O ciclo do negacionismo para além da “gripezinha”

Como a negação da realidade se repete ao longo da história


 

por Ana Luiza Cardozo e Caio César Pereira

Arte: Maria Luísa Bassan / Fotos: Wikimedia, Newcastle University, BBC News/Reprodução, Pixabay

 

“Eu não posso falar como cidadão uma coisa e como presidente outra. Mas como eu nunca fugi da verdade, eu te digo: eu não vou tomar vacina. E ponto final”. Esta frase foi dita pelo líder do Executivo brasileiro em dezembro de 2020 e é apenas uma das mais de 200 falas de Jair Bolsonaro mapeadas pela equipe do relator da CPI da Covid, o senador Renan Calheiros (MDB). 

No compilado, entre “jacarés” e “gripezinhas”, o presidente minimiza os efeitos do novo coronavírus, põe em xeque a eficácia das vacinas, estimula o tratamento precoce com medicamentos já descredenciados pela OMS para este fim e contraria pesquisas científicas.

Os discursos negacionistas não se direcionam apenas à pandemia, como a afirmação de que “portugueses nunca pisaram na África”, feita pelo presidente em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, culpabilizando os próprios africanos pela escravidão. Houve ainda a defesa do “nazismo de esquerda” e de que o golpe militar não se tratava de um golpe, muito menos de uma ditadura: “Nós passamos 20 anos de período, não de ditadura, mas de um regime com autoridade, em que o Brasil cresceu, tivemos pleno emprego, respeito aos direitos humanos — porque hoje em dia a violência está aí fora —, segurança, amor à pátria e democracia”, declarou.

Negar a realidade, contudo, não é exclusividade de Bolsonaro e seus apoiadores. Em diferentes períodos da História, o negacionismo serviu como instrumento político e de controle das massas.

Sendo a negação um conceito psicanalítico, podemos explicar o fenômeno pela perspectiva de Sigmund Freud. No vídeo Negacionismo e psicanálise, o professor Christian Dunker, do Instituto de Psicologia da USP, explica sua ocorrência coletiva. “O processo de massa nos leva à regressão cognitiva, à adoração ao líder, cegueira mental, recusa da adversidade e identificação com nossos irmãos. Nos juntamos porque estamos com medo, buscamos segurança existencial. Tratamos nossa angústia negando a realidade”, afirma. 

As voltas que a Terra plana dá

O negacionismo é instrumentalizado pelo Presidente da República como forma de manutenção do poder e afirmação de uma ideologia. Não seria diferente com seu “guru intelectual”, Olavo de Carvalho. O filósofo bolsonarista já compartilhou em suas redes sociais que não encontrou evidências que refutam a teoria de que a Terra seja plana – e ele não está sozinho. De acordo com a YouGov, empresa pública de pesquisa de opinião e análise de dados, em 2018, apenas 66% dos jovens entre 18 e 24 anos nos Estados Unidos tinham certeza de que a Terra era redonda. 

Os terraplanistas acreditam que o planeta não é uma esfera, mas sim um disco. O grupo rejeita evidências científicas, documentos oficiais ou provas visuais de que vivemos num globo achatado nos pólos. Suas ideias ganham força na internet, especialmente com o YouTube, principal porta de entrada para seus defensores.

O debate sobre o formato ou a dinâmica do planeta azul não é recente. Para uma das instituições mais poderosas de todos os tempos, a crença de que a Terra era orbitada pelo Sol e os demais astros, governava os ideais das Idades Média e Moderna. A igreja católica refutava o modelo heliocêntrico, já que as criações de Deus eram terráqueas e, portanto, estariam no centro do universo.

“O sistema heliocêntrico foi proposto entre os gregos antigos de forma elaborada, num modelo divulgado por Aristarco. Embora tenha ficado em desuso depois da ascensão do modelo ptolomaico geocêntrico, ele era conhecido por alguns representantes da Igreja cristã na Idade Média”, explica Gildo Magalhães dos Santos Filho, professor do Departamento de História da FFLCH-USP. “Em termos de controvérsia, o modelo heliocêntrico voltou a ser discutido a partir do século XVI e a posição da Igreja Católica, assim como da protestante, foi contrária”, complementa.

