Não podemos esquecer nossos irmãos que se foram em vão

Morte de estudante de Geografia reacende debate sobre apoio e permanência na Universidade

 

 

por Natália Milena e Vinícius Lucena

Manifestantes produziram cartazes e fizeram falas denunciando a falta de medidas efetivas de prevenção ao suicídio dentro do campus. Foto: Vinícius Lucena

 

O estudante Ricardo Lima, do curso de Geografia da USP e morador do Conjunto Residencial da USP (Crusp), se suicidou no dia 25 de maio deste ano. Dois dias depois, ocorreu um ato-cortejo organizado por moradores do Crusp em homenagem ao estudante, que era negro, de origem periférica e mais uma vítima da falta de medidas de prevenção ao suicídio dentro do campus.

Vale lembrar que entre maio e junho, outros dois casos de suicídio foram registrados entre alunos dos cursos de Letras e Filosofia da USP. Tal volume de ocorrências dentro do campus não acontecia desde 2018, quando houveram quatro casos de suicídio em dois meses. Na época, o Escritório de Saúde Mental era recém-criado e havia começado a atender os estudantes.

Não podemos esquecer

O percurso do cortejo se iniciou na Praça do Relógio e os cerca de 50 participantes caminharam até o Bloco A do Crusp, onde Ricardo morava. Os manifestantes carregavam cartazes com críticas à Universidade e repetiam em ritmo de marcha fúnebre o verso: “Não podemos esquecer nossos irmãos que se foram em vão, massacrados, torturados, pelas mãos que os ignoraram”.

Durante o percurso, os manifestantes se dirigiram até o prédio onde fica localizada a Secretaria de Assistência Social da USP (SAS), fixaram os cartazes no prédio, acenderam velas e fizeram falas de protesto contra a negligência da Universidade na prevenção ao suicídio. O ato se encerrou no Crusp, onde foi feita uma pequena vigília que se estendeu até o início da noite.

Foto: Vinícius Lucena

Foto: Vinícius Lucena

Foto: Vinícius Lucena

Foto: Vinícius Lucena

Foto: Vinícius Lucena

Foto: Vinícius Lucena

Foto: Vinícius Lucena

Foto: Vinícius Lucena

Foto: Vinícius Lucena

Foto: Vinícius Lucena

Foto: Vinícius Lucena

Foto: Felipe Dawson

Foto: Felipe Dawson

Foto: Felipe Dawson

Foto: Felipe Dawson

Foto: Felipe Dawson

Foto: Felipe Dawson

Foto: Felipe Dawson

O estudante de Geografia e morador do conjunto residencial, Daniel Barbosa, e mais alguns colegas organizaram o ato depois de sentirem certa negligência institucional por parte da Universidade, que não deu nenhuma declaração para os alunos nos primeiros dias após a tragédia.

“A gente ficou perdido com relação a orientações, porque até então a gente esperava que a Universidade desse orientações, e não deu. Nenhuma resposta decente e nenhuma nota. Passamos por um momento muito doloroso de luto, de culpabilidade e todo um mix de sentimentos”, afirmou Daniel.

Segundo ele, o cortejo, além de uma manifestação, também serviu para que os estudantes se reunissem para processar o ocorrido da maneira devida, já que até aquele momento a USP não tinha oferecido nenhum parecer aos moradores do Crusp. Faixas relacionando o ocorrido à questão do racismo estrutural na Universidade e reivindicando medidas de permanência estudantil davam o tom do ato fúnebre.

Uma trincheira de raça e classe

O suicídio do estudante soma-se ao conjunto de casos que revelam o sofrimento psíquico dentro da vivência universitária. Historicamente o Ensino Superior público esteve reservado a poucos – e a recente conquista desse espaço por pessoas de baixa renda, pretas, pardas ou indígenas, que se reflete em números de matrículas, não necessariamente significa mudanças estruturais. A exemplo disso, o Crusp.

