Desde os anos 60, cozinhar e lavar roupas é um desafio no Crusp

Ex-moradores relatam condições estruturais precárias e relembram invasão e fechamento do conjunto residencial durante a ditadura militar

 

 

por Adrielly Marcelino

Fotos: Derneval Cunha

 

Às vésperas dos Jogos Pan-Americanos de 1963, o Conjunto Habitacional dos Estudantes da Universidade de São Paulo (Crusp) foi construído com o objetivo de alojar os atletas participantes. 

Após o fim da competição esportiva, estudantes ocuparam os edifícios reivindicando uma promessa de décadas atrás: moradia estudantil para os alunos de baixa renda familiar (mediante comprovação). Para muitos, o alojamento é a única maneira de manter-se em São Paulo, metrópole com um dos aluguéis mais caros da América Latina. 

O Issu (Instituto de Serviço Social), órgão da USP semelhante à atual SAS, foi nomeado o responsável pela administração e zeladoria do espaço. O órgão promoveu o estatuto de regras de convivência interna e determinou a divisão dos blocos por sexo, onde cada apartamento alojaria três estudantes – totalizando em média 1,2 mil moradores. 

Em 1968, o Jornalista Mouzar Benedito, então estudante de Geografia, conta que a alimentação funcionava como ainda é hoje: “No bandejão serviam café da manhã, almoço e jantar, não só para moradores: todo mundo podia comer lá. O preço era bem baixo. Só tinha o bandejão. Nos apartamentos podíamos ter um fogareiro (no meu, tínhamos)”.

Décadas depois, o Crusp recebeu uma cozinha para uso coletivo dos alunos que funciona até os dias de hoje. O problema é, que conforme relatos de ex-moradores – e relato dos atuais moradores, falta manutenção dos equipamentos por parte da SAS. Ao cozinhar, por exemplo, é comum apenas uma ou nenhuma boca de um fogão funcionar. 

E como lavar roupas? 

“Máquinas de lavar, não tínhamos. Não me lembro bem, mas acho que cada morador se virava” relata Mouzar Benedito, que morou no conjunto estudantil até o decreto do AI-5 em 1968, quando os militares invadiram e fecharam o Crusp. O episódio foi descrito no livro Crusp 68: Memórias, Sonhos e Reflexões

Varal improvisado para estender roupas no quarto.   

 

Desalojados e sem nenhum apoio financeiro da USP, muitos estudantes mudaram-se em conjunto para casas até então baratas, localizadas na Vila Madalena. Esse fato transformou drasticamente o bairro no polo cultural paulistano que ele é hoje. 

O AI-5 e a transformação da Vila Madalena

Mouzar Benedito conta que a invasão do Crusp foi um momento histórico de forte tensão e terror. Alguns alunos enterraram os próprios livros por temer que o conteúdo fosse considerado subversivo pelos militares. Na operação, todos alunos foram presos independentemente de vida política. 

Após dias de prisão, os alunos foram liberados, mas o Crusp foi fechado. Todos se faziam a mesma pergunta: onde morar?

Devido ao baixo custo de vida e proximidade da Cidade Universitária, muitos estudantes se mudaram para a Vila Madalena – incluindo Mouzar, que vive lá até hoje. O Jornalista protagonizou o documentário República Madalena (2020), cujo enredo narra a efervescência cultural que emergiu no bairro devido a presença dos estudantes.

O fechamento do Crusp fez com que a Vila Madalena se transformasse em um polo de resistência ao regime militar.  As mudanças se davam logo na nomenclatura lírica dos logradouros: Rua Purpurina, Rua da Harmonia, Rua Girassol, entre outros nomes excêntricos. A adoção de nomes poéticos visava romper com a tradição urbana de homenagear autoridades públicas.

Reabertura do Crusp

Telefone público no corredor central do Crusp.

 

Nos anos 80, com o fim da ditadura militar no Brasil e a reabertura das portas do Congresso Nacional, o Crusp acompanhou o ritmo e voltou a alojar os estudantes uspianos. Entretanto, os novos moradores enfrentam um desafio recorrente desde os anos 60: dificuldade para alimentar-se e higienizar roupas.

Ir ao mercado poderia não ser uma tarefa fácil em decorrência da escassez de transporte público no campus, já que a USP está distante de centros comerciais e do centro da cidade de São Paulo. Segundo o Especial Transporte Público na Cidade Universitária, as linhas de ônibus circulares foram criadas em 2012 – ano de inauguração do Metrô Butantã. 

Nos anos 90, o Crusp recebeu um sonho de muitos estudantes: uma lavanderia, conforme relata o ex-morador Derneval Rodrigues Cunha: “Haviam máquinas de lavar e secar e um funcionário da USP vendia fichas. Nem todas as máquinas funcionavam: havia muita fila e discussões. A sala da lavanderia chegou a ser usada como dormitório para gente que esperava a seleção e não tinha onde se alojar.”00