O julgamento de Giordano Bruno pela Inquisição Romana. Relevo em bronze de Ettore Ferrari (1845-1929), Campo de Fiori, Roma. Foto: Jastrow

 

Opor-se aos dogmas da Igreja era digno de punição. Nicolau Copérnico, considerado o pai da astronomia moderna, foi o primeiro a retomar o heliocentrismo, divulgando seu modelo de sistema solar no obra “Das Revoluções dos Corpos Celestes” (1543) , incluída no Índex – a lista de livros proibidos por heresia. A censura católica só teve fim em 1835, quando sua teoria foi aceita pelo Vaticano. Giordano Bruno, apoiador da teoria de Copérnico e adepto de ideias heterodoxas, tivera um destino mais trágico, sendo queimado na fogueira em praça pública pela Santa Inquisição, em 1600. 

Em 1633, Galileu Galilei, outro defensor da Terra orbitando o Sol, foi obrigado a negar suas ideias publicamente e passou o resto da sua vida confinado numa espécie de prisão domiciliar. “Segundo alguns historiadores, a acusação contra Galileu foi para salvá-lo de condenação por heresia envolvendo a eucaristia, que seria bem pior do que a de ser adepto do heliocentrismo”, Santos Filho ressalta. De qualquer forma, foi apenas em 1992 que o papa João Paulo II reconheceu a condenação do cientista como um erro da Igreja.

Mascarando o problema

O Século 20 começou literalmente agitado. Entretanto, não basta-se todo o caos da 1ª Guerra, o fenômeno negacionista também deu as caras para piorar ainda mais a situação.  Aqui no Brasil, um pouco antes do famoso conflito bélico que envolveu as grandes potências da época, um capítulo da história marcou a nossa entrada no século: a Revolta da Vacina.

Charge da época da revista O Malho, retratando o confronto. Foto: Leônidas/ Acervo Fiocruz

 

Em 1902, a varíola se espalhava por um Rio de Janeiro caótico. As ruas da cidade viviam infestadas de lixo, ratos e todos os tipos de doenças que um ambiente como esse pode propiciar. Até então capital federal, a cidade era uma das mais densamente habitadas no país, cujo crescimento desenfreado se deu pelo modo como o país lidou com a abolição da escravidão. Diante de tal cenário, o então presidente do Brasil na época, Rodrigues Alves, buscou realizar uma espécie de “limpeza” urbana, modernizando a cidade, em um processo de reurbanização.

Sob a justificativa de eliminar os surtos de doenças, o presidente decidiu agir. Assim, o então jovem médico Oswaldo Cruz, no cargo de Diretor de Saúde Pública, foi incumbido a missão de controlar os surtos de doenças que aconteciam na cidade. Para isso, Oswaldo decidiu montar uma campanha geral na cidade, com brigadas de mata-mosquitos contra a febre-amarela, que invadiam casas por toda a cidade atrás do mosquito, além do incentivo para a própria população caçar ratos, no intuito de controlar a peste bubônica.

A medida que iniciou a revolta, entretanto, foi outra. Em 1904, para combater o alastramento do vírus da varíola, uma campanha de vacinação em massa foi imposta, gerando uma onda de indignação por toda a cidade. A falta de informação a respeito da doença, bem como a forma dura com que os sanitaristas abordavam os cidadãos, se tornaram combustível para que parte da oposição política da época, usasse os jornais da época para disseminar falsas informações a respeito da vacina e de seus possíveis efeitos colaterais, de forma a se opor à lei de vacinação sancionada.

Alegando que a lei violava sua liberdade e que as pessoas tinham o direito de rejeitar a inserção de qualquer líquido estranho em seus corpos, a população foi inflamada, e entre os dias 10 e 16 de novembro, aconteceu a revolta, resultando em 30 pessoas mortas, e mais de 100 feridas. E com esse incidente temos um dos primeiros grupos negacionistas a vacinas da história, os chamados “antivax”.

Embora tenha crescido atualmente, aqueles que se negam a se vacinar em meio a surtos de doenças não são de agora, muito menos seus argumentos. Na verdade, eles surgiram até antes da Revolta da Vacina.

Ainda no século 19, era comum os debates a respeito da eficácia da vacinação, com algumas “autoridades” no assunto, como médicos e cientistas, defendendo os supostos efeitos colaterais das mesmas, como o de adquirir outras doenças, como sífilis, cólera, etc. Em 1885, no Canadá, por exemplo, o médico Alexander Ross se valeu da sua posição para liderar um movimento contra a vacina da varíola em Montreal, alegando que a epidemia na cidade nem era tão grave assim, outro comportamento comum a negacionistas de vacinas.

