“Com as vozes dessas pessoas a universidade vai se tornando um lugar mais igualitário, mais justo e mais plural”

Projeto Salvaguarda, criado por Vinícius de Andrade, aluno de Economia, ajuda estudantes de escola pública a ingressar no ensino superior

 

 

por Theo Sales

Auditório lotado de alunos em evento preparatório para o Enem, realizado pelo Salvaguarda antes da pandemia. Fotos: Vinícius de Andrade/ Acervo pessoal

 

O Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) a ser realizado no ano de 2021 será o mais elitista e branco dos últimos 10 anos. O exame, que serve de porta de entrada ao ensino superior no país, apresenta a menor proporção de estudantes pardos, pretos e indígenas. Além disso, exibe também uma queda na participação de alunos com renda familiar de até 1,5 salário mínimo.

Esses dados significam um aumento na desigualdade de acesso às universidades brasileiras, prejudicando sobretudo alunos negros e pobres. Um dos motivos para a queda na proporção desses estudantes foi a decisão do governo de retirar o direito à isenção da taxa de inscrição no Enem de alunos que faltaram à prova da última edição, realizada em meio à pandemia. Porém, decisão do Supremo Tribunal Federal derrubou essa exigência e estendeu o prazo para pedir a isenção da taxa.

Apesar desses números recentes, a desigualdade sempre esteve presente na realidade brasileira. Tendo em vista essa situação, projetos foram criados para ajudar alunos da rede pública a passar no vestibular e ingressar no ensino superior. Um desses programas foi o Salvaguarda, criado em 2016, por Vinícius de Andrade, estudante de economia da Faculdade de Economia e Administração de Ribeirão Preto da USP.

Confira a entrevista de Vinícius de Andrade ao JC sobre a criação, funcionamento e objetivos do Salvaguarda:

Primeiro, o que é o Salvaguarda?

O Salvaguarda é um projeto social nacional de educação, que auxilia alunos de escolas públicas dentro de três frentes: motivação, conteúdo e informação. O objetivo é auxiliar eles com a escolha profissional e com todas as informações e conteúdos úteis ao longo do percurso.

Como surgiu a ideia de criar esse projeto e como sua experiência pessoal influenciou nisso?

Eu costumo dizer que ele nasceu como fruto do contraste entre dois mundos em que eu vivo: eu sou de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, e sou nascido e criado no bairro com mais favelas da minha cidade, um bairro chamado Simioni. Cheguei na USP e fiquei muito impressionado com a estrutura que a universidade oferecia e eu me lembro que a sensação era que parecia uma cidade dentro da minha cidade. Mas eu olhava pro lado e sentia falta de pessoas da mesma origem que a minha, das minhas irmãs, dos meus vizinhos, dos meus colegas, e eu queria entender por qual razão eles não cogitavam, não ingressavam em universidades públicas.

Para entender a resposta disso, eu fiz duas pesquisas com alunos do último ano do ensino médio de escolas públicas. Uma regional, em 2016, e outra nacional em 2017. E os dados me mostraram o seguinte: a falta de informação constrói um muro que separa alunos de escolas públicas de universidades públicas. Muitos deles não fazem ideia do que é uma universidade, que existem auxílios, o que é o Enem e como se usa o Enem na prática.

Logo após a pesquisa regional, que foi feita no primeiro semestre de 2016, eu me lembro que naquela época eu não tinha pretensão de criar um projeto, criar um programa, eu só comecei a gostar muito desse assunto. Eu me lembro de visitar as escolas na pesquisa regional, do quanto que eu gostei do ambiente, gostei de falar com os alunos.

Logo no segundo semestre daquele ano, eu voltei nas mesmas quatro escolas da pesquisa aqui na minha região e levei junto amigos universitários. A minha ideia naquela época era falar sobre cursos, falar um pouco sobre universidade, mas com uma pegada um pouco diferente, uma conversa mais horizontal, de igual para igual. O porquê dos meus colegas fazerem o curso que fazem, o que eles gostavam e não gostavam, as trajetórias pessoais, e foi muito bacana, mas não era o bastante.