O complexo de prédios foi construído na década de 1960 para ser a Vila dos Jogos Pan-Americanos, que posteriormente foram cancelados devido à epidemia de meningite dos anos 1970. O prédio foi então ocupado pelos alunos que reivindicaram que os apartamentos fizessem parte da política de apoio e permanência estudantil, e hoje a Universidade falha em apoiar de maneira efetiva cerca de 1.300 estudantes que habitam o complexo.

A estrutura precarizada, falta de apoio financeiro e de acompanhamento psicológico dos moradores são alguns dos vários problemas relatados pelos alunos e que se intensificaram ainda mais na pandemia, evidenciando o abandono do Crusp. “Eu nunca tinha entendido muito bem o nome de um grupo do Facebook que se chama ‘Crusp: uma trincheira de raça e classe na USP’, mas agora eu começo a entender (…) A gente tem uma reitoria que é muito chique, mas tem uma SAS precarizada, nós temos professores ganhando bem e alunos vivendo na favelização do Crusp, porque ele se encontra em estado de favelização”, relata.

Fatores como raça e classe não podem ser descartados na elaboração de medidas de prevenção ao suicídio. Foto: Felipe Dawson

 

Outra ponderação feita por Daniel diz respeito à demora na busca por atendimento psicológico, e ao fato de que muitas vezes esse atendimento é fragmentado por questões burocráticas: “Você faz três sessões, eles te perguntam se você quer continuar e te mandam para outro psicólogo, então você não tem um acompanhamento contínuo. E isso foi o que aconteceu com o Ricardo, ele fazia um tratamento fixo no Hospital Universitário (HU), que foi interrompido”.

O morador do Crusp também relata a falta de preparo dos funcionários da Guarda Universitária que, apesar de presenciarem o ocorrido, não foram capazes de realizar uma intervenção. “Havia tempo de se realizar uma operação mínima”, afirma.

Frente a esta situação alarmante, poucas foram as declarações institucionais que relacionaram diretamente o caso à negligência da Universidade em lidar com as questões de raça e classe dentro do Crusp e de todo o campus. Um grupo de docentes publicou um manifesto para que a USP adote imediatamente ações de combate ao racismo estrutural. No documento, eles afirmam ter feito inúmeros avisos, pedidos e denúncias de racismo, mas que nunca tiveram as demandas atendidas.

Os docentes demandam a criação de um escritório para propor e gerenciar pautas relativas à diversidade, inclusão e antirracismo; um serviço de assistência social com especialistas engajados ao tema das discriminações; inclusão da diversidade como critério de mérito nas bancas de contratação, avaliação de projetos de pesquisa e demais atividades e o atendimento urgente das demandas dos estudantes quanto à permanência, alimentação e moradia.

Em seu boletim semanal, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) divulgou um vídeo do diretor, professor Paulo Martins, emitindo o posicionamento oficial da Unidade frente ao ocorrido. O professor lembrou das reformas e medidas que a Universidade já vem tomando quanto às moradias, o acesso à internet e às bolsas, mas fez ressalvas: “Tudo isso pode ser importante, mas ainda não é suficiente. Não abro mão de uma parcela de responsabilidade”.

Entre as propostas da universidade para enfrentar a questão da saúde mental, o diretor ressalta no vídeo:

  • A estruturação de um consultório de atendimentos psicológicos com plantões sistemáticos para oferecer os serviços sempre que necessário a estudantes, funcionários e professores;
  • A articulação de um grupo transdisciplinar, conformado em uma “rede pela vida” visando a criação de políticas de acolhimento e atendimento com a participação de profissionais da saúde e da educação;
  • A proposta de uma primeira reunião para articular essa rede, com convites enviados a representantes e dirigentes de diversos serviços de apoio, incluindo a Superintendência de Assistência Social (SAS-USP), a Congregação, a Comissão de Cultura e Extensão Universitária (Cecex) e as assistências acadêmica e administrativa da FFLCH, representantes do Escritório de Saúde Mental da USP, representantes do Instituto de Psicologia (IP-USP), da Comissão de Direitos Humanos da USP, representantes do Programa de pós multiunidades Diversitas, representantes da Faculdade de Medicina (FMUSP), da assessoria de assuntos institucionais da USP, além de especialistas em psicanálise e em saúde mental.