Entretanto, outra “gripezinha” também foi alvo dos conspiracionistas. Pouco depois do fim da Primeira Guerra, o mundo foi devastado pela pandemia de outro vírus, evento que ficou erroneamente conhecido como Gripe Espanhola. Em 1918, a cidade de São Francisco, nos EUA, com até então meio milhão de habitantes, se viu duramente atingida pela doença, com mais de 2 mil pessoas infectadas em questão de poucos meses. Com isso, a fim de combater o alastramento da doença, medidas como a utilização de máscaras foram impostas.

Fila para distribuição de máscaras em São Francisco, em 1918. Foto: California History Room, California State Library, Sacramento

 

Descontentes com as restrições e céticos a respeito das medidas de contenção, um grupo decidiu se unir, formando assim o que ficou conhecido como a “Liga Anti-Máscara”. Seja por não gostarem do uso de máscaras, ou por acharem seu uso inconstitucional, as pessoas foram se reunindo. Em suas reuniões, a assembleia geral era presidida pela deputada Emma Harrington, e em uma delas chegou a reunir mais de duas mil pessoas. Apesar de barulhento, os protestos e manifestações não foram bem sucedidos, com as exigências sendo em grande parte ignoradas pelo poder público, o que acabou resultando na dissolução do grupo pouco tempo depois.

Um delírio mais que coletivo

O negacionismo tem diversas faces e pode vir de diversos agentes. Mas se engana ao achar que eles só são provenientes de pessoas da sociedade civil. Em alguns casos, eles podem chegar ao extremo de serem regimes de Estado, como é o caso de um dos primeiros, e esquecido, massacres da humanidade: o genocídio armênio.

Exército Turco-Otomano direcionando os cidadãos armênios. Foto: The United States Holoucaust Memorial Museum

 

Em 1915, o até então Império Turco-Otomano, era regido pelo grupo militar conhecido como “Jovens Turcos”. Sob a liderança do comandante do exército Ismail Enver Pasha, a população armênia foi expulsa de suas casas, com os homens ou servindo em campos de trabalho escravo ou sumariamente executados, e as mulheres “deportadas”, obrigadas a caminhar longas distâncias pelo deserto sirio, o que ficou conhecido como “marcha da morte”. 

“O genocídio foi muito longo. Eles falam de 24 de abril de 1915, que se tornou a data símbolo, por que foi a data em que foram assassinados os intelectuais armênios. Mas o genocídio a gente pode dizer que começou a partir de 1895, com os primeiros massacres do então sultão Abdil Hamid, até cerca do ano de 1923. Então foi um dos mais longos genocídios da história”, nos conta Deize Crespim Pereira, professora de Língua e Cultura Armênia, do Departamento de Letras Orientais da FFLCH-USP. “Dos cerca de 1,5 a 2 milhões de armênios que havia lá, sobraram somente cerca de 50 mil após o genocídio.”

Apesar de todos os documentos que comprovam o massacre, a Turquia, país que sucedeu o Império Otomano, não só não reconhece o genocídio, como qualquer menção a ele no país é passível de punição previsto em lei, no artigo 301 da constituição Turca. Uma de suas diretrizes na política internacional é inclusive na forma como as outras nações lidam com o assunto, admitindo ou não o episódio, o que ficou mais em evidência com a mais recente declaração do presidente Joe Biden reconhecendo a carnificina do trágico evento.

A resistência é tão grande no país, que nas escolas não é ensinado nada a respeito do assunto. Segundo a professora, os mesmos argumentos utilizados na época do massacre, são os utilizados hoje. “Os mesmos argumentos que foram utilizados na época pelo império otomano para negar o genocídio, continuaram a serem usados ao longo de todos esses anos até hoje. O discurso negacionista dissimula o genocídio dizendo que era uma guerra, época da Primeira Guerra Mundial, e que em guerra é natural a morte de pessoas, e que o que houve foi uma deportação.”

A política sistemática de extermínio da população armênia pelo Império Otomano foi provavelmente uma das primeiras limpezas étnicas a se ter notícias de nossa história, e, algumas evidências apontam, que por pior que possa parecer, podem ter servido de inspiração inclusive para outro regime totalitário que assombrou a Europa anos depois.

Tão perigosos quanto os que negam o genocídio armênio são os negacionistas do Holocausto. Apesar de depoimentos de sobreviventes, objetos da época e um extenso acervo escrito e visual que documentam o genocídio de aproximadamente seis milhões de judeus durante o Terceiro Reich, grupos de diferentes ideologias ainda rejeitam as atrocidades do regime nazista.

Catálogo de crianças prisioneiras do campo de concentração de Auschwitz. Foto: Muzeum Auschwitz-Birkenau

 

Para alguns setores da extrema-esquerda e do fundamentalismo islâmico, o negacionimo tem como objetivo deslegitimar a criação do Estado de Israel após a Segunda Guerra Mundial, como é o caso do ex-presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, que já questionou o Holocausto em discursos públicos e entrevistas à imprensa. Para os lefebvrianos da igreja católica, seguidores do arcebispo ultraconservador Marcel Lefebvre, judeus conspiracionistas inventaram a farsa para obter apoio da sociedade e ofuscar sua culpa pela crucificação de Jesus Cristo. 

Contudo, o grupo negacionista de maior visibilidade e mobilização é composto pela extrema-direita. A fim de amenizar práticas criminosas para retomar projetos políticos fascistas, desmentem o genocídio judeu por meio de diferentes ações, como a publicação de livros e revistas, produções audiovisuais, estudos disfarçados de “revisionismo histórico” e propagação de informações falsas nas redes sociais.

Dois anos após se recusar a banir negacionistas do Holocausto no Facebook, o judeu Mark Zuckerberg, fundador da plataforma, voltou atrás no ano passado, alegando o aumento do antissemitismo e do discurso de ódio no mundo.  

Entrando numa fria

Emissão de gases estufa. Foto: Tatiana Grozetskaya/Shutterstock

 

Dentre os diversos movimentos conspiracionistas em negar a realidade, talvez o que enfrente maior resistência, seja do poder público ou das grandes indústrias, é possivelmente o do aquecimento global. Os interesses envolvendo esses dois setores e a falta de uma maior propagação de informações sobre o assunto, resultam na negação de que o planeta enfrenta um de seus maiores desafios atualmente.  Hoje em dia, através de estudos ao longo do tempo, é um consenso na comunidade científica de que não só as mudanças climáticas ocorrem, como também de que o homem é diretamente responsável. 

“No lindo meio-oeste, a sensação térmica está chegando na casa de -60Cº, o maior já registrado. O que está acontecendo com o aquecimento global? Por favor, volte rápido, precisamos de você!” Esse é um dos vários tweets em que o ex-presidente norte-americano Donald Trump, questiona a existência das questões ambientais. Tal argumento, mesmo sendo ignorante ao não se atentar na diferença entre clima e tempo, é amplamente utilizado por aqueles que rechaçam qualquer interferência humana na alteração das temperaturas do planeta.

As alegações de que o aquecimento global é um mito são várias, e podem vir dos mais diversos lugares. Outra tática aplicada, por exemplo, é polarizar a agenda de combate às mudanças climáticas, colocando-a como uma pauta de esquerda, sendo que um evento de proporções globais e que impacta toda a humanidade está muito além de qualquer espectro ou ideologia política. Isso, além da impressão geral de que pequenas mudanças no comportamento diário não são o suficiente para que possam fazer qualquer diferença.

O negacionismo climático ainda enfrenta outro complicador. Diferente dos demais, como o da terra plana ou de uma epidemia, cujas provas podem ser obtidas de forma mais imediata, o aquecimento global é um acontecimento, cujos efeitos da negligência de seu enfrentamento, só são sentidos a longo prazo. Estudos mais recentes apontam que hoje, o planeta Terra se encontra no limite, e que caso as medidas a fim de remediar os impactos já existentes não sejam adotadas de imediato, poderá ser tarde demais.

Negar a realidade ou tentar reescrever a história pode não ser exclusivo de nosso tempo atual, mas ambas geram consequências, ao qual muitas vezes, vão ser reverberadas e sentidas a muito tempo no futuro. Mais do que isso, entretanto, o que todos esses movimentos têm em comum é um grupo vigente no poder que, segundo interesses próprios, tentam moldar o mundo à sua própria maneira, mesmo que isso signifique inventar a sua própria verdade. Afinal, como exposto por George Orwell em seu romance distópico 1984, “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado.”