“Minha vida acadêmica foi sempre de busca por abrir brechas”

Lucia Santaella, primeira titular da Cátedra Oscar Sala, do IEA, fala sobre sua atuação no campo da comunicação e das tecnologias

 

por Bruno Militão

Foto: PUC Campinas/Divulgação

 

A partir do convênio entre o Instituto de Estudos Avançados (IEA) e o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), nasceu a Cátedra Oscar Sala. Ela tem como finalidade “fomentar, orientar e patrocinar o intercâmbio multidisciplinar entre os saberes de áreas diversas para fortalecer e cultivar o conhecimento sobre a internet, seu funcionamento, suas aplicações e suas ferramentas”.

Dentre os membros que compõem a Cátedra, o titular deverá ser sempre uma pessoa externa à USP. A primeira a assumir o posto é a semioticista Lucia Santaella, professora emérita da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde leciona no programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica e coordena o Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital. 

Confira a entrevista dada por Santaella ao JC, na qual falou sobre os rumos das atividades na Cátedra do IEA e suas pesquisas mais recentes.

No discurso de posse como primeira catedrática titular da Cátedra Oscar Sala, a senhora diz que o fio condutor das atividades é a busca pela compreensão dos grandes desafios do nosso tempo, sempre tendo em vista as práticas interdisciplinares. O lema Novas condições da interdisciplinaridade em tempos de simbiose humano-tecnologias vai ao encontro também do leque de áreas das quais os professores e pesquisadores do grupo de apoio a sua gestão fazem parte. A senhora poderia comentar um pouco sobre essa proposta? 

“Desafios do nosso tempo” é o lema que lancei para pensar as novas simbioses que se apresentam ao humano frente ao avanço vertiginoso das tecnologias, hoje incrementadas pela inteligência artificial e pelo conexionismo planetário. Mas esse lema é quase um eufemismo, pois nos encontramos, desculpe a metáfora, em uma voragem de desafios, especialmente no Brasil. Para usar outra figura de linguagem, hipérboles nunca são suficientes para caracterizar, neste país, nossas crises políticas, econômicas e culturais intermitentes que, com a pandemia, passaram a ser feridas abertas que hoje repercutem profundamente no nosso psiquismo. 

O ser humano é o animal mais adaptável do planeta, mas as condições apresentam-se em tal nível de adversidade que, por todos os lados, vemos as pessoas fraquejando na potência com que foram dotadas. Nem é preciso enumerar a ordem dos problemas, pois os jornais e as estatísticas estão com seus comentários e números prontos, dispensando essa atividade de nossa parte. Tudo está afetado, navega-se em incertezas, enfraquecem a esperança e as expectativas de futuro, sem as quais a vida se torna psiquicamente inaceitável. 

Devo confessar que me encontro hoje destituída de meu pendor para um certo otimismo, obrigação que me coloco na minha posição de educadora. Afinal, nossa tarefa é, antes de tudo, transmitir. Mais do que saber, inspiração. Porque o conhecimento depende disso. Afinal, nossa energia intelectual é alimentada pela inspiração que extraímos daqueles e daquelas que elegemos como mestres e guias neste modo de vida que depende, sobretudo, de uma escolha que não nos é imposta, a da aprendizagem pela vida afora. 

Mas a cada dia e, hoje, especialmente, recebi a notícia do abandono dos estudos de mais um estudante, daqueles que se colocam entre os 5% melhores, de acordo com os formulários de avaliação das instituições de apoio à pesquisa. Onde estão elas? A mim parece que se esconderam por trás de não sei quais cortinas justificatórias. Deixo claro que choro a cada estudante vocacionado que não consegue encontrar seu lugar no presente pela ausência de perspectiva de futuro.   

Outro eufemismo é dizer que nos encontramos agora em uma fase de anti-clímax das redes sociais. Essas mesmas redes sociais que irromperam nos anos 1990, com promessas de entrega democrática da palavra sem quaisquer tipos de discriminação. Mais uma vez, o tiro saiu pela culatra, mergulhando as sociedades em oceanos de fake news, desinformação, negacionismo e bolhas de fanatismos. 

E aqui no nosso país, tudo isso ocorrendo no mais completo desprezo político pela educação, pela construção do saber e na total  desconfiança na ciência, ironicamente, justo a ciência, sem a qual a humanidade não poderia se safar da pandemia. Digo que é um eufemismo porque, estamos, decididamente, em uma segunda era da internet na qual as redes sociais são apenas a ponta visível de um imenso iceberg, por baixo da qual tudo ocorre de modo invisível. 

Nunca tanto quanto agora, informar-se sobre o que ocorre nesse campo do invisível tornou-se tão crucial. Neste ponto nos encontramos com a cátedra, cuja proposta é justamente buscar compreender o invisível. 

Quais são os planos de atuação da gestão – tendo em vista inclusive o regime de atividades remotas com o qual a USP tem trabalhado – e o modo de execução que a senhora busca para a cátedra? 

Nos últimos doze anos, aprendi muito com grupos de estudos temáticos que tenho com meus alunos pesquisadores em curso, junto com ex-alunos já doutores e pós-doutores meus ou de colegas. Construímos espaços de liberdade do conhecimento, sem dispensar os rigores dos quais depende a aprendizagem. 

O ensino em nosso país sofre do vício das estruturas fechadas, pré-determinadas e hierarquizadas, em suma, dão expressão exata ao que Foucault definiu como sociedade disciplinar. Falar em repensar a interdisciplinaridade, que é aquilo que minha cátedra diz, sem romper com essa estrutura, seria afundar na contradição de se pregar algo e agir de forma contrária. 

Houve uma grande procura para a integração no grupo de estudos que propus para a cátedra de modo que, em vez de um grupo, estamos trabalhando com dois com o esforço de integrar os dois de maneira a dar igual voz a todos. A liberdade do conhecimento não dispensa métodos. No caso da cátedra, trata-se de lançar o anzol e receber respostas inteligentes que possam nos surpreender uns aos outros. A base encontra-se sempre na busca do conhecimento e na aposta na inteligência coletiva. 

Estamos apenas no começo, mas tudo parece estar se encaminhando para além das expectativas. Devo indicar que tenho três professores e um aluno da ECA, ligados à profa. Clotilde Perez, que estão me dando sustentação para a condução das tarefas. Eles estão profundamente alinhados à proposta, que, de resto, pensamos juntos. São eles: Eneus Trindade, Bruno Pompeu e Silvio Sato, além do mestrando Rafael Orlandini, todos da ECA e, da PUC-SP trouxe Clayton Policarpo, Guilherme Cestari e Luiz Felipe Napole. Por eles, sinto-me amparada e iluminada. 

Apesar de toda formação e experiência como professora, pesquisadora e gestora na PUC-SP, este não é o primeiro vínculo formal, digamos assim, com a USP: além de ministrar disciplinas da pós-graduação, a senhora é livre-docente em Ciências da Comunicação pela ECA. Como recebeu o convite e como é receber mais esse reconhecimento?

Sim, tenho orgulho de levar um título de livre-docente pela USP, visto que a livre-docência dessa casa não apresenta nenhum tipo de facilitação, implicando a escrita e defesa de uma tese, algo que corresponde à Habilitation na Alemanha. Portanto, é uma verdadeira livre-docência que não se confunde com alguns processos de facilitações que são empregados em algumas universidades no Brasil e que desqualificam o título. Envelhecer e acumular alguns dados no CV Lattes não deveriam ser condições suficientes para uma livre-docência. 

Quanto ao reconhecimento que a nomeação para a cátedra me dá, é sempre motivo de satisfação que, para mim, está longe de ser egóica, pois o significado que extraio disso é que tantos anos de dedicação sincera ao trabalho intelectual e à vida acadêmica voltada para a formação dos estudantes (uma das minhas grandes paixões: testemunhar o crescimento do outro) deixam marcas na realidade.

Essa busca pela interdisciplinaridade pode ser vista como uma representação da sua própria trajetória acadêmica, desde a teoria literária, passando pela semiótica, área da qual a senhora é a grande referência no País, comunicação, psicanálise, áreas mais ligadas aos estudos ditos “clássicos”, até a cognição, os games e a estética tecnológica e inteligência artificial. 

Como foi para a senhora se inserir em campos aparentemente distintos e, em todos eles, se tornar uma referência importante? (Cito aqui a obra Cultura das Mídias, referência para os estudos midiáticos, lançado nos anos 90, quando a discussão sobre internet se iniciava). Foi um processo natural?

Mais do que natural. Desde criança, sou tomada por uma curiosidade intelectual, infelizmente, insaciável. Digo insaciável porque não me dá sossego. Vivo em um parque de diversões de seis mil livros, os objetos de que mais tenho ciúmes em minha vida. E só não são mais porque, de quando em quando, faço doações para não tornar a casa inabitável. Afinal não quero colocar livros debaixo de móveis, pois eles merecem uma exposição à altura de sua importância. 

Mas devo confessar que, quando vejo as estantes de Umberto Eco, sinto uma ponta de inveja, muito branca, mas inveja. Aquele maravilhoso vídeo em que ele anda pelos corredores de livros. Conheci Eco pessoalmente, ambos ocupávamos posições na diretoria da Associação Internacional de Semiótica. Umberto Eco era um ser verdadeiro na sua verdade, no legítimo sentido que isso possa ter. Além disso, era adorável, um gênio no seu brilho e humor. 

Mas voltemos ao tema. Ser semioticista na linha de C. S. Peirce é ser interdisciplinar incondicionalmente. É só nas academias que as ciências e os saberes ficam trancafiados entre quatro paredes. Entre si, as ciências complementam-se, uma precisa da outra. As teóricas, chamadas de básicas, fornecem princípios, as empíricas, dados transformados em informações que podem, inclusive, levar à reconsideração dos princípios. É um vai e vem que leva à renovação. Hoje, a interdisciplinaridade, que agora passei a chamar de pandisciplinaridade (outra hipérbole, para chamar atenção para a urgência da questão), tornou-se imperiosa. Não há problema contemporâneo que possa ser enfrentado nas portas fechadas de uma só ciência. 

No atual estado das coisas, sinto-me contemplada. Sim, desde os anos 1990, fui impelida para a busca de compreensão da explosão digital. Mas não são as tecnologias em si que me interessam, ou só me interessam na medida em que preciso compreendê-las para compreender a que elas se destinam, ou seja, sempre ao humano. Portanto, sinto-me contemplada porque, agora, com a inteligência artificial chegamos a um ponto em que engenheiros e filósofos, psicólogos, sociólogos, antropólogos, artistas e o que mais for, terão que aprender a conversar, dos píncaros da sabedoria de cada um, encontrar o ponto em que a conversação se torna imprescindível. 

A Comunicação pode ser pensada, em si, como um campo interdisciplinar – o que poderia indicar sua aproximação com a área. Apesar disso, há algum tempo alguns teóricos negavam que a Semiótica, ou as Ciências da Linguagem como um todo, seja uma disciplina com a qual a Comunicação devesse trabalhar.  A senhora ainda percebe esse movimento de restrições ao campo da comunicação, majoritariamente interpelado pelas ciências sociais? 

Há como pensar a comunicação sem pensar em linguagem? E ainda mais: há, hoje, como pensar em comunicação sem pensar nas inteligências artificiais? 

Essa rusga entre comunicação e semiótica é antiga e quase sempre fruto da ignorância. A ignorância é preconceituosa, conservadora e consequentemente moralista. Detesto com todas as minhas forças os três: ignorância, conservadorismo e moralismo (aliás, o retrato mais cabal nem preciso falar do que e de quem em nosso país!). Mas o mundo acadêmico também pode ser minado por essas três pragas, além de uma outra praga, a inveja. Mas deixemos essas sombras no seu devido lugar. Elas se apagam por si mesmas, pois o tempo é o grande agente de todas as filtragens. Cedo ou tarde, mas sempre, os lixos encontram seus destinos: lixo.

Você tocou em um ponto importante. Disse acima que a rusga entre a comunicação e semiótica quase sempre é devida à ignorância. Há aí, portanto, um “quase”. Trata-se da matriz disciplinar em que a comunicação se fundou: as ciências sociais, enquanto a matriz conceitual da semiótica costuma ser colocada nos estudos de linguagem. Uma, na dispensa da outra, torna-se incompleta. 

Lembrando Eco mais uma vez, há um princípio por ele formulado que sigo como um axioma até que alguém venha provar que ele é falso: “Não há cultura sem comunicação” (aliás não só no universo humano, mas também na biologia, na zoologia, etc., enfim, o princípio da vida é comunicacional). Mas também “não há comunicação sem linguagem, sem signos”, pois a comunicação depende da troca de signos. Então, adiciono um complemento a Eco: “não há signo ou linguagem sem um suporte em que eles se corporifiquem”. 

E aqui nos encontramos com as tecnologias, aquelas que mais me interessam, as tecnologias de linguagem. Isso dá um fio condutor para quem acompanha o meu pensamento. A própria fala não prescinde de uma tecnologia pela qual ela possa se corporificar. Essa tecnologia, pela natureza das coisas, é um artifício que se instalou em nosso próprio corpo: o aparelho fonador. Somos, portanto, naturais e artificiais ao mesmo tempo. 

Muito se diz sobre o medo dos avanços da tecnologia, ou da superação das inteligências artificiais em relação aos humanos, chegando até ao imaginário de “robôs dominando os humanos” que vemos em livros, filmes e séries. 

Porém, em uma entrevista à TV PUC, a senhora comenta que os humanos, seres de linguagem, somos “tecnológicos de saída”, citando o aparelho fonador como uma dessas tecnologias. Além disso, em um perfil feito pelo professor Vinicius Romanini (presente no livro Mestres da Comunicação), a senhora disse que via a chegada das novas tecnologias como um processo de humanização, e não de desumanização. 

A senhora ainda tem essa percepção, ou já percebeu algumas modificações nesses princípios? A que se deveria esse medo que alguns têm do avanço tecnológico e das novas inteligências? 

Todo preconceito, temor e negação das tecnologias, mesmo das tecnologias de linguagem (como são a fotografia, o rádio, o cinema, o jornal, os gadgets que tanto nos divertem, e, por fim, as tecnologias digitais que hoje se multiplicam em plataformas, aplicativos e que tais) são frutos de um desentendimento que o humano tem de si mesmo. 

Por equívoco fantasioso do nosso imaginário, nos julgamos unos em corpo e espírito e nos causa dissabor nos sabermos incompletos, fragmentados e expandidos em tecnologias que, desde sempre, nos constituíram e que, agora, cresceram e se multiplicaram a ponto de nos amedrontar. É justamente esse temor que os filmes block buster exploram com sensacionalismo. Prestam um desserviço à nossa compreensão, embora nos distraiam ao preço de nos afastar da necessária busca de informação sobre o que realmente está ocorrendo. 

Isso não significa que as tecnologias sejam, por si sós, boas ou más. Essa dicotomia não cabe. Elas são o que somos: contraditórios, ambivalentes, paradoxais. Essa verdade está hoje exposta nas redes sociais. Deixe todos falarem o que lhes dá na telha. Deu no que deu: o ser humano revelado no que sempre foi, agora posto a nu. 

Os viéses de que tanto reclamamos na inteligência artificial não vêm dos algoritmos, mas daquilo com que são alimentados: dados humanos. Portanto, ética da inteligência artificial não significa outra coisa senão corrigir os desvios de ética que procedem dos humanos. 

No perfil que citei anteriormente, a senhora diz que sempre procura brechas onde inserir projetos, que não gosta dessa coisa parada e velha que toma conta das universidades brasileiras. 

Sou foucaultiana de carteirinha. Não cultivo relações de dependência nem intelectual, nem pessoal. Gosto de dar ao outro a liberdade para lançar seus voos, com a pré-condição de estar preparado para dá-los, caso contrário caímos nesse frenesi de confundir liberdade com opinião que só infesta a vida pública com achismos disfarçados de saber. O saber vale quanto custa em tempo e entrega ao aprendizado para ser transformador. 

Não sou centralizadora, aprecio relações de coordenação e não de subordinação, mas costumo ser tão exigente com o outro quanto sou comigo mesma. Nunca pisei em outras canoas, sou uma intelectual educadora que leva essa missão a sério. Sim, a universidade, tal como se encontra, apresenta uma estrutura obsoleta. Minha vida acadêmica foi sempre de busca por abrir brechas.  

Há uma movimentação para que as universidades do Brasil se integrem a novas possibilidades de ensino e pesquisa, ou parece permanecer no passado? E sobre novos projetos e pesquisas, a senhora já tem planos?

Não sei onde está essa movimentação. Tudo continua tão parado quanto sempre esteve. O máximo que ocorre são reformismos curriculares. Faz-me rir, pois, cada uma dessas reformas em vez de ir para frente, caminha para trás. Quanto conforto isso traz! 

Enquanto isso, a aprendizagem ubíqua dos jovens anda solta. Basta abrir junto com os alunos um canal no whatsapp e ver de que compartilhamentos e trocas a aprendizagem colaborativa hoje se faz. 

Se tenho novos projetos? Nem sei como dar conta deles. O que posso dizer é que para levá-los à frente, em tempos de antropoceno e cosmopolítica, tenho que me converter em guerrilheira contra o antropocentrismo. E aqui guerrilheira é também um eufemismo, pois não há nada mais difícil do que conseguir tirar o humano de sua posição arrogante de senhor do planeta. O ser humano sofre de delírios de superioridade. Não é por acaso que destruiu a biosfera.