É importante ressaltar que tais medidas lembram muito as implementadas em 2018 após a criação do Escritório de Saúde Mental da USP. Portanto, é preciso observar criticamente a efetividade destas deliberações. Já que se trata de um problema estrutural que abrange não só a Universidade, mas toda a sociedade, como garantir que os moradores do Crusp tenham de fato condições de permanecer e sobreviver na maior universidade da América Latina?

Vida universitária e saúde mental: por que uns se saem melhor que outros?

O sofrimento psíquico dos alunos e alunas da FFLCH é tema do projeto de mestrado de Felipe Piva. Através da pesquisa, o aluno de Antropologia Social visa dar continuidade à iniciação científica que realizou sobre sofrimento psíquico de graduandos na faculdade, relacionado com os marcadores sociais da diferença – raça, classe, sexualidade e gênero – e  ampliá-lo para a pós-graduação da Unidade.

Intitulada A vida psíquica nas ruínas da Torre de Marfim: uma análise antropológica do sofrimento psíquico na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) e orientada pela professora Heloisa Buarque de Almeida, a pesquisa revela que o mês de novembro de 2014 foi um marco de início para a “publicização de casos de agressão sexual, de gênero, racial, LGBTfobia e trote nas faculdades paulistas, gerando a CPI das Violações dos Direitos Humanos nas Faculdades Paulistas”.

Cartazes contra a negligência da Universidade foram afixados na entrada do prédio onde se localiza a Secretaria de Assistência Social da USP. Foto: Felipe Dawson

 

Por meio da divulgação desses casos, “a questão da saúde mental acadêmica tem ganhado maior visibilidade dentro e fora do meio universitário”. O aumento da divulgação dos casos de violência deu origem a iniciativas para acolher as vítimas, mas a procura por serviços de atendimento psicológico permanece maior do que as opções disponíveis na Universidade.

No projeto de mestrado, Felipe explica que o problema da saúde mental na Universidade não é novo: “a vida acadêmica é recheada historicamente de trajetórias que foram atravessadas pelo sofrimento psíquico resultante do exercício da função e de suas formas de avaliação e competição internas.” O que acontece hoje é o aumento da visibilidade dada à questão e um maior entendimento de que esse sofrimento não se estabelece de forma homogênea entre os alunos.

Essa diversidade do sofrimento psíquico entre os estudantes se deve à interação entre saúde mental e experiência de discriminação, através da convivência e das narrativas destes alunos. “Se por um lado, observa-se na última década que um processo significativo de democratização dos campi nacionais está em curso, principalmente quando olhamos para marcadores sociais da diferença como raça, gênero e classe; por outro, isso não pode ser dissociado de questões que envolvam a permanência na universidade, sendo a saúde mental uma delas.”

Onde procurar ajuda e apoio dentro e fora da USP

O Escritório de Saúde Mental da USP está realizando atendimento online, via Google Meet, e  pode ser contatado pelo e-mail escritoriodesaudemental@usp.br

O Instituto de Psicologia (IP) oferece a toda a comunidade USP o Programa de Apoio Psicológico Online (Papo).

No campus de Ribeirão Preto, o Centro de Orientação Psicológica (Copi) pode ser procurado pelo e-mail copi.pc@usp.br.

O serviço do Núcleo de Acolhimento Universitário está aberto à comunidade da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e pode ser procurado pelo e-mail nau-each@usp.br.

Para casos de urgência e emergência, o Centro de Valorização da Vida (CVV) atende pelo telefone 188.

O Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) está localizado na rua Major Maragliano, 241, Vila Mariana, São Paulo, e atende pelo telefone (11) 3466-2100.

A cidade de São Paulo conta com uma rede de 97 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que trabalham sem necessidade de agendamento prévio ou encaminhamento. A rede de CAPS no Estado de São Paulo pode ser consultada aqui.