A luta em meio ao luto

Em entrevista ao Jornal do Campus, Maria Julia Kovacs analisa o que é o período de luto e como enfrentá-lo de forma saudável

 

 

por Rebeca Alencar

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

 

Hoje nos encontramos próximos à marca de 600 mil mortes por Covid-19 no Brasil. Já, no mundo, esse número aumenta para 4,5 milhões. A avalanche de óbitos em função da pandemia não provocou apenas o fim da história das vítimas primárias, mas também dos amigos, colegas e familiares dos que se foram.

No entanto, de acordo com pesquisas realizadas pelo Datasus, embora o vírus tenha se tornado a maior causa de mortes no Brasil já no primeiro trimestre de 2021, não foi a única. Até o momento da publicação desta matéria, dados estatísticos da Worldometers revelam que mais de 40 milhões de pessoas ao redor do mundo faleceram só neste ano, tanto em detrimento da pandemia, quanto de acidentes, mortes naturais, assassinatos e outras motivações. 

Embora a morte seja o encerramento do ciclo vital dessas 40 milhões de pessoas, não é para os que nutriam relações de afeto e carinho com elas. As rotinas precisam ser continuadas, mas a perda gera um grande vazio na vida dos que ainda ficaram, que pode ser sentido de inúmeras formas, nas mais diferentes intensidades. À esse contexto, dá-se o nome de luto. Nesta reportagem para o Jornal do Campus, entenda mais sobre do que se trata esse período e a importância de trabalhá-lo com seriedade.

O que é o período de luto?

Maria Clara Abaurre e A. M., estudantes da Universidade de São Paulo, perderam a avó e a mãe, respectivamente. Ambas não fazem parte das 4,5 milhões de mortes por Covid-19 no Brasil ou das 40 milhões que já aconteceram em 2021, mas podem exemplificar bastante quais sequelas emocionais e de saúde que mortes ocasionam em membros de diferenciados núcleos familiares. 

Maria Clara, aos 18 anos, perdeu a avó, de 91, para uma pneumonia medicamentosa no final do ano passado, resultado do agravamento de um quadro crítico e oscilante de infecção urinária que surgiu no começo do mesmo ano.  Com o medo das complicações causadas pela infecção de Covid-19, o tratamento foi exclusivamente residencial, realizado por um time de cuidadoras e enfermeiras no apartamento em que moravam as duas, além da mãe e tia da estudante. “De toda forma, eu sentia que ela era quase uma casa, sabe? Alguém como um porto seguro, um lugar de paz e acolhimento”, lembra a respeito da avó.

Foto: Marco Bianchetti/Unplash

 

A preocupação de Maria Clara com o estado de saúde da avó era ininterrupta, o que prejudicou inclusive a sua rotina na faculdade. “Eu escutava a máquina do oxigênio no quarto dela e não conseguia dormir, com medo da máquina desligar. Eu sabia que haviam pessoas cuidando dela, mas não era uma atitude racional. Perdi muitas aulas nesse período e foi difícil conciliar a vida acadêmica à social”, comenta. Ao decorrer dos tratamentos, por se considerar um quadro irreversível, Maria conta que tudo que a família podia fazer era oferecer o máximo de amor e carinho para sua avó, dando todo o suporte para que sua partida tivesse o mínimo de sofrimento possível.

Paralelamente, a perda de A.M., que preferiu não se identificar, é datada de 2013, quando ele ainda tinha 10 anos e sua mãe faleceu. “Não sabia lidar muito com a dor dela e isso trazia um pouco de fragilidade à nossa relação, mas não era nada que atrapalhava o que eu sentia por ela e ela por mim. Era uma relação de mãe e filho autêntica”, relata. A dor à que A. se refere se trata do quadro de depressão em que sua mãe, se encontrava. Ele ainda adiciona que episódios de surto da doença eram comuns na rotina de sua família, mas diferente das outras vezes. A última resultou em um final trágico, em que houve o suicídio.

O estudante afirma que, por sempre imaginarem que era algo momentâneo, não procuravam assistência profissional ou conforto religioso. Por muito tempo pensava que alguém poderia ter feito algo para evitar o que aconteceu, mas hoje, por compreender o contexto e até mesmo a pouca idade que tinha na época, não se culpa mais.  A partir de então reavaliou algumas perspectivas que lhe eram comuns: “Depressão é algo muito sério, e desde esse episódio eu comecei a observar e tratar isso de forma diferente”, ressalta.

Tanto Maria Clara quanto A. protagonizaram, nessas situações, o processo de luto. Segundo Maria Julia Kovacs, professora sênior do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), o luto se trata da elaboração de perdas significativas. Apesar de ser comum relacionar o conceito de perda à morte, a professora ressalta que o luto também está presente em outros tipos de rompimentos de laços, como separações, por exemplo. Porém, independentemente da categorização, o processo de luto geralmente traz consigo inquietudes e dificuldades na vida pessoal. 

“O processo de luto é muito singular  em cada pessoa,  ligado ao tipo de relação com o falecido, as formas de enfrentá-lo e as experiências com perdas anteriores. Também é dependente da faixa etária, faixa de desenvolvimento e disposição de rede de apoio”, detalha.  Maria Clara e A. contaram com a rede de apoio dos familiares para absorver a nova realidade. No entanto, a diferença entre as idades em que enfrentaram esse momento implica em diferentes pontos de vista sobre essa experiência, embora não implique na invalidação ou valorização de uma em função da outra.

A morte avisa… ou não

Maria Julia ainda destaca, sobre a singularidade do luto, o fator expectativa. “Se é uma morte inesperada, pode causar um grande choque, a pessoa pode ficar sem saber o que fazer devido ao susto. Se é uma perda decorrente de uma doença que já há um certo preparo anterior, talvez os efeitos sejam de outra ordem”, explica, enfatizando a impossibilidade de generalizar todas as situações. 

Foto: Camila Quintero Franco/Unplash

 

Ela também salienta a importância da delicadeza em dar a notícia aos familiares, pois a reação do enlutado pode ser das mais diversas. Segundo ela, alguns entram em choque, outros desmaiam, ou até mesmo podem sair correndo sem orientação. A., por exemplo, foi um dos que entrou em choque. “Por mais que esses surtos se repetissem, a perda foi inesperada. A dor do luto foi pior. Eu não esperava que com 10 anos eu fosse ficar órfão da minha mãe e teria que lidar com essa dor”, comenta.

Maria Clara, em oposição, tendo acompanhado de perto a evolução do estado de saúde crítico da avó, somado à idade avançada, afirma que tanto ela quanto a família já esperavam pela perda. “Durante todo esse período eu e minha família tivemos tempo para nos prepararmos para isso, então acho que nosso processo de luto começou antes mesmo da minha avó realmente falecer”, relata. A consciência do desfecho também foi importante para que Maria aproveitasse os últimos momentos com ela, passando o máximo de tempo possível ao seu lado, tendo em vista que o último ano da escola e o início da faculdade impediram que ela estivesse mais presente. 

Como começar de novo?

Apesar das experiências de Maria Clara e A. serem distintas, ambas lidaram com a dor do luto na íntegra e com o apoio de familiares e amigos para se recuperarem da perda. Maria Julia aponta que este apoio é fundamental para o enlutado, uma vez que ele necessita dispor de espaço de escuta e fala para expressar as suas angústias acerca do falecimento do ente querido.

Após o recebimento da notícia, é necessário se readequar à rotina ao passo que se lida com a saudade de quem se foi. Para isso, muitas vezes é necessário apoio profissional para o enlutado encontrar forças e caminhos para compreender a nova realidade. Porém, a professora de psicologia afirma que embora seja uma alternativa, não é obrigatório. A opinião dela é a de que deve-se dar prioridade ao apoio de pessoas mais próximas para enfrentar esse momento e não se deixar levar por possíveis sentimentos de culpa.

Assim como A., Maria Clara também se sentiu culpada pelo agravamento do estado de saúde de sua avó. Devido à grande proximidade entre as duas, a saída de seu estado natal para São Paulo causou muitos medos e inseguranças na família. “Quando fui pra São Paulo, escutei que eu não devia ir porque minha avó não ia aguentar. Me senti muito culpada e achava que o quadro dela era minha responsabilidade. Ao longo do tempo eu percebi que isso não era verdade. Eu não controlo todas as coisas, e ela viveu tudo que tinha pra viver”, relata.

Contudo, até se recuperar, a estudante, que já contava com um histórico de depressão, precisou retomar o tratamento profissional para retomar a estabilidade de sua saúde emocional. A., por sua vez, encontrou na religião as forças para se reerguer, processo este que durou cerca de alguns anos. Ele contava com o apoio do pai e da irmã para se dissociarem da imagem daquele episódio, pois tanto nos momentos bons como nos momentos ruins era da mãe que se lembrava, sendo que neste segundo caso, a dor era ainda pior. 

“Entendi [a perda] por meio da religião, e foi um consolo que eu não tive durante os momentos mais difíceis, em que eu não conseguia me lembrar dela sem ter a dor como principal sentimento. Normalmente você quer lembrar dos momentos bons com a pessoa, mas eu tinha dificuldade, mesmo que eles existissem. Aquele episódio em específico me marcou muito”, lembra.

Mas além da fragilidade emocional, uma das possíveis consequências, segundo Maria Julia Kovacs, é a dificuldade  de se criar novos laços afetivos, especialmente quando a perda ainda é muito recente. A respeito disso, ela destaca a importância de dar tempo para o enlutado absorver as novas informações e, principalmente, observá-lo neste processo, sem pressa, para que as peças se encaixem novamente. “Nós vivemos em uma sociedade muito imediatista que quer que tudo seja breve e fique bem, mas muitas vezes isso não é possível quando se perde alguém. A pandemia mostrou isso para nós, como demora para nos adaptarmos a uma situação que não era usual”, opina.

Foto: Andrik Langfield/Unplash

 

Quando a luz está no fim do túnel

Atualmente, cerca de um e oito anos após as suas perdas, Maria Clara e A. se consideram recuperados psicologicamente. Enquanto ela lida com as saudades, rindo das lembranças boas que tinha com a avó, ele, além de também preservar e focar nos momentos bons, reitera a importância da religião — mais especificamente o espiritismo — para obter as respostas que ele desejava em relação ao ocorrido. “Não vou dizer que é opcional, até porque não é todo dia que alguém próximo a nós falece, são momentos isolados na nossa vida. Mas sofrer, levar a dor para sempre, é um erro”, opina.

Isso, no entanto, não significa que o luto dos estudantes tenha cessado. De acordo com Maria Julia, ao contrário do que se deduz, o luto nunca acaba, é apenas introduzido na rotina de quem sofreu a perda e compreendido. “O luto não cessa, vai passando por transições dependendo de várias circunstâncias. O que deve ser levado em consideração não é o prolongamento e sim a intensidade, se ele causa muito sofrimento, se a pessoa não consegue se readaptar, e esses casos merecem atenção especial”, explica.

Ainda assim, a psicóloga ressalta que o processo, independentemente da fase em que estiver, pode passar por oscilações, ainda mais em épocas específicas, como aniversários e festas de fim de ano. 

“Eu não entendia como ela [minha avó] amava tanto o meu avô que  não cheguei a conhecer. Como que ela não ficava triste, mesmo após tantos anos? Ela sempre me falava que ele estava perto dela em todos os momentos, porque, não era mais de carne e osso então estava sempre por perto”, comenta Maria Clara. Atualmente tem as mesmas reflexões que a avó,  incluindo a certeza de que, onde quer que esteja, ela está orgulhosa da estudante. 

As perdas não se recuperam, mas as lembranças boas permanecem. É assim que Maria Clara quer se recordar de sua avó, e A., de sua mãe. Ambos lidando com a saudade de forma saudável, ao mesmo tempo em que continuam suas rotinas.