca de 20 estados brasileiros. “Atualmente a coordenação conta com pessoas de Brasília, do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais e de Pernambuco, entre outros lugares”, conta Ana Garcia, aluna do quinto ano de economia e uma das coordenadoras do coletivo.

A ideia principal, segundo Ana, se dividiu em dois pilares: o primeiro é a desconstrução da imagem do “economista tipicamente branco e faria limer”, relata. Para ela, é preciso mostrar que muitos dos conceitos discutidos por uma elite intelectual restrita, na realidade, afetam diretamente a vida da população e, portanto, é imprescindível chamá-los à mesa para debater. 

O segundo pilar é a disputa dos espaços de debate contra a academia, que foca em temas mais abstratos e que estão pouco alinhados com a realidade da população, no geral. Grande parte das discussões não acontecem para a maioria, o que dificulta sua compreensão da realidade financeira nos âmbitos pessoal e nacional , além de limitarem a pluralidade das abordagens das ciências econômicas.

Dentro do Desajuste há muitas frentes para tocar projetos, tanto para economistas quanto para estudantes de outras áreas. Há os chamados grupos de trabalho (GTs), focados em estudo de temas específicos, reuniões de formação e espaços de debate de conjuntura.

 As atividades mais recentes do coletivo consistem na produção de uma newsletter, clipping semanal com notícias sobre economia, espaço de integração entre estudantes, conteúdos para as redes sociais e um clube do livro. Neste último, promoveram uma leitura conjunta do livro  “Economia Pós-Pandemia”, lançado por um grupo de docentes. O clube teve centenas de inscritos e alguns dos autores participaram dos encontros, como Rodrigo Orair, Pedro Rossi, Guilherme Mello e Camila Gramkow, todos integrantes de uma nova geração de economistas progressistas.

Um dos encontros virtuais do clube do livro, com o economista Pedro Rossi. Reprodução: Ana Garcia

 

Outro projeto do grupo é o “Dicionário de Economês”, uma série de posts no instagram do coletivo no qual explicam conceitos mais complexos de economia. “O dicionário começou porque oferecemos na FEA um mini curso de economia pós-keynesiana em apoio às entidades estudantis e, para isso, organizamos um material com as definições, que foram postadas, semanalmente, nas nossas redes”, conta Ana. “Atualmente estamos produzindo uma edição especial com conceitos explicativos do orçamento público”, complementa.

Arte: @desajuste.economia/ Instagram 

 

Arroz, Feijão e Economia: Uma base para um debate popular

Pouco depois do surgimento do Desajuste, foi criado o coletivo Arroz, Feijão e Economia (AFE),  também organizado por alunos da FEA-USP. A ideia nasceu no final de 2019, a partir do desejo que alguns alunos tinham de unir economia e militância política. Mas somente em julho de 2020, já durante a pandemia, o coletivo foi oficialmente lançado, unindo virtualmente pessoas de vários lugares do Brasil. 

João Vaz, formado em economia pela USP e um dos fundadores do AFE fala sobre como surgiu o movimento: “A gente teve uma inspiração, que veio de um programa argentino chamado ‘Economía sin corbata’ (economia sem gravata, em tradução livre), que falava sobre economia com linguagem popular na rede nacional aberta. E aí, pensando nessa questão, começou a ideia de organizar estudantes do curso  para falar para fora da bolha do economês”.

O início do Arroz, Feijão e Economia foi marcado por um canal no Youtube, onde eram postados vídeos que falavam sobre questões econômicas em uma linguagem mais acessível, e por uma série de formações sobre os impactos da pandemia no Brasil pela ótica das desigualdades. 

Curso sobre economia feminista, transmitido através do canal do coletivo. Reprodução: Youtube

 

Hoje, a perspectiva do movimento é um pouco diferente. Além de disputar o debate econômico e levá-lo às pessoas de uma forma mais simples, os membros também realizam projetos que visam mudar a vida das pessoas na materialidade, através de uma frente de trabalho comunitário. O coletivo presta assessoria econômica a dois outros movimentos sociais: a Cooperativa dos Entregadores Antifascistas e a Nação dos Trabalhadores, além de oferecer um minicurso de educação financeira a famílias de baixa renda da Rede de Cursinhos Populares Elza Soares

Para João, todas essas ações são importantes para descomplicar a economia, “emprestando” conhecimento universitário como instrumento social às pessoas que já estão se organizando nas periferias, por exemplo, e levando o tema para perto delas. “Nós queremos desmistificar essa ideia de que a economia é a ciência dos homens engravatados que têm um conhecimento técnico e mostrar que ela está na vida de cada um. Nosso grande objetivo enquanto movimento social é exatamente que esse  seja um assunto na mesa de jantar do trabalhador, assim como futebol ou política”, ressalta.

O impacto direto da organização coletiva

Maria da Penha, agrônoma que trabalha com agricultura familiar em Porto Nacional (TO), é uma das pessoas que “pegou emprestado” os conhecimentos do Arroz, Feijão e Economia. Ela já participou de várias ações do coletivo, como formações e reuniões, e gosta bastante: “Eu sou muito bem recebida, as pessoas me ouvem e eu aprendo demais. Fazer parte do coletivo é importante porque eu fico atenta às situações que acontecem dentro da economia, dentro da política e do dia a dia do nosso Brasil”, afirma.

Internamente, as ações desses grupos também tiveram profundo impacto na vida de jovens ingressantes na USP. A estudante Ana Garcia relata que alguns de seus colegas compartilharam que estão mais dispostos e veem mais sentido na própria formação após participar das atividades do Desajuste. A formação nas ciências econômicas pode se demonstrar, muitas vezes, abstrata e conservadora, o que tira o “brilho nos olhos” de alguns alunos com mais inclinação para política, para o trabalho comunitário e até mesmo para a academia. “No meio de tanta derivada e abstração, alguns encontram sentido na própria formação ao participar de nossas conversas”, conta.

Mesmo com pouco tempo de fundação, tanto o Desajuste quanto o Arroz, Feijão e Economia conseguem levar um pouco da USP para fora do espaço da universidade e, através do conhecimento, transformar social e politicamente a realidade em que vivemos. 

Para quem também tem vontade de fazer o mesmo, João Vaz deixa uma dica valiosa: “Organize-se, para qualquer coisa. Às vezes a gente ouve ‘mude o mundo, só depende de você’, mas ninguém muda o mundo sozinho. Então seja no centro acadêmico, na bateria, no movimento social, vamos nos organizar. Se quiser se organizar com a gente, as portas estão sempre abertas, mas não precisa ser com a gente. Organizem-se nas suas pautas, nas suas lutas, que isso é fundamental pra gente construir um Brasil melhor”, conclui.