Porque se trata de conteúdo, e muitos deles nunca tinham feito uma redação, porque professores de escolas públicas muitas vezes não têm tempo e recurso para corrigir redação. Então eu sentia que visitar as escolas para levar informação, embora fosse bacana, ainda assim não era o bastante. Então, o passo para 2017 foi o seguinte: eu queria visitar as escolas com mais frequência e, além disso, conseguir também ofertar recursos. Assim nasceu de fato o Salvaguarda, estruturalmente falando. Na época, eu procurei escolas da região que topavam a parceria e 11 aceitaram. Daí eu consegui algumas mídias locais, tipo Record interior, Globo Interior, também na época consegui Estadão, Guia do Estudante, e isso me ajudou a conseguir voluntários, mas na época eram apenas voluntários aqui da região.

Inicialmente, como se deu o funcionamento do projeto, desde a organização e busca de voluntários até ir nas escolas públicas e lidar com os estudantes?

Naquele início, era um modelo semi-presencial. Nós íamos dentro das escolas, levamos universitários para falar com os alunos, as folhas de redação eles pegavam dentro das salas de aula através dos professores. Conseguimos levar eles para conhecer o campus da USP aqui de Ribeirão gratuitamente. Então era um modelo que tinha uma boa parte presencial.

 Alunos do Salvaguarda participam de aulão antes do vestibular.

 

De que forma a pandemia impactou as atividades do Salvaguarda? Como o projeto tem funcionado nesse período?

Eu me lembro que toda essa questão da pandemia começou durante as fases de visitas às escolas, em 2020. Isso porque fazíamos parcerias com as escolas, de forma que todos os alunos tinham direito de usufruir das ferramentas do Salvaguarda, só que nós tínhamos uma visita inicial. Não para selecionar alunos, mas para poder explicar como funciona. Eu tava muito animado porque todo ano a gente passa por reformulações, no sentido de melhorias, ver nossas falhas do passado, e naquele ano, em 2020, tínhamos chegado no Rio de Janeiro, então as duas primeiras escolas que eu visitei foram as do Rio, depois cheguei aqui na minha região.

E, durante essa fase de visitas, na época eram 40 escolas auxiliadas, logo eu vi que elas iriam parar de acontecer. Então, a primeira dúvida nossa foi: continua o Salvaguarda inteiramente online com quem já foi visitado? Ou espera passar? Só que muito rápido ficou claro que demoraria para passar né, visto que estamos aqui ainda hoje. O primeiro impacto foi transformar para um modelo inteiramente online. E, junto com isso, foi fácil compartilhar com alunos de todos os estados do país. Junto com essa transformação para um modelo inteiramente online, o Salvaguarda se tornou um programa nacional, já com alunos em todos os estados e voluntários também.

Que tipo de ajuda o Salvaguarda fornece aos estudantes?

O trabalho ocorre dentro de três frentes: informação, conteúdo e motivação. Essas três frentes foram construídas de forma bem estratégica, porque eu noto que são demandas muito correlacionadas, porque a informação muitas vezes vai ter relação com a motivação e as duas juntas podem colocar o aluno no trilho, mas também a demanda pelo conteúdo. Então, é um trabalho com esse tripé que é muito necessário. O estudante entra no programa e primeiro ele tem acesso a informações muito importantes, informações de todas as universidades públicas do país. Eles podem falar com universitários de qualquer área de interesse, ou formados, mesmo em áreas que não precisam de ensino superior. Eles podem ter um corretor para auxiliar com redação, podem ter um tutor para ajudar a organizar os estudos, têm acesso a conteúdos de todas as nove disciplinas, por meio de listas de exercícios, cronogramas e indicações de aulas no Youtube, têm monitores para tirar dúvidas. Tem também uma frente de psicologia que faz encontros semanais de acolhimento.

Como funciona o trabalho dos voluntários do projeto?

