Luiz Gama, o novo Doutor honoris causa da USP

Advogado foi um dos principais ativistas pela abolição da escravidão no país, além de ter atuado em diversos campos do saber

 

 

por Luana Franzão e Matheus Zanin

Arte: Luana Franzão/Foto: Acervo de Ligia Ferreira Fonseca

 

Advogado, jornalista e escritor, Luiz Gama é visto por muitos pesquisadores como a maior figura do abolicionismo no Brasil e crucial para o fim da escravidão no país. Apesar de sua relevância para a História nacional, Gama ainda é pouco reconhecido pela maioria da população. Em seu lugar, nomes como o da princesa Isabel costumam ser citados para se tratar do fim da escravidão no Brasil.

Para trazer os holofotes da História a Luiz Gama e atribuir-lhe os louros que foram-lhe por muito tempo, a Escola de Comunicações e Artes da USP indicou seu nome para receber o título de Doutor Honoris Causa – título atribuído pela academia para pessoas consideradas importantes para determinada área, ainda que não tenha formação superior – pela universidade, reconhecendo suas contribuições para as áreas de Direito, Literatura e Jornalismo.

A proposta partiu do professor Dennis de Oliveira, do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE), que criou uma petição com o fim de trazer destaque à causa. Na quarta-feira, 29 de junho, a proposta foi aprovada pelo Conselho Universitário por unanimidade, tornando o advogado o primeiro brasileiro negro a receber o título.

Ouça a explicação do professor Dennis de Oliveira sobre o processo necessário para a nomeação:

 Arte da campanha no site oficial da ECA indica que quase 500 pessoas assinaram a petição assim que ela foi anunciada. Imagem: Susana Narimatsu/ECA (USP)

 

Família e infância

“Nasci na cidade de S. Salvador, capital da província da Bahia, em um sobrado da rua do Bângala, formando ângulo interno, em a quebrada, lado direito de quem parte do adro da Palma, na Freguezia de Sant’Ana, a 21 de junho de 1830, por às 7 horas da manhã, e fui batizado, 8 anos depois, na igreja matriz do Sacramento, da cidade de Itaparica.” (Carta de Luiz Gama para Lúcio de Mendonça)

Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu em 1830, em Salvador, Bahia. Sua mãe era africana,  livre, quitandeira e participou intensamente de revoltas de escravos. Nas palavras de Gama, Luiza Mahin recusou a doutrina cristã por toda a sua vida.

Seu pai, branco e fidalgo, de importante família portuguesa. Na carta a Lúcio de Mendonça, Gama opta por ocultar seu nome. Ele foi responsável pelos cuidados do filho após a mãe do menino ter deixado a Bahia. De acordo com Luiz, “amava as súcias e os divertimentos” e gastou a fortuna da família em jogos.

Em 1840, o pai vende seu próprio filho como escravo para um comerciante e contrabandista do Rio de Janeiro. Luiz Gama passou então a morar na casa de Antônio Rodrigues do Prado – o tal negociante. Um jovem estudante e hóspede de Prado ajudou um Luiz de 17 anos no aprendizado da leitura e da escrita. Com as ferramentas necessárias, Gama passou a buscar sua liberdade definitiva.

“Em 1848, sabendo eu ler e contar alguma cousa, e tendo obtido ardilosa e secretamente provas inconcussas de minha liberdade, retirei-me, fugindo, da casa do alferes.”

Aos 18 anos, Luiz Gama se alistou na Força Pública da Província de São Paulo – órgão que pode ser comparado à atual polícia –, onde serviu até 1854, quando foi dispensado devido a uma acusação de insubordinação que lhe rendeu 39 dias aprisionado.

O advogado

 “Eu advogo de graça, por dedicação sincera à causa dos desgraçados; não pretendo lucros, não temo represálias”. (Correio Paulistano, 20 de nov. de 1869)

Um capítulo importante da história de Luiz Gama se passa, justamente, em sua relação com a Universidade de São Paulo. Em 1850, ele tentou ingressar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (que ainda não integrava a USP, mas passaria a ser parte dela em 1934) e foi negado. Não há registro oficial da razão da recusa, mas o racismo estrutural é explícito na decisão.

Gama não desistiu do Direito – não era raro vê-lo pelas arcadas do Largo São Francisco, acompanhando como ouvinte as aulas da faculdade. Ele também foi um notável autodidata, que se tornou especialista na libertação de escravos, apesar das fronteiras estabelecidas pelo preconceito da academia.

“O lugar do negro no século XIX era a lavoura, a roça, o serviço doméstico. Esse pensamento, além de nocivo, é o germe do racismo estrutural, porque desautorizar as palavras de Luiz Gama equivale a pensar: ‘como é possível que um escravo além de aprender a ler e escrever, vire poeta, jornalista e advogado?’”, afirma Diego Molina, Doutor em Literatura Latino-americana pela USP, ao recordar algumas correntes de pensamentos que duvidam da veracidade da vida de Gama.

Com o status de “rábula” – espécie de título que vigorava no século 19 no Brasil que permitia que pessoas sem diploma, mas com experiência, pudessem exercer o Direito – Luiz Gama libertou mais de 500 negros escravizados, em contribuição numericamente muito superior à abolição da escravatura.

“Luiz Gama pode ser considerado também um herói da diáspora africana, pois sua luta não foi apenas contra escravidão brasileira, mas contra o tráfico de seres humanos”, afirma Silvio Almeida, advogado, filósofo, professor de destaque e presidente do Instituto Luiz Gama em texto para a Folha de S.Paulo.

O jornalista: “por um país sem reis e sem escravos”

Além de seu ofício no Direito, Luiz Gama foi um ás do Jornalismo. De escrita ágil e coragem ácida, ele não poupou esforços para defender os ideais abolicionistas e republicanos aos quais se dedicou durante toda a sua vida.

“Luiz Gama foi um homem corajoso, tanto como jornalista quanto como advogado. Os seus artigos não poupavam nomes próprios, denunciando os responsáveis, além de escancararem a violência e as arbitrariedades da escravidão”, explica Diego Molina.

Em 1864, ele fundou,  juntamente com Angelo Agostini, o primeiro jornal humorístico ilustrado de São Paulo: o Diabo Coxo. Gama também colaborou no Cabrião, primeiro jornal a usar a caricatura como forma de sátira política no Brasil, no Radical Paulistano, no Polichinelo e até mesmo no Correio Paulistano, primeiro jornal diário da capital e amplamente popular.

Charge do jornal “Cabrião”, que critica o recrutamento para a Guerra do Paraguai. Foto: Cabrião, São Paulo, n. 13, 1866, p. 101/Acervo Digital Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin

 

Luiz Gama é um dos primeiros jornalistas negros a defender o fim da escravidão sem a utilização de pseudônimos. Outros defensores e opositores da causa faziam constante uso desse dispositivo para não se expor diante da arena pública – José de Alencar, por exemplo, romancista abertamente racista, usava o pseudônimo “Erasmus” para defender a permanência da escravidão no Brasil em cartas ao imperador D. Pedro II e publicadas na imprensa.

“Luiz Gama colocava o corpo, num compromisso com a verdade e com a justiça irrenunciável, apesar das perseguições e das ameaças constantes”, declara Molina.

Uma vida para ser cristalizada

A vida do advogado tocou diversas pessoas no Brasil e no mundo. De acordo com Molina, a existência de um ex-escravo que aprende a ler e a escrever, estuda Direito e defende escravos de graça, escrevendo poesias satíricas e artigos abolicionistas em diversos jornais, apresenta um valor sem precedentes para o país. 

Por outro lado, Gama ainda sofre ataques por parte daqueles que não aceitam sua presença irrevogável na História do Brasil. Tentativas de embranquecimento da figura de Gama, além do uso de sua imagem por movimentos conservadores como um contraponto à “rebeldia” de Zumbi dos Palmares, esbarram no legado inquestionável de sua luta revolucionária.

“Luiz Gama precisa ser visto como um grande intelectual brasileiro”, reforçou o professor de jornalismo da USP Dennis de Oliveira.

Ainda, o intelectual seria avesso aos títulos, porque, em sua época, estes eram repartidos de forma arbitrária. “Claro que, neste momento, o ato ganha um valor simbólico de reparação e reconhecimento. Aliás, em tempos sombrios como o que atravessamos, outorgar a Luiz Gama o título de Doutor Honoris Causa pela USP iria muito além de sua própria memória. Seria um justo e merecido ajuste de contas com a História do Brasil”, finaliza Diego.

Arte: Matheus Zanin