Atualmente, eu diria que tem quatro frentes que têm uma ação ativa de voluntários, que são os corretores de redação — que auxiliam os estudantes durante todo o ano com o desenvolvimento da escrita, é uma relação assim humanizada e personalizada entre cada aluno e corretor, por meio de correções mensais. Tem também os tutores que auxiliam os estudantes com organização de estudos, planejamento, pesquisa de universidades, sobre auxílios. Temos monitores que tiram dúvidas das disciplinas — no caso dos monitores não têm uma relação aluno-monitor, ele pede no grupo e o primeiro que vier responder faz aquele atendimento. E tem a frente de psicologia, que é a menor assim no sentido de quantidade, mas como uma ferramenta diferente, tem uma questão de ética, uma coisa sendo estruturada, então por enquanto é uma equipe um pouco reduzida.

Quantas pessoas participam e já participaram do Salvaguarda, incluindo voluntários e estudantes?

Atualmente, neste ano, são 15 mil estudantes de todos os estados do país e cerca de 1500 voluntários, de todas as universidades públicas. Em termos de alunos, já passaram pelo Salvaguarda ao todo, até o momento, mais de 40 mil. E, em termos de voluntários, eu não tenho essa métrica tão desenhada, mas eu suponho que mais de 2 mil, talvez mais de 3 mil, que já passaram pelo programa.

Na sua visão, qual a importância da educação e do acesso ao ensino superior para mudar a realidade das pessoas?

Primeiro eu penso na questão do quanto a informação sobre a existência desse universo é muito necessária para a tomada de decisão das pessoas. A gente vê muitos alunos que saem do ensino médio, de escola pública especialmente, e que vão trabalhar muitas vezes em cargos ou setores em que a mão de obra é explorada e que não tem projeto de crescimento dentro daquele cargo. Em que ele tem uma grande chance de passar a vida com dificuldade financeira.

Daí quando a informação chega para alguém de escola pública, ela é muito importante na tomada de decisões, porque o cenário de informação plena é o melhor do mundo para você tomar uma decisão, então o estudante vê que tem um outro universo. Quando eles — com toda a luta, que infelizmente o caminho deles é mais dificultado do que para quem geralmente foi de escola particular, ou de quem foi de uma família que tem essa cultura de vestibular, de universidade — enfim, quando ele chega na universidade, primeiro ponto é que enriquece ela com as suas demandas e repertório, de repente com as vozes dessas pessoas a universidade vai se tornando um lugar mais igualitário, mais justo e mais plural.

Essa pluralidade é muito rica, muito necessária e muito bacana em termos de crescimento. Ajuda a universidade a fazer um lugar mais justo e mais produtivo. E depois quando eles chegam também nos seus espaços profissionais vão fazer a mesma coisa lá. Então com as pessoas de escolas públicas tomando posição das mais diversas profissões, eu penso que com isso, o país tem uma chance muito grande de melhorar e se tornar menos desigual.

Que resultados o projeto já gerou e o que você espera do Salvaguarda no futuro?

Eu penso em várias métricas para poder pensar em um sucesso do Salvaguarda. O primeiro, obviamente, a gente fala de aprovações em universidades, é o mais visual, o mais óbvio de entender e até o momento mais de 400 já foram aprovados. Alguns outros casos que eu penso são um pouco mais sutis de sacar a relevância — por exemplo, de repente alguém que não tinha a informação, tem. E assim possa fazer uma escolha sobre sua decisão profissional. De repente, uma escola que nunca tinha nenhum aprovado, tem um. Isso abre o caminho para todos que vêm depois. De repente, uma família que ninguém nunca passou pela universidade, teve um. Eu penso no efeito de aprovações, no efeito da informação na tomada de decisão e no efeito de exemplo.

Quem pode e como participar do projeto? Quais são os requisitos para ser aluno e para ser voluntário?

Sobre alunos, qualquer estudante que esteja no ensino médio de uma escola pública ou que se formou em uma. Para estudantes, há períodos específicos de inscrição, o próximo agora só no ano que vem. Divulgamos no Instagram @salvaguarda1.

Para os voluntários, estar pelo menos no primeiro ano de alguma universidade, especialmente de universidade pública, mas não é regra. Também existem períodos específicos de inscrição, costumo divulgar direto via coordenação dos